domingo, 12 de dezembro de 2010
DOSSIÊ/ERA LULA .O fim da miséria
DOSSIÊ/ERA LULA
O fim da miséria
Em oito anos o Brasil viveu ciclo inédito de transformação econômica e social, com fortalecimento do mercado de trabalho, distribuição de renda e maior acesso a direitos
Juarez Guimarães
Claudio Versiani/CB/D.A Press 1/5/96
Para alguns analistas, o país, em seu novo momento, está a caminho de realizar a utopia sonhada por Darcy RIbeiro
Passou quase despercebida da opinião pública brasileira a nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgada em julho, anunciando o provável fim da miséria no Brasil para 2016. Ao trabalhar com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o Ipea estimou que, mantendo-se o ritmo alcançado entre 2003 e 2008, a pobreza extrema (renda média domiciliar per capita de até um quarto de salário mínimo) seria erradicada e a pobreza absoluta (renda média domiciliar per capita de até meio salário mínimo) seria reduzida a apenas 4% da população.
Confirmando-se esta tendência e lançando mão de uma comparação histórica mais larga possível, seria correto dizer que desde o fim do trabalho escravo o Brasil não viveu uma transformação social de tal amplitude e profundidade históricas.
A imaginação de um Brasil sem miséria esteve desde sempre na utopia de nossos maiores pensadores, artistas, líderes populares e religiosos. Gerações e gerações de brasileiros morreram sonhando com essa utopia, de Carlos Prestes a dom Hélder Câmara, de Castro Alves a Carlos Drummond, de Paulo Freire a Celso Furtado, de Graciliano Ramos a Vinicius de Moraes.
Para os que vivemos desde sempre neste “paraíso tropical” cercado de miseráveis por todos os lados, não é tarefa banal imaginar um Brasil sem miséria. Se isto ocorrer, a violência social perderá a sua marca cotidiana trágica e endêmica e será marginal e excepcional. Os bens básicos da civilização e o circuito da dignidade, que só a condição cidadã pode trazer, serão universais. Um inédito ciclo criativo se irradiará, fundindo o erudito e o popular. Brancos, negros e mulatos – e todas as cores possíveis – na “ONU que deu certo”, como sonhava Darcy Ribeiro. Sulistas e nordestinos, nortistas e paulistas, “desgeografizando” o Brasil, como acalentava Mário de Andrade. Mulheres e homens, iguais no direito e na diferença, sem os centenários preconceitos patriarcais. Será possível realmente que estejamos no limiar desta possibilidade histórica?
Como compreender o que está se passando agora em nosso país? Que dinâmica política e social é esta? Quais são suas virtudes, seus limites e seus desafios?
Dinâmica do Estado do Bem-Estar Social Se estivéssemos diante de uma dinâmica que consultasse apenas as extensas mas minoritárias bases mais pauperizadas da sociedade brasileira, não seria possível entender por que o governo Lula chega ao fim de seu mandato com aproximadamente 83% de aprovação, entre ótimo e positivo. É preciso lançar mão de conceitos totalizantes que deem conta de uma nova dinâmica macrossocial, que tem certamente um impacto de reorganização das próprias bases políticas da democracia brasileira.
O conceito fundamental para entender o que está se passando hoje no Brasil é o de Estado do bem-estar social. Experiências de construção de Estados do bem-estar social ocorreram mais tipicamente na Europa no pós-guerra, de forma mais avançada nos países nórdicos, formando vastas estruturas públicas de serviço na área de saúde, educação, previdência, gerando dinâmicas de pleno emprego e pactos sociais, unindo empresários, trabalhadores e setores médios em arranjos políticos corporativos e cooperativos. Estamos vivendo hoje no Brasil uma experiência tardia, semiperiférica e, em vários níveis, inovadora de construção do Estado do bem-estar social.
São cinco as características mais visíveis deste processo. A primeira delas é o fortalecimento dos direitos do trabalho, com a diminuição do desemprego, a formalização do mercado de trabalho e a melhoria nos direitos e salários dos trabalhadores. Os anos Lula foram marcados exatamente pela criação de mais de 15 milhões de empregos com carteira, pelo aumento da formalização e cobertura previdenciária, pela forte elevação do salário mínimo e por conquistas generalizadas nos dissídios coletivos, como mostram os números do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Neste sentido, erra por ignorância ou má-fé quem atribui os êxitos do governo Lula na área social simplesmente ao Bolsa Família: está mais que demonstrado que, a partir do segundo mandato, foram os ganhos do trabalho os principais responsáveis pela mobilidade social no período.
A segunda característica da construção dos Estados do bem-estar social é a afirmação dos direitos e serviços públicos. No governo Lula, a área na qual se vivenciaram mais progressos foi a educação, entendida como um sistema público que vai da educação básica até os programas de pós-graduação. O governo Lula tem certamente o título na história brasileira daquele que mais investiu, mais universidades e escolas técnicas construiu, mais vagas abriu com os programas Reuni e Prouni. A área de saúde pública, apesar de alguns importantes avanços setoriais, continuou enfrentando problemas irresolvidos de financiamento e gestão. A dinâmica previdenciária foi claramente virtuosa, com a elevação do emprego com carteira, gerando mais arrecadação e ampliando a base de cobertura, com avanços inequívocos na gestão.
A terceira identidade na construção dos Estados do bem-estar social é a noção de universalidade contraposta à focalização ou fragmentação do acesso a direitos. Mesmo na área que lida mais diretamente com a inclusão social – aquelas cobertas pelo Ministério do Desenvolvimento Social – a dinâmica foi claramente universalista, com formação de cadastros públicos únicos dos beneficiados, padrões republicanos na relação com os municípios e estabelecimento de prioridades (fortalecendo a posição das mulheres) e condicionalidades (com compromissos com a escola e a saúde). Se a miséria no campo vem diminuindo drasticamente, é também em função das novas políticas dedicadas à agricultura familiar e o programa Territórios da Cidadania, que apresenta novas metodologias de ações combinadas em áreas mais distantes e empobrecidas.
A quarta marca na construção dos Estados do bem-estar social é a formação de arranjos corporativos democráticos, em geral com representação tripartite entre trabalhadores, patrões e governos. Uma grande inovação brasileira vem sendo a da democracia participativa, isto é, o incentivo à participação cidadã em conselhos de gestão, às vezes com poder de decisão, como reza o estatuto do Sistema Único de Saúde (SUS), e as conferências nacionais, que, pouco noticiadas, mobilizaram milhões de brasileiros em dezenas de fóruns nacionais.
Por fim, não se constroem Estados do bem-estar social sem uma forte economia do setor público na área financeira, das inovações técnico-científicas, sem empresas públicas e planejamento público. Ora, uma das marcas mais salientes do governo Lula foi exatamente o fortalecimento dos bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES), da Petrobras e do pré-sal, do investimento público em inovação e no planejamento da ação do Estado por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Jackson Romanelli/EM/D.A Press
Campanhas eleitorais cobram mudanças e discussão séria do financiamento público do setor
Democracia e Estado do bem-estar social Seguindo as pistas daquele que é considerado por muitos o pesquisador mais referencial dos Estados do bem estar social, Gosta Sping-Andersen, a sua construção histórica depende da estabilidade democrática e da permanência no governo de Estado, por períodos expressivos, de coalizões trabalhistas, social-democratas ou socialistas. O fato de as mulheres estarem incluídas no mercado de trabalho e participarem como sócias, nos provimentos e nos direitos destes Estados seria um fator fundamental para a sua dinâmica equilibrada.
Ora, no Brasil vivenciamos pela primeira vez na história do país a coincidência de uma situação com estabilidade democrática e presença no governo central, por um período agora de 12 anos, de uma coalizão liderada por um partido com base fundamental nos trabalhadores organizados e nos setores mais pauperizados. Além disso, as mulheres já são praticamente a metade da população economicamente ativa, estão se escolarizando em um velocidade maior que a masculina e devem alcançar nos próximos anos maior protagonismo político na afirmação de seus direitos.
Além dessas três condições, o Brasil parece viver um novo ciclo de desenvolvimento econômico sustentado, com maiores taxas de investimento e baixa inflação. O fato de ter acumulado um forte padrão de reservas cambiais, também inédito em sua história, o protege de contágios automáticos de crises financeiras internacionais. Além disso, há o fator chamado “bônus demográfico”, o fato de termos um período decisivo e único de anos pela frente no qual a maior parte da população estará em idade produtiva, o que alimenta a potencialidade da construção de um Estado do bem-estar social no Brasil.
Três fatores políticos democráticos podem ameaçar este processo de construção do Estado do bem-estar social. O primeiro deles é a perda ou enfraquecimento da dimensão cívica da democracia brasileira em função de dinâmicas antirrepublicanas que são hoje muito fortes no sistema eleitoral e de representação política. É o tema da reforma política, em primeiro lugar, do financiamento público de campanha, que não foi devidamente enfrentado pela coalizão majoritária no governo Lula.
Em segundo lugar, há o problema da corrupção sistêmica e histórica presente no Estado brasileiro, desde a sua formação. Ela pode gerar fenômenos de instabilidade democrática, de deslegitimação institucional e de descrença na cidadania ativa, que são exatamente fundamentos da construção de um Estado do bem-estar social.
E, por fim, em um país de centenários privilégios, que carrega ainda o título de um dos países de maior concentração fundiária, de renda e riquezas, é de esperar forte resistência à ascensão dos pobres, negros, nordestinos e mulheres. Essa resistência, apoiada em campanhas midiáticas, pode gerar surtos regressivos de consciência, como aqueles que se veem hoje nos EUA e em quase todo o território europeu.
Apesar de importantes avanços setoriais, inclusive no combate à corrupção e na democracia participativa, os grandes limites do governo Lula foram ainda na construção dos fundamentos republicanos da democracia brasileira. A resposta aos desafios nesta área republicana e democrática decidirá se teremos, enfim, no Brasil um Estado do bem-estar social.
Juarez Guimarães é professor de ciências políticas na UFMG.
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