domingo, 12 de dezembro de 2010

Lulismo vai durar décadas


DOSSIÊ/ERA LULA
Lulismo vai durar décadas
Marcelo Freitas

A base do lulismo é formada pelos que ficaram de fora do varguismo, que são os setores mais empobrecidos da população
O jornalista e cientista político paulista André Singer foi porta-voz do presidente Lula entre 2003 e 2007. Atualmente é conhecido como um dos principais ideólogos do lulismo, o fenômeno político que tem o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, como protagonista. Fruto da ascensão social dos setores mais empobrecidos da sociedade brasileira, o novo movimento político, no entender de Singer, é um fenômeno de longa duração. Otimista, ele acredita que o Brasil tem hoje condições de evitar que crises econômicas constituam empecilho à política de redução da pobreza no Brasil e rejeita a ideia de que o lulismo esvaziou os partidos políticos e os movimentos sociais. André Singer é autor de dois livros – Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (Edusp, 2000) e O PT (Publifolha, 2009). É também organizador de Sem medo de ser feliz: cenas de campanha (Scritta, 1990).

O que é o lulismo e quais são os seus fundamentos?
O lulismo é um movimento político não formalizado, mas real, que emerge da sociedade brasileira e que é, fundamentalmente, resultado de um realinhamento eleitoral que começa em 2002 e termina na reeleição de 2006. Sua principal característica é o fato de que Lula passa a ter como base predominante um eleitorado de baixíssima renda, de até dois salários mínimos, em troca da classe média, que sempre foi a principal base do PT e que se afasta de Lula durante o seu primeiro mandato. Essa nova base tem como característica – e isso é o lulismo – promover a distribuição de renda sem ameaça à ordem, um tipo de combinação que atende plenamente a esses setores mais pobres da sociedade brasileira, e que são, evidentemente, os que mais se beneficiam de um processo de combate à pobreza.

O lulismo seria um fenômeno político duradouro?
Sim. É uma hipótese de longo prazo. Se eu estiver certo, vai durar algumas décadas. Mas não posso dizer quanto tempo.

Por quê?
A ciência política americana elaborou o conceito de realinhamento. Nos Estados Unidos, eu diria que houve três grandes eleições de realinhamento: 1860, com Abraham Lincoln; 1896, com William McKinley; e 1932, com Theodore Roosevelt. Se você olhar as três datas, notará que há uma coincidência, pois ocorreram exatamente a cada 36 anos. Mas há quem diga que a eleição de 1968 (Richard Nixon) também teria sido de realinhamento. Então, seriam mais 36 anos. E, agora, há uma discussão: se a eleição de Obama também foi de realinhamento.

Mas e no caso do Brasil?
No caso do Brasil, a eleição de 2006, que complementa a de 2002, produziu uma nova agenda, que é a de combate à pobreza. Será algo de longa duração, porque esse movimento de retirar da pobreza segmentos enormes da sociedade brasileira tende a produzir uma lealdade política de longo curso. Por isso, acho que tende a ter longa durabilidade. Claro que, para isso, um requisito é que essas políticas continuem. Nesse aspecto, estou supondo que essa nova maioria tem força suficiente para manter as políticas iniciadas no governo Lula.

Então, pelas próximas décadas, dificilmente outro partido político chegaria ao poder no Brasil?
O que precisa ser dito é que não é obrigatório que ganhe sempre o mesmo partido. Nos Estados Unidos, entre eleições críticas de realinhamento, a oposição também chegou ao poder.

Na história republicana brasileira, que eleições você definiria como de realinhamento?
Vou dar uma resposta preliminar, sujeita a revisão. Tenho a impressão de que nós tivemos duas eleições de realinhamento no Brasil. A primeira foi a de 1945, com Dutra (Eurico Gaspar Dutra), que criou a maioria relacionada ao Vargas (Getúlio Vargas), formada pela união do PSD com o PTB e que iria dominar a política brasileira até o golpe de 1964.

A vitória de Jânio Quadros, em 1961, não quebrou essa ordem?
Não. Embora tenha sido eleito pela oposição, Jânio falava a mesma linguagem do período de 45.

E a segunda eleição de realinhamento?
A outra foi a eleição para o Senado em 1974, quando o MDB (partido de oposição) fez ampla maioria.

Alguns analistas afirmam haver uma grande semelhança entre Lula e o ex-presidente Getúlio Vargas. O senhor concorda com essa análise?
Em alguns aspectos, sim. Tanto um quanto o outro encontraram um caminho que deu certa autonomia para o Estado no sentido de que conseguiram encontrar uma forma que permitiu a este se colocar acima das classes sociais, atuando como árbitro do conflito de classes. Porém, em outros aspectos, Lula não lembra Getúlio, porque Getúlio encontrou sua base nos trabalhadores urbanos e excluiu todo o mundo rural, que, até então, era majoritário no Brasil. Já a base do lulismo é formada pelos que ficaram de fora do varguismo, que são os setores mais empobrecidos.

