segunda-feira, 3 de junho de 2013

As estatais,“sacos sem fundos”?

A verdade sobre as privatizações do governo de FHC



No primeiro semestre de 1997, a Telebrás ainda era uma empresa estatal. Mas seu lucro, naqueles seis meses, deu um salto de 250%, passando para 1,8 bilhão de reais, contra 500 milhões de reais em igual período do ano anterior. Fenômeno similar ocorreu com as empresas de energia elétrica: a lucratividade da Eletrobrás explodiu para 1,5 bilhão de reais, com praticamente 200% de avanço sobre os 550 milhões de reais do ano anterior.

Como explicar esses saltos, que desmentem desde já as afirmações repetidas pelo governo FHC e pelos meios de comunicação de que as estatais são um “saco sem fundo”, que devoram o dinheiro do Tesouro?
Não houve “milagre” algum. Pura e simplesmente, como já visto anteriormente, o governo havia, finalmente, começado a eliminar o congelamento das tarifas dos serviços das estatais, atualizando-as. Bastou dar início aos reajustes negados durante  anos, enquanto a inflação continuava a aumentar os custos das estatais, para a situação se inverter e os lucros dispararem. Sem privatização.

Os prejuízos que o achatamento de tarifas e preços trouxe para as estatais teve efeitos que o consumidor conhece bem: nesses períodos, elas ficaram sem dinheiro para investir e ampliar serviços. Explicam-se, assim, as filas de espera para os telefones, ou as constantes ameaças de “apagões” no sistema de eletricidade. Ou,dito de outra forma: não é verdade que os serviços das estatais tenham se deteriorado por “incompetência”. Como também é mentira que “o Estado perdeu sua capacidade de investir”, como diz a campanha dos privatizantes. O que houve foi uma política econômica absurda, que sacrificou as estatais.
Além do congelamento das tarifas, houve outra decisão – absolutamente incrível – que prejudicou os investimentos das estatais de todas as áreas. Por incrível que pareça, repita-se, em 1989 surgiu um decreto do presidente da República, nunca revogado, pura e simplesmente proibindo o banco oficial, o BNDE (hoje BNDES),de realizar empréstimos a empresas estatais.

Cancelando a história

Proibir um banco estatal de financiar empresas estatais, de setores vitais para o país, é uma decisão esdrúxula. Mas, no caso do BNDES, chega à beira da insanidade, porque esse banco, como o próprio nome – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (e Social) – diz, foi criado no governo Juscelino Kubitschek exatamente com o objetivo de fornecer recursos para a execução de projetos de infraestrutura que exigem desembolsa de bilhões e bilhões – e precisam de alguns anos para sua execução. Mais especificamente, dentro da filosofia desenvolvimentista do governo JK, o BNDES disporia de recursos retirados do Imposto de Renda (e outras fontes de “impostos”, como o PIS-Pasep), para permitir a construção de usinas hidrelétricas, ferrovias, rodovias, portos, sistemas de telecomunicações, enfim, toda a infraestrutura que o processo de industrialização exigia. Um instrumento estratégico, em resumo, capaz de viabilizar a política de desenvolvimento de longo prazo, incumbido de dar apoio às áreas escolhidas como prioritárias.

É, portanto, incrível que, de uma penada, o governo tenha cancelado o próprio motivo de criação do banco, ao proibir que ele financiasse as estatais, que passaram então a depender de seus próprios lucros – ou de empréstimos internacionais – para a execução de seus projetos. As duas alternativas, obviamente, foram prejudicadas pelo congelamento de tarifas e preços, notadamente nas áreas de siderurgia (aço), telecomunicações e energia. Para os setores em que o governo exerceu menor controle de preços, como mineração e petróleo, os cofres dos banqueiros internacionais continuaram abertos, desmentindo outro mito vendido pela campanha de desmoralização das estatais, a saber, que elas tinham “esgotado sua capacidade de financiamento no exterior”. Até hoje, a Petrobrás, mesmo em fases de grave turbulência da economia brasileira, consegue facilmente empréstimos externos. O governo é que a tem impedido de recorrer a essas fontes para acelerar a produção de petróleo; portanto, não é por sua culpa que o Brasil não é auto-suficiente em petróleo até hoje, argumento desonestamente utilizado para abrir caminho à privatização da Petrobrás na surdina, operação já em andamento (veja mais à frente).

Dividendos, mais mentiras

Na campanha contra as estatais, foi insistentemente repetido o argumento de que elas “absorvem” dinheiro do Tesouro e “rendem” muito pouco para ele. Divulgou-se, por exemplo, que a Vale do Rio Doce “rendia” mais para os funcionários do que para o Tesouro (isto é, para toda a população), apontando-se que a quantia que a empresa destinava ao fundo de aposentadoria dos seus funcionários era maior do que o valor pago para o Tesouro, sob a forma de dividendos. O argumento é vergonhoso. Pura má-fé. Por quê? Em primeiro lugar, porque efetivamente é verdade que, para cada 1 real de contribuição paga pelos funcionários ao fundo de pensão, a Vale contribuía com o dobro, ou 2 reais. Absurdo? Não. É assim que os fundos funcionam, inclusive para as empresas privadas. E atenção: segundo os dados oficiais, a Vale até contribuía com valores abaixo dos padrões do mercado, pois as empresas privadas costumam desembolsar dinheiro na proporção de 2,70 reais para 1 real dos funcionários, e não de 2 para 1. Não havia nenhum privilégio a “marajás da Vale”, como se dizia. Ao contrário.

Mas essa não era, ainda, a principal mentira a respeito dos dividendos. Para entender a manipulação da opinião pública, tomem o exemplo de qualquer empresa privada com sócios, acionistas – como o Tesouro era da Vale. Suponha-se que ela tem um capital de 1.000 ações, no valor de 1 real cada, ou 1.000 reais no total. Se, no final do ano, a empresa verificar que teve um lucro de 100 reais, o que faz com esse dinheiro? Entrega tudo aos sócios, para que eles façam uma grande farra? Obviamente, não. Os próprios sócios vão querer que, do lucro de 100 reais, a empresa lhes entregue uns 15 ou 20 reais, isto é, 15% a 20%, sob a forma dos chamados dividendos. E os outros 85% ou 80%, isto é, 85 ou 80 reais?

Por decisão dos próprios acionistas, as empresas usarão esse dinheiro para novos investimentos, instalações, conquista de mercado. Garantia de crescimento, expansão, lucros cada vez maiores nos anos futuros. Mas como os acionistas vão participar dos resultados dessa evolução da empresa? Os lucros não distribuídos, aplicados, são usados para aumentar o capital da empresa, no caso de 1.000 para 1.080 ou 1.085. Isto é, o acionista passa também a dispor de mais 8% ou 8,5% de ações, que pode guardar e, quando desejado, ou necessário, vender.

Em resumo, o que importa para o acionista é o valor dos lucros totais da empresa a cada ano, e não apenas os dividendos retirados desses lucros. A Vale do Rio Doce, a Petrobrás e as demais estatais agiam exatamente como as grandes empresas privadas,ao menos as bem administradas: entregavam uma parte dos lucros aos acionistas, como o Tesouro, e utilizavam a maior parcela para aplicar em planos de expansão, que rendiam lucros maiores no futuro – além de valorizarem suas ações, se vendidas em Bolsa.
Os críticos dos “dividendos ridículos” pagos pela Vale ou Petrobrás sabem muito bem de tudo isso. Mentiram à opinião pública, para jogá-la contra as empresas estatais e ganhar apoio para a privatização.

Quem pensa nos pobres?

Na verdade, em lugar de “sugar” o Tesouro, as estatais foram utilizadas, ou “sugadas”, pelo Tesouro, para desempenhar funções que na verdade cabiam ao governo. Nesse papel, sua lucratividade também era puxada para baixo. Exemplos? No próprio caso das telefônicas, como apontado em capítulo anterior, o governo sempre teve a preocupação – antes da privatização –de manter preços mais baixos para os serviços utilizados pela maioria da população – como as ligações locais, as fichas dos orelhões –, para beneficiar os brasileiros de menor renda. A mesma coisa para tarifas de energia elétrica e água, mais baixas para as contas de residências com menor consumo. Nessa política de “paga mais quem ganha mais”, os serviços utilizados pelos mais ricos (interurbanos, ligações internacionais) pagam preços mais altos, para cobrir parte dos custos ou mesmo dos prejuízos trazidos pelos serviços mais baratos, utilizados pela população mais pobre.

As estatais, portanto, eram utilizadas também como instrumento de maior justiça social, ou “redistribuição de renda”, como dizem os economistas. Em outros países, o governo adota a política de preços mais baixos para a população mais pobre, mas é ele mesmo, governo, que “banca” os prejuízos dessa política. Como assim? O Tesouro paga às empresas fornecedoras, mesmo se forem estatais, a “diferença” correspondente à redução dos preços. No Brasil, a população é preponderantemente pobre, e por isso os serviços mais sofisticados – e mais caros –, cujo faturamento deveria ser capaz de compensar ao menos em parte os serviços mais baratos, são proporcionalmente pouco utilizados. Vale dizer: a receita que eles fornecem não é suficiente para assegurar o nível normal de lucros.

Com a privatização, o governo eliminou – antes mesmo da venda das estatais – os subsídios cruzados nas contas de telefones e de energia. Por isso mesmo, os aumentos mais violentos de tarifas ocorreram para as chamadas locais, ficha telefônica etc. Não há mais tratamento especial para a população mais pobre. Tudo para garantir maiores lucros aos “compradores”. Tratamento que as estatais não recebiam.

Ah, a gasolina cara...

De tão manipuladas, chegam a ser revoltantes as críticas à Petrobrás e aos preços da gasolina no Brasil, “os mais altos do mundo”, como berram erradamente os críticos. Nunca se diz à população que, ao longo dos anos, a Petrobrás sempre teve direito a uma parcela mínima sobre o preço do litro de gasolina e de outros produtos, com a maior parcela sendo representada por impostos, taxas e, em determinados períodos, até por uma fatia para “baratear o álcool”. 

Para se ter uma ideia da realidade: em outros países, a margem (porcentagem) de lucro das distribuidoras é três vezes maior do que a recebida pela Petrobrás, que se limitava a 9 centavos por litro, quando o litro da gasolina estava a 59 centavos. Mas isso não é tudo. Assim como os subsídios à população pobre reduziam os lucros das teles e empresas de energia, a Petrobrás também pagou o preço de decisões que o governo tomou em favor de outros setores, por considerá-los “estratégicos” dentro da política econômica do momento. 

Para permitir que a indústria petroquímica nacional tivesse preços capazes de enfrentar a concorrência internacional, por exemplo, a Petrobrás durante longos anos vendeu a nafta, matéria-prima do setor, a preços mais baixos, com um “prejuízo” acumulado que chegou aos 4 bilhões de dólares. Na mesma linha, as siderúrgicas estatais,como CSN, Cosipa, Usiminas, tiveram os preços do aço achatados em até 75%, acumulando imensos prejuízos em seus balanços. Somente quando se preparava a privatização é que o aço teve aumentos de até 300% nos preços. 

Por que o achatamento? O governo impôs preços mais baixos na venda do aço nacional para que as indústrias de automóveis, eletrodomésticos, máquinas e equipamentos, principalmente, tivessem custos mais baixos e conseguissem exportar, ou evitar importações, trazendo dólares para o país. As siderúrgicas estatais, portanto, também foram utilizadas como arma na guerra para obter dólares (e conter a inflação).
Por isso, ficaram arruinadas. É lamentável que os consumidores de aço ou nafta, que foram beneficiados com subsídios das siderúrgicas estatais e da Petrobrás, nunca tenham dito uma palavra para explicar à opinião pública que essa política foi a principal culpada pelos prejuízos das siderúrgicas – e pela menor lucratividade da Petrobrás –, permitindo que a população fosse convencida de que as estatais “sugavam” o Tesouro.

Mais tecnologia, menos marajás

A Petrobrás ganhou títulos mundiais de campeã no desenvolvimento de técnicas para perfurar poços no fundo do mar, em grandes profundidades, quilômetros abaixo da superfície. E, graças a elas, descobriu poços capazes de produzir 10 mil barris de petróleo por dia. Cada poço. Recordes fabulosos que somente são igualados por poços dos países árabes. A Vale do Rio Doce, antes mesmo da sua privatização, já era a maior exportadora de minério de ferro do mundo. E uma de suas empresas subsidiárias, a Docegeo, pesquisou e fez um mapeamento dos minerais existentes no Brasil inteiro. Foi convidada a realizar pesquisas equivalentes em outros países. 

Graças à sua tecnologia, a Vale do Rio Doce descobriu, em plena selva amazônica, em Carajás, a maior província mineral do mundo, com jazidas não só de ferro, mas de grande variedade de minérios, inclusive ouro...A Embraer, estatal fabricante de aviões, sempre foi a única indústria aeronáutica – existente em um país menos desenvolvido –fora do circuito dos países ricos, com tradição na área – e capaz de roubar mercado das empresas multinacionais no filão que explora, isto é, a produção de aviões de porte médio. 

Na área de telecomunicações, a Telebrás mantinha desde os anos 1970 um Centro Tecnológico, em Campinas, responsável por pesquisas que resultaram na produção de equipamentos com tecnologia de ponta, que fabricantes nacionais passaram a exportar para outros países. Sobram exemplos como esses para mostrar que são descabidas as afirmações, repetidas na campanha de desmoralização das estatais, de que elas seriam ineficientes e incapazes de desenvolver tecnologia própria. Por que, a despeito do prestígio internacional,se formou essa imagem negativa aqui dentro? Um dos principais motivos foram, certamente, as falhas e a deterioração dos serviços de telefonia e energia elétrica, exatamente aqueles com os quais o público tem contato direto. Uma deterioração que nada teve a ver com a deficiência tecnológica e, sim, com as políticas equivocadas de governo, que trouxeram prejuízos e limitações financeiras às estatais, como visto antes. Mas que foi largamente explorada na manipulação da opinião pública.

O falso “inchaço”

Os meios de comunicação sempre martelaram a tecla de um suposto número excessivo de funcionários, tanto na máquina do governo como nas estatais – agravado, ainda, pela existência de “marajás” e salários altíssimos. O próprio ministro Bresser Pereira, quando à frente da pasta da Administração e Reforma do Estado, insistiu nessa tese, durante longos meses, como argumento para a implantação da célebre “reforma administrativa”, uma arma para acelerar o desmantelamento do Estado. Subitamente, após um cadastramento do funcionalismo, Bresser Pereira foi forçado a reconhecer publicamente o óbvio: o número de funcionários públicos no Brasil é, na verdade, baixo (fato previsível, diante da escassez ou mesmo inexistência de serviços públicos essenciais para atendimento da população, no país). Pode até haver distorções em algumas áreas, e certamente elas existem, mas nesse caso o problema deveria ser atacado com medidas específicas,e não com uma “guerra” desmoralizante contra todo o funcionalismo – e o Estado. O remanejamento de funcionários, adotado de forma leviana e irresponsável no governo Collor, seria uma saída a ser reconsiderada.

A caça aos marajás

O mesmo raciocínio se aplica aos célebres “marajás”, existentes também entre os aposentados, funcionários ou não. Sabe-se que são casos excepcionais, um número mínimo em relação ao total de funcionários da máquina governamental ou das estatais, e resultantes de brechas da lei – ou de abusos, em fases de administração “permissiva”. Em qualquer dos casos, a correção das aberrações certamente teria apoio das próprias entidades sindicais ou representativas dos funcionários públicos ou de estatais, que, inversamente, jamais poderiam concordar com o assalto generalizado contra os direitos do universo dos trabalhadores. Mas o governo preferiu essa última opção.

A ofensiva contra os pretensos “marajás” registrou episódios cômicos, e bastante ilustrativos da falsidade dos argumentos do governo. No começo do governo FHC, chegada a hora de formar a equipe de técnicos de determinado nível para a máquina oficial, “descobriu-se” ser impossível recrutá-los porque os salários na área oficial eram muitíssimo inferiores aos pagos por empresas privadas. O governo decidiu então criar cargos de assessores especiais,com salários diferenciados e, para não ser acusado de estar criando “marajás”, mexeu como sempre os seus pauzinhos. Entregou a uma revista de circulação nacional tabelas e informações sobre salários governamentais, comparados com os salários, para as mesmas funções, pagos por bancos e empresas privadas, com diferenças, para mais, de 100% a 200%. A revista não teve dúvidas: divulgou o material em página dupla. Mas revista e governo foram incapazes de reconhecer, para o público, que a existência de marajás é uma exceção, e que o funcionalismo é, em sua imensa maioria, pessimamente remunerado. Da mesma forma que poderia ter reconhecido, também, que o problema enfrentado pelo governo para recrutar especialistas, a questão salarial, existe para empresas estatais. É óbvio que elas precisam valer-se de salários equivalentes aos da iniciativa privada para não perderem “cérebros” em cuja formação investiram e que, em alguns casos, são realmente indispensáveis.

Seria ingênuo tentar negar que, como em qualquer área da economia, há distorções em algumas estatais, em termos de número de funcionários ou mesmo vantagens (14º e 15º salários, por exemplo) que não estão ao alcance da massa de trabalhadores. No entanto, em lugar da campanha difamatória contra as estatais, abrindo caminho para a privatização, haveria toda uma gama de reestruturações e mesmo reformas (reais) a serem debatidas e implantadas. O governo fez a sua opção, sem diálogo. O país perdeu com a privatização.

A preço de banana, sim

O falecido ministro Sérgio Motta previa que a privatização do sistema Telebrás, isto é, das empresas telefônicas de todo o país,renderia 35 bilhões de reais ao governo. Com a aproximação dos leilões, e com base em estudos feitos por empresas de consultoria internacionais, o governo acabou pedindo um preço mínimo quase três vezes menor, ou 11,2 bilhões de reais – que, depois, por motivos que veremos adiante, foi aumentado para 13,5 bilhões de reais. Além de muito distante do dinheiro gordo previsto pelo então ministro Sérgio Motta, esse valor representaria o recebimento imediato de apenas 5,4 bilhões de reais, já que a entrada estava fixada em 40% do valor total. No final das contas, as teles foram compradas com ágio e renderam 22,2 bilhões, com uma entrada de 8,8 bilhões de reais (os 40%).

 O preço ficou nada menos de 13 bilhões abaixo da cifra acenada pelo antigo ministro das Comunicações. Mas há detalhes ainda mais duvidosos na privatização das teles, como os investimentos feitos pelo governo a partir de 1996 no sistema e os “erros” nos cálculos dos preços cometidos pelas consultorias internacionais, e oficialmente reconhecidos. A venda da Telebrás é apenas um dos exemplos das perdas que teve o país com as privatizações.

Subtrair, subtrair...

Em 1996 e 1997, já decidida a privatização, o governo investiu 16 bilhões reais no sistema Telebrás e, somente no primeiro semestre de 1998, às portas do leilão realizado em julho, mais 5 bilhões de reais. No total, 21 bilhões de reais, praticamente mais de duas vezes e meia (250%) os 8,8 bilhões de reais recebidos de entrada pela sua privatização.

Há mais, porém. O sistema Telebrás, graças ao descongelamento rápido das tarifas e à expansão do número de linhas e serviços trazidos por aqueles investimentos do governo, apresentou faturamento e lucros crescentes, que chegaram aos 4 bilhões de reais em 1997 – e pela lógica continuariam a crescer nos anos seguintes. Além disso, não se pode esquecer o cálculo do retorno que o governo poderia obter sobre esse dinheiro aplicado nas teles: mesmo a juros médios de 20% ao ano, baixíssimos em relação ao padrão brasileiro naquele período, os 21 bilhões gastos pelo governo deveriam render aproximadamente 9 bilhões de reais nos mesmos 30 meses.

E os demais investimentos realizados ao longo de décadas, antes de 1996, para formar o patrimônio da Telebrás? Não entram no preço da venda? Não. É isso que a maioria dos brasileiros não entendeu até hoje – e por isso aceita passivamente a entrega das estatais aos preços anunciados. O preço de venda das estatais não leva em conta o patrimônio que elas acumularam, o critério é outro: simplificadamente, calcula-se todo tipo de faturamento que a empresa poderá ter nos próximos anos: desse faturamento, subtraem-se as despesas previstas (para a empresa operar, funcionar), levando-se em conta, ainda, os juros que o “comprador” deveria receber, ao longo desses mesmos anos, sobre o capital aplicado. 

 Em lugar do valor dos bens que a empresa acumulou, levam-se em conta os lucros que ela deve oferecer ao longo de determinados períodos: no caso da Telebrás, de dez anos, de 1998 a 2007. O fato é que os preços recomendados por essas consultorias, geralmente multinacionais, sempre provocaram críticas, por serem considerados excessivamente baixos. A Rede Ferroviária Federal,por exemplo, teve uma avaliação absurdamente baixa, de apenas 33% do valor apontado por técnicos, isto é, seu preço mínimo deveria ter sido aumentado em 200%. O exemplo da Telebrás mostrou que as críticas são plenamente justificáveis, com critérios – e até erros – absolutamente inexplicáveis.

Os erros inaceitáveis

O “fluxo de caixa descontado” – como dizem os técnicos – que o sistema Telebrás poderá oferecer em dez anos foi calculado em 90 bilhões de reais pelas consultorias escolhidas, já considerado baixo diante de previsões iniciais que apontavam para valores de até 120 bilhões de reais. Não bastasse isso, elas sugeriram que, desse valor, fossem subtraídas despesas “novas” que, segundo diziam, os “compradores” passariam a ter. Dessa forma, o preço das teles ficaria em meros 11,2 bilhões de reais... Foram nada menos de 24% de desconto – ou um quarto do “valor” do fluxo – para as teles do sistema de telefonia fixa e incríveis 65% – ou dois terços do valor – para a telefonia celular... Mesmo com a onda de protestos, o Planalto recusou-se a determinar novos estudos, “para não atrasar os leilões”. Fez algumas contas “de chegar”, e elevou de 11,2 bilhões de reais para 13,5 bilhões de reais o preço mínimo para a compra do bloco de 19,24% das ações, que asseguravam o controle das empresas. Enterrou, assim, qualquer debate.

Afinal, que descontos foram sugeridos pelas consultorias? É preciso relembrar que, para as privatizações, o governo previu que haverá sempre duas empresas concorrentes operando em cada região, tanto para os celulares como para a telefonia fixa, a fim de assegurar um clima de competição permanente. Com essa concorrência, argumentaram as consultorias, haveria várias transformações no mercado, capazes de reduzir o faturamento e o lucro dos “compradores”, destacando-se os “gastos com comercialização”, isto é, basicamente comissões pagas sobre vendas e propaganda, e perda de market share, isto é, de uma parcela do mercado, para novos concorrentes.

A redução de preços proposta pelas consultorias por causa dessas mudanças foi claramente exagerada. Para a comercialização, um abatimento de 6% e 13%, respectivamente, para as telefonias fixa e celular. E para o chamado, pedantemente, market share?
Um desconto – sobre todo o valor da empresa – de nada menos que 13% no caso da telefonia fixa, e de 30% para os celulares.
Somados todos os descontos, como se disse, os preços mínimos de venda, com base no “fluxo de caixa”, foram reduzidos em generosos 24% para a telefonia fixa e incríveis 65% para a telefonia celular...

As distrações imperdoáveis

Os critérios utilizados para propor os descontos já eram intrigantes. Além deles, porém, houve erros oficialmente reconhecidos e que certamente resultaram em bilhões de prejuízos para o
Tesouro – os contribuintes –, “fazendo a festa” para os compradores:

COMERCIALIZAÇÃO – parece incrível, mas é verdade. As consultorias incluíram nos cálculos o aumento de despesas com comercialização. Mas se “esqueceram” de incluir nas contas as receitas, isto é, o faturamento que os compradores terão com a venda de milhões e milhões de linhas – sobre a qual, exatamente, serão pagas as comissões.

PARTICIPAÇÃO NO MERCADO – o segundo erro é ainda mais escandaloso. As consultorias calcularam que as novas concorrentes, que entrarão futuramente no mercado, obviamente vão abocanhar uma fatia desse mercado, que era dominado em 100% pelas empresas estatais até a privatização. Até aí, tudo óbvio. Mas a proposta de descontos, por causa da concorrência e da perda de market share,é absolutamente descabida. Por quê? Os próprios estudos das consultorias  preveem, por exemplo, que no caso da telefonia fixa o mercado crescerá nada menos que 265%, isto é, quase quadruplicará, até 2007. Então, atenção: mesmo que as novas teles concorrentes fiquem com 20% do mercado e as “antigas”, privatizadas, “recuem” para e, portanto, receita e lucros. Ao contrário. Se o mercado crescer 265% e elas ficarem com 80% desse novo total, as teles antigas também estarão crescendo violentamente: nada menos que 195%;ou seja, sua clientela praticamente triplicará. Em lugar de propor abatimentos por causa da “perda de fatia de mercado”, as consultorias deveriam ter proposto preços maiores para as teles ,já que elas continuarão com lucros crescentes em um mercado em expansão.

Governo com pressa

O governo não descobriu esses “erros”? Descobriu, sim. Nos dias que antecederam ao leilão das teles, uma colunista do jornal O Estado de S. Paulo – bastante relacionada com a equipe econômica – foi interpelada por um empresário-leitor que havia tido, na época, acesso aos estudos das consultorias. A colunista, porta voz habitual do governo, foi forçada a admitir que realmente as consultorias tinham se “esquecido” de incluir as receitas nas contas. Mas, alegava, isso era “facilmente corrigível”. Quem pensou em novos estudos errou. O governo saiu pela tangente, com o aumento simbólico de 11,2 bilhões para 13,5 bilhões de reais – citado anteriormente –, para o preço mínimo do bloco de controle de 19,24% das teles.

À primeira vista, a pressa do governo teria até uma explicação.

Desde maio de 1998, os banqueiros e investidores internacionais já estavam fugindo, cortando o crédito, do Brasil, e o real caminhava para a desvalorização. Os leilões da Telebrás, a toque de caixa, eram uma forma de captar dólares e reais, mesmo que em quantidades abaixo do preço justo, e permitir que o governo mantivesse a ilusão do real até a reeleição. Prevaleceu a política de vender as estatais a preços de banana, com a “torra” de um patrimônio de 120 bilhões de reais. Mas o preço baixo da Telebrás não foi uma exceção.

Lucros, mesmo sem investir

O consórcio que arrendou o Tecon-1, gigantesco terminal – o maior do país – para a movimentação de contêineres no porto de Santos, um ano depois festejava os ganhos obtidos. Os “compradores” ofereceram um ágio de 170% sobre o preço calculado e pedido pelo governo, e por isso desembolsaram uma entrada de 200 milhões de reais. Mesmo assim, àquela altura já estava claro que o retorno sobre essa “entrada” seria obtido em três anos, e não em sete, como previsto. Motivo da lucratividade acima das previsões?

Grandes investimentos? Não. Os compradores deveriam, segundo o governo, gastar 130 milhões de reais imediatamente. Mas não foi preciso desembolsar nada: “Precisamos apenas alugar umas cinco ou seis empilhadeiras”, confessou o porta-voz do consórcio. Vale dizer, o terminal não estava sucateado, nem precisava de gastos urgentes com equipamento – eterno pretexto para “vender” as estatais a preços incrivelmente baixos. Uma invencionice que ficou plenamente evidente também no caso da Malha Oeste, com as recentes notícias de que os investimentos necessários a cargo do consórcio não irão além de 30 milhões de reais em seis anos, ou meros 5 milhões por ano, contra a cifra inicial, de 90 milhões de reais em cinco anos, ou 18 milhões por ano, anunciada à época do leilão.

 E mais: assim como faz com outros “compradores” de estatais, o BNDES concedeu um empréstimo ao consórcio, de 10 milhões de reais... ou o equivalente ao dobro de investimentos por ano previstos para o consórcio. É essaa rotina: os “compradores” acabam recebendo, muitas vezes, empréstimos superiores à própria “entrada”, ou ao próprio preço “pago” pela estatal. A conclusão mais importante dos erros sobre as necessidades de investimentos dos “compradores” se refere aos próprios cálculos de preços fixados para as estatais. Há os investimentos que não são feitos. E há um sem-número de fontes de “lucros invisíveis” que, se incluídos nos cálculos, teriam aumentado os preços das estatais, isto é, reduzido os prejuízos do Tesouro, dos contribuintes, do país. 
Veja alguns exemplos:

BANCOS – os preços de “venda” têm sido ridículos. O Banerj, como já dito, foi comprado por 330 milhões de reais – e o governo do estado tomou um empréstimo de 3,3 bilhões de reais para arcar com o fundo de pensão. Há mais, porém. Outras fontes de lucros foram asseguradas para o “comprador”: “monopólio”, durante cinco anos, das contas dos funcionários públicos, recebimentos de impostos e contas em geral do governo estadual. Mercado cativo.Lucro garantido.

ENERGIA – as empresas distribuidoras, como a Light e a Eletropaulo, distribuem energia gerada por empresas estatais. À época da privatização, compravam a 30 reais o megawatt-hora e o vendiam a 84 reais.

ENERGIA, AINDA – dividindo-se o valor pago nos leilões pelo faturamento obtido com a venda de energia, pode-se saber quanto o “comprador” pagou por gigawatt-hora que vai fornecer. No leilão da Escelsa, apenas 111 reais; na Light, ainda modestos 179 reais; na venda da CPFL, 240 reais. Bem distante do padrão de 400 reais que se esperava.

REDE FERROVIÁRIA – o governo previa, inicialmente, arrecadar 4 bilhões de reais. Vendeu todas as malhas – a prazo – por aproximadamente 1,4 bilhão de reais. Investimentos previstos pelos “compradores” para a recuperação de 400 locomotivas: 240 milhões de reais. Em 20 anos. Ou 12 milhões de reais por ano.

VALE DO RIO DOCE – às vésperas do leilão, foi confirmada a descoberta de imensas jazidas, inclusive de ouro, ainda não devidamente estudadas (“medidas”) pela empresa e que ficaram fora do preço fixado. Solução do governo, para não adiar o leilão: emissão de títulos (debêntures), garantindo que, quando essas jazidas entrassem em exploração, o Tesouro participaria dos lucros resultantes da produção de minério. Solução aceitável? Não. O governo participará só dos lucros. Não participará do aumento do valor do patrimônio da Vale – e consequente valorização das ações da empresa resultante das novas jazidas.

EMPRÉSTIMOS ANTIGOS – os lucros dos “compradores” podem ser aumentados também com a liquidação de empréstimos contraídos pelas estatais, para execução de grandes projetos no passado. A própria Vale do Rio Doce hoje anuncia lucros acima de 1 bilhão de reais. Mas a façanha tem explicações. Em 1996, por exemplo, a Vale pagou nada menos de 550 milhões de dólares em amortização e juros sobre empréstimos tomados para o “fantástico” Projeto Carajás, e mesmo assim lucrou 338 milhões de reais. Somadas, as duas cifras mostram um resultado na faixa dos 900 milhões de dólares. Em 1998, haveria apenas 72 milhões de juros e amortização, da mesma operação, a pagar. Mais lucro para o “comprador”.

ATIVIDADES PARALELAS – sabia-se, havia muitos anos, que as empresas de telecomunicações – o setor de crescimento explosivo no mundo, neste final de milênio –, quando fossem expandir suas redes, procurariam “alugar” infraestruturas existentes, para reduzir custos. Mais claramente: procurariam, para suportar sua fiação, aproveitar as redes de energia elétrica (e mais: redes de ferrovias eletrizadas, gasodutos etc.). Essa fonte de renda extra deveria ter sido incluída nos preços das distribuidoras de energia elétrica, ou mesmo da Rede Ferroviária Federal etc. Não foi. Agora, os “compradores” já estão faturando com o aluguel... Mais lucro “imprevisto”.

ESTOQUES – as estatais são obrigadas, por lei, a realizar licitações para a compra de materiais de todos os tipos, sejam blocos de anotações nos escritórios ou equipamentos para usinas. Por isso mesmo, diante do prazo exigido pelas licitações, as estatais mantinham estoques em níveis elevados, como medida de segurança contra eventuais demoras e consequente falta de material, prejudicial a seu funcionamento. Frequentemente, os “compradores” de estatais proclamam que aumentaram seus lucros, de imediato, porque reduziram os estoques – já que podem comprar, sem licitação; isto é, venderam estoques em que as estatais tinham imobilizado grandes somas de dinheiro... Interpelada por não estar realizando compras, a Telefônica de São Paulo, por exemplo, alegou que somente no segundo trimestre de 1999 seus estoques estariam chegando ao fim e, portanto, exigindo reposição. Como o leilão de venda da Telesp ocorreu em julho, isto significa que a antiga estatal teria deixado um estoque para nada menos de oito meses... “Quantas centenas de milhões de reais foram então presenteados aos compradores”?

AS TELES, AINDA estudos adotados pelo BNDES afirmavam que o Brasil precisaria investir 8,2 bilhões de reais por ano para modernizar seu sistema de telecomunicações, estendendo-o a toda a população (a tal “universalização”). As dimensões gigantescas desses investimentos foram, inclusive, um dos argumentos utilizados em defesa da “privatização”. Alegava-se que o governo não teria condições de desembolsar tal volume de recursos (ver a publicação “Privatização na indústria de telecomunicações: antecedentes e lições para o caso brasileiro”, de Florinda Antelo Pastorize, editada pelo BNDES em julho de 1996). No entanto, os estudos das consultorias contratadas para calcular o preço de venda do sistema Telebrás preveem a necessidade de investimentos muito inferiores, a saber, 50 bilhões de reais em dez anos (1998 a 2007); e nesse total já foram incluídos – marotamente – os 5 bilhões de reais aplicados pelo governo em 1998. Restariam aos compradores, assim, investimentos de 45 bilhões de reais em nove anos, ou 5 bilhões de reais por ano, contra a previsão de 8 bilhões do mesmo BNDES... Conclusões: confirma-se que os investimentos maciços de 7,5 bilhões e 8,5 bilhões de reais em 1996 e 1997,mais os 5 bilhões de reais no primeiro semestre de 1998, foram um presente para os “compradores”, que receberam sistemas ampliados e capazes de gerar lucros bem maiores – e muito mais rapidamente. Em consequência, os preços das teles deveriam ter sido maiores.

Está melhorando?
A política de vender as estatais a preços de banana não está sendo abandonