domingo, 12 de dezembro de 2010

DOSSIÊ/ERA LULA.O futuro de uma ilusão


DOSSIÊ/ERA LULA
O futuro de uma ilusão
Considerado por alguns pesquisadores um novo fenômeno, o lulismo precisa ser interpretado levando-se em conta a conjuntura econômica e a exploração política
Mauricio Dias David

Maurício Lima /AFP

Mas, afinal, de que se trata o lulismo? Ele existe mesmo, é algo que veio para ficar na sociedade brasileira, marcando o seu desenvolvimento político por muitas décadas, tal como o peronismo, na Argentina; o getulismo, no Brasil, nas décadas posteriores à Revolução de 30; ou o franquismo e o salazarismo, na Espanha e em Portugal, dos anos 1930 aos anos 1970? Ou se trata de uma nuvem de fantasia, predestinada a desvanecer ao menor sinal de crise econômica mais duradoura ou de esgotamento do período excepcional de expansão da economia mundial, que levou vento às velas das caravelas do governo Lula em seus dois mandatos? Evidentemente, só o tempo será senhor da verdade.

André Singer, o cientista político da Universidade de São Paulo (USP) que foi o porta-voz do governo Lula em seu primeiro mandato, e Rudá Ricci, o sociólogo paulista radicado em Minas que tem se destacado na avaliação de políticas públicas, em dois trabalhos pioneiros publicados recentemente, levantaram a hipótese do “lulismo” como um fenômeno que representaria uma novidade diferenciadora de uma nova estruturação social brasileira. Algo que veio para ficar, a simbologia, no plano eleitoral, de uma nova correlação de forças dentro e na sociedade brasileira. Abriu-se, então, a partir das hipóteses levantadas por Singer e por Ricci, uma vertente de estudos sobre a realidade nacional.

É inegável que a economia brasileira apresentou, nos últimos anos, um desempenho bastante superior ao de anos de crise que caracterizaram as chamadas “décadas perdidas” em termos de desenvolvimento nacional. Ou seja, o crescimento econômico foi bastante medíocre nos anos 1980 e 1990. Em conseqüência, os avanços sociais neste mesmo período foram acanhados, apesar do campo favorável proporcionado pela abertura política relacionada com a substituição do regime militar pelo poder civil, mais suscetível de atender as reivindicações sociais. Mas quando o cobertor é pouco, em anos de crise e relativa estagnação econômica, os ganhos sociais ficam limitados pelo cobertor curto. O crescimento recente da economia brasileira no governo Lula permitiu uma mudança radical da situação anterior.

Mérito de Lula? Ou coincidência fortuita, em função da expansão excepcional da economia internacional, que teria proporcionado ao “sortudo” Lula os ventos necessários para aportar suas caravelas no doce paraíso da expansão econômica acelerada? Essa discussão pode se mostrar interminável e acabar, o mais das vezes, em bolinhas de papel e objetos contundentes despejados na cabeça do adversário, como na recente campanha eleitoral.

O fato é que a expansão da economia internacional nos anos recentes foi a base incontestável do clima de bonança econômica que caracterizou parte do governo Lula, especialmente a partir de 2004. Foram os anos do espetáculo do crescimento, como o chamou o marqueteiro mor do país – Sua Excelência, o presidente da República. Até mesmo a grave crise econômica internacional de 2008/2009 afetou de maneira amena a economia nacional, não pelas habilidades dos timoneiros Lula e Mantega, mas pelo fato de que a China continuou a sua notável expansão econômica e se mostrou consumidora voraz – e a preços crescentes – de tudo quanto foram as commodities que as Argentinas e os Brasis da vida lhe ofereceram na mesa de iguarias.

Não há dúvida de que a sensação do feel good que está na base do fenômeno do lulismo, e que explica, em parte substancial, a grande adesão popular à figura carismática do presidente, se deu, então, não em conseqüência de méritos excepcionais das políticas governamentais do governo Lula, mas apesar delas. Ironia da vida. Quanto mais a figura mítica de Lula atacava a chamada “herança maldita” que lhe foi legada pelo seu antecessor, mais suas próprias políticas se baseavam na extensão e aprofundamento do que havia herdado o seu governo: a política econômica, a abertura da economia, as linhas principais das políticas sociais, além das políticas de modesta redistribuição de renda e favorecimento do surgimento de uma “nova classe média”, ascendente do ventre das classes D e E na curiosa estruturação social brasileira.

Não que os governos sejam exatamente iguais, pois nunca o são e nunca o serão (e isto é válido também para as previsões relacionadas com o segundo período do lulismo, isto é, o futuro governo Dilma).

Mas o que queremos propor é girar o eixo da discussão para um novo polo: em existindo o lulismo, é ele sustentável? Está assentado sobre sólidas estruturas? Ou tenderá a desvanecer à medida que a figura do seu ator principal deslize inevitavelmente para um segundo plano com a passagem do poder? Estamos tratando de uma estátua de bronze que vai perdurar por décadas? Ou de umas destas alegorias de carros de carnaval, tão características das escolas de samba, que tendem a se desmanchar quando mergulhadas nas chuvas tropicais do verão carioca?

Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar...

Fragilidade A primeira observação a fazer é a de que a sensação do feel good, esta sensação difusa de bem-estar generalizado, que é a base da simpatia e adesão à figura de Lula, parece ser de uma fragilidade espantosa. Em primeiro lugar, porque é pouco crível que os anos de forte expansão econômica que caracterizaram boa parte do governo Lula se repetirão de forma constante e indeterminada. O chamado lulismo não apagou os ciclos da história econômica, assim como não poderá ter apagado da memória dos estudiosos a semelhança do modelo atual de “expansão para fora” baseado na exportação de produtos primários com o esgotamento histórico deste modelo vivido pelos países da América Latina em meados do século passado. Precisamos voltar a ler Celso Furtado, Raul Prebish, os grandes pensadores estruturalistas latino-americanos. O lulismo os substituiu pelos teóricos neodesenvolvimentistas da estruturação das empresas campeãs nacionais, do dinheiro fácil e subsidiado do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) jorrando em bicas sobre empresários ineficientes e projetos mirabolantes. A visão estrutural de um Celso Furtado foi substituída pelo pensamento “curto-prazista” das viúvas de Geisel, o general presidente do fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), cuja visão de capitalismo nacional-estatista parece ser o eixo do modelo lulista na economia. Os trens-bala de hoje dos neodesenvolvimentistas neogeiselianos serão as ferrovias do aço de ontem. Talvez nem isto, mais bem tendem a repetir a Ferrovia Norte-Sul dos empreiteiros de Sarney. Quando o castelo de cartas desmoronar, o que ficará de “mico” na mão dos (ir)responsáveis políticos por tal modelo?

A base social do lulismo é também de uma consistência duvidosa. Ela aparenta, segundo a maior parte das análises, estar ancorada em dois pés: o Bolsa Familia – poderoso instrumento de combate à miséria – e as políticas que tenderam a favorecer a ascensão da chamada “nova classe média”.

O Bolsa Família, que foi uma adaptação ao Brasil de uma política defendida pelo Banco Mundial de focar o combate à miséria em medidas pontuais, representa tudo aquilo que o PT e Lula historicamente combateram. A genialidade política de Lula consistiu, neste caso, em simplesmente dar um giro de 180 graus no que defendia o PT e em perceber a formidável arma política que tinha em mãos. Tratou-se de uma genialidade do tipo de “ovo de Colombo”, que Lula transformou em uma fábrica geradora de votos. Por que não o fez o social-democrata Fernando Henrique Cardoso? Simplesmente porque talvez, na realidade, por sua formação aristocrática, tinha horror aos pobres. Foi capaz de iniciar o programa – que tinha tudo a ver não só com as políticas neoliberais do Banco Mundial, mas também com o próprio ideário da social-democracia –, mas foi incapaz de ampliá-lo a uma escala efetivamente abrangente e que provocasse impacto significativo, conforme apontei em uma tese de doutorado defendida em 2001 na Universidade de Paris.

Quanto à chamada nova classe média, há indícios de que este conceito tem sido utilizado de forma um pouco abusiva. Existe mesmo uma nova classe média? Como chamar de classe média os estratos de renda compreendidos em faixas que apenas se diferenciam dos casos de pobreza relativa? Ou, na melhor das hipóteses, de insuficiência de renda para um padrão de vida confortável? A chamada nova classe média parece ser integrada pela “velha sofrida classe trabalhadora”, que mal se mantém com o nariz fora da linha d’água. O nível de renda familiar aumentou, sim, mais devido ao aumento no número de familiares inseridos no mercado de trabalho do que devido a uma real ascensão econômica e social. Ascensão econômica houve, sim, de economistas que disputam avidamente régios contratos de consultoria governamental para demonstrar que tudo vai candidamente bem, no melhor dos governos possíveis. Longe de mim estar criticando técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da Fundação Getulio Vargas (FGV), do BNDES etc. Mas que o fenômeno existe, existe.

Fernando Pessoa disse certa vez: “Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”. Corremos o risco de estar subestimando a importância do fenômeno do lulismo? Ou, ao contrário, estamos diante de uma superestimação do que seria efetivamente o lulismo? Estamos tentando examinar os astros com um microscópio? Ou simplesmente examinando uma formiga com a lente invertida de uma luneta?

Words, words, words, disse Shakespeare...

Mauricio Dias David é doutor em ciências econômicas pela Universidade de Paris XIII (Sorbonne), professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e ex-economista do BNDES

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