Nesse sentido, pode-se dizer, então, que o lulismo seria uma complementação do varguismo?
De certo ponto de vista, sim.



O lulismo é maior que o PT?
Sem dúvida que, de certa forma, sim. A candidatura Lula já tinha uma dimensão de votos maior que a do PT. Porém, acho que essa comparação não é muito boa porque estamos comparando banana com laranja. Uma liderança política tem uma certa característica. Já o partido político é uma outra coisa. Partido político tem estrutura organizacional, que uma pessoa, um indivíduo, não pode ter. É preciso tomar cuidado com certas comparações. Há, inclusive, alguns estudos que mostram que parece estar ocorrendo fenômeno no sentido inverso, de que eleitores mais pobres estão agora, lentamente, criando uma adesão ao PT, que politicamente tende a se fortalecer. Os dados que analisei indicam isso.

Os críticos do lulismo afirmam que seu crescimento se deu em cima do esvaziamento dos partidos políticos. O senhor concorda com essa ideia?
Não concordo. Me parece que está acontecendo o contrário. Primeiro, foi muito importante a decisão do presidente Lula de não patrocinar movimento em favor do terceiro mandato. Do ponto de vista objetivo, o que vejo é o fortalecimento tanto do PT quanto do PSDB. Em que pese ter perdido a eleição, o PSDB sai fortalecido, tanto pelo patamar de votos quanto pelo desempenho em estados importantes. O PSDB é um partido importante, com base social relevante na chamada classe média tradicional e que parece ter conseguido criar diálogo com essa chamada classe C. Acredito que nosso sistema partidário está se fortalecendo. Agora, em todos os países democráticos, há um processo de esvaziamento dos partidos políticos. Não é um problema brasileiro. É um problema da democracia, que está sofrendo o esvaziamento desse canal de comunicação entre a sociedade e o Estado. Mas não é um problema brasileiro, nem algo que tenha a ver com o lulismo.

Uma segunda crítica ao lulismo diz respeito ao esvaziamento dos movimentos sociais, que teriam sido cooptados pelo governo.
De fato, há uma absorção pelo Estado de segmentos dos movimento sociais. Isso é verdade. Porém, não considero que seja uma cooptação. Acho que isso ocorreu porque os movimentos sociais fazem parte da coalizão majoritária. Há uma nova maioria no país e, nessa nova maioria, os movimentos sociais têm papel importante. Estamos passando por uma solução análoga à do new deal (movimento de reconstrução da economia americana depois da crise da bolsa de 1929), quando, pela primeira vez, a classe trabalhadora foi incorporada na coalizão majoritária. E, ao entrar nessa coalizão, os movimentos sociais são, de certa forma, estatizados e perdem certa agressividade. Agora, isso é parte de um processo, até onde consigo enxergar, inevitável. Os movimentos sociais estão podendo colocar em prática políticas que eles reivindicavam há muito tempo. Não chamo isso de cooptação, mas, sim, de mudança de qualidade.

O sucesso do governo Lula está, de certa forma, assentado na política econômica, ou seja, na ideia de que a economia precisa crescer para gerar impostos, gerar renda etc. Se houver uma nova crise econômica internacional, não haveria o risco de o lulismo naufragar?
Acho parcialmente válido o argumento. De fato, o lulismo depende, para se sustentar, de manter a continuidade do processo de ascensão social de setores empobrecidos e, para manter esse processo, é necessário que haja crescimento econômico. Nesse aspecto, concordo com você. Porém, acho que nós temos possibilidades objetivas de superar isso. Prova disso é a maneira como o governo conduziu a economia durante a última crise econômica internacional. O governo foi capaz de aproveitar uma oportunidade, com os instrumentos que tinha – bancos públicos, setor financeiro nacional mais bem regulamentado que o internacional e mercado interno ativado – permitir rápido aumento do consumo. Enfim, houve um conjunto de medidas que permitiu ao Brasil reagir de maneira rápida, e com sucesso, a uma crise que foi muito grave. Foi o momento mais delicado do capitalismo desde 1929. A experiência brasileira mostra que é possível desenhar uma política econômica que mantenha o crescimento. Claro que, para isso, vamos ter uma série de desafios pela frente. Não sou capaz de dizer que tipo de evolução o capitalismo mundial vai ter e, portanto, não posso garantir quais vão ser os problemas que o Brasil vai ter. Mas diria que, depois dessa experiência recente, o Brasil tem condições de manter o crescimento.

Qual a expectativa do senhor para o lulismo no governo Dilma?
A vitória da candidata Dilma representa muito bem a expressão do lulismo, pelo fato de ela ter sido eleita pelos setores de renda mais baixa. Minha expectativa é de que ela tente dar continuidade ao projeto, que é um projeto de combate à pobreza e à desigualdade sem ameaça à ordem. Do ponto de vista político, as condições estão dadas para que ela tenha sucesso. Do ponto de vista econômico, vamos ver quais serão os cenários.

Nenhum comentário: