domingo, 12 de dezembro de 2010
DOSSIÊ/ERA LULA.Mais que um governo
DOSSIÊ/ERA LULA
Mais que um governo
Modelo de gerenciamento de políticas públicas apoiado no presidencialismo de coalizão promoveu desenvolvimento e inclusão social por meio do consumo
Rudá Ricci
Explosão do consumo, além de aquecer o mercado interno, criou canais de inserção social de novas faixas da população
Denominar um modelo de gerenciamento do Estado brasileiro de lulismo tem como intenção ir além do seu principal personagem – o presidente Lula – para ressaltar o escopo deste projeto. O lulismo é uma arquitetura política de gerenciamento de políticas públicas, assim como ocorreu com o getulismo. Ambos se completam num esforço de modernização conservadora de nosso país. Getúlio Vargas gerou um aparato estatal de tutela da sociedade civil e das relações entre classes sociais. Criou, deliberadamente, um jogo de espelhos entre sua imagem pública e a do próprio Estado Providência que arquitetou. E desconsiderou todo o sistema de representação autônomo ao Estado Executivo. Desconsiderou as bases constitucionais com o Estado Novo. Manipulou o sistema partidário. Criou o sindicalismo de Estado. Dirigiu e orientou o desenvolvimento da indústria nacional. Muitos autores, como Edgard De Decca e Sérgio Silva, sugerem que não houve propriamente uma ruptura entre o capital agrário, comercial e industrial a partir de 1930. Tratava-se de conciliação para a modernização.
O lulismo se aproxima dessa lógica, mas não opera sobre ela. Seu foco é o mundo urbano e industrial. Mas, como Vargas, trabalha no sentido de construir um bloco no poder, uma trama de desenvolvimento estratégico do país a partir do Estado.
Dialoga abertamente com organizações, sindicatos, mas os incorpora ao Estado a partir de políticas específicas, fundadas em convênios e parcerias, algo que se aproxima de tutela, já que não incorpora efetivamente esses atores sociais na formulação de políticas públicas e processo de tomada de decisão. O lulismo completa a modernização conservadora iniciada por Vargas porque reafirma o Estado como demiurgo da sociedade civil e das relações de estabilidade das relações sociais no Brasil. Não inova em termos de processo decisório na gestão pública. Ao contrário, reafirma o que Francisco Weffort identificou como sistema dual da política nacional, que limita a competição entre forças políticas (ou as controla).
O lulismo não rompe objetivamente com este sistema. Ao contrário, apoia-se no presidencialismo de coalizão, que reafirma a dualidade política. E incorpora as massas até então marginalizadas socialmente (a mais significativa mudança ao longo de sua gestão) pelas mãos do Estado, eliminando qualquer controle social ou sistema integrado de participação dos beneficiados na gestão das ações estatais.
O lulismo opera a partir da integração, pela tutela do Estado, de massas urbanas e rurais ao mercado de consumo de classe média, que historicamente formaram linhagens de pobres e marginalizados, formando uma árvore genealógica do ressentimento, cinismo e desconfiança em relação à política e à institucionalidade pública vigente. A inclusão pelo consumo define sua relação com sua base social e dá o tom do conservadorismo lulista. Por outro lado, a relação atávica do lulismo com o sindicalismo de massas e de ruptura com a ordem ditatorial e o partidarismo originalmente filiado à esquerda democrática constitui um diferencial em relação ao getulismo. Mesmo assim, o respeito ao pluralismo formal não elimina, paradoxalmente, o controle político centralizado.
Sua estrutura Como seu foco é a conciliação de interesses, o lulismo configura-se como um pacto imperfeito. Imperfeito porque não oriundo de um acordo negociado, mas motivado por uma declarada ação de Estado. Sua estrutura básica pode ser assim esboçada:
Trata-se de uma estrutura gerencial centralizada, que adota como seus dois principais suportes programáticos a política de fomento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e plasmado no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O BNDES possui hoje recursos superiores aos disponíveis pelo Banco Mundial. O orçamento do banco brasileiro foi, em 2005, de US$ 25 bilhões, superior aos US$ 20 bilhões do orçamento do Banco Mundial no mesmo período. Segundo o boletim de desempenho do BNDES, em 2008 as micro e pequenas empresas receberam 10% do orçamento disponível, ficando com as grandes empresas e investimentos 76%. Em 2010, as micro e pequenas empresas receberam 14% do orçamento e as grandes ficaram com 73%. O boletim de desempenho divulgado em outubro indica que neste ano foram investidos 6% do orçamento na agropecuária, 50% em projetos industriais, 29% em infraestrutura e 15% em comércio e serviços. A região mais beneficiada foi o Sudeste (61% dos investimentos), seguida pelo Sul (17%) e Nordeste (10%). Na área social, desenvolvimento urbano foi responsável pela maior fatia: 36%.
O BNDES e PAC selam não apenas uma política de fomento, mas um importante pacto produtivo que se articula com outra ponta do escopo do lulismo: as políticas de transferência de renda. Segundo a FGV-RJ, o Programa Bolsa Família (PBF) representou 16% dentre os fatores de ascensão social nas duas gestões Lula, que fez emergir, em especial, a nova classe média (classe que envolve 49% dos brasileiros e que compreende o estrato entre quatro e 10 salários mínimos mensais de renda familiar). O crédito consignado representou algo similar ao peso do PBF. O fator mais significativo para a ascensão social no período, contudo, foi o aumento real do salário mínimo (70%). O gráfico apresentado a seguir, produzido por Marcelo Neri (FGV-RJ), ilustra a mobilidade social no período:
Um terceiro elemento constitutivo do lulismo é o presidencialismo de coalizão. Coalizão de tipo parlamentarista, ou seja, uma estrutura de gestão híbrida. Na prática, um expediente que garantiu maioria governista no parlamento, mas que também esfacelou o já frágil sistema partidário nacional. Os partidos governistas perderam qualquer disposição em elaborar agendas e programas próprios. O lulismo avançou sobre todo o sistema partidário e promoveu o esvaziamento dos quadros da oposição, em especial, do Democratas, estimulados a migrarem para siglas da base governista. No caso do PSDB, o estímulo à divisão entre tucanos paulistas e não paulistas foi evidente. Assim, os partidos passaram, sob a égide do lulismo, a se subordinarem ao neocaciquismo. Lideranças locais e seus apoiadores passaram a negociar, quase nunca à luz do dia, entre si, mesmo não fazendo parte da mesma agremiação. Este silencioso movimento forjou alianças eleitorais – e políticas – pouco compreendidas pelo eleitor, transformado em espectador da ação de profissionais da política.
Pauta social Como último elemento do desenho operacional do lulismo, tivemos a segmentação da pauta social (em conferências nacionais que raramente redundaram em políticas de Estado concretas ou mesmo orçamento público) e financiamento de organizações sociais e populares que diminuíram seu ímpeto de mobilização e pressão política sobre o governo federal.
Enfim, como consequência, o lulismo estreitou os espaços de oposição e pluralidade em nosso país. Mas promoveu um ciclo de desenvolvimento dos mais significativos para a história republicana e promoveu uma acelerada inclusão social pelo consumo.
Trata-se de uma importante ruptura na história do PT e dos movimentos sociais que, nos anos 1980, alimentaram o partido do presidente da República.
Com o lulismo, o PT nunca mais será o mesmo. Nem o Brasil.
Rudá Ricci é sociólogo, doutor em ciências sociais. Autor de Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira (Editora Contraponto/Fundação Astrojildo Pereira, 2010).
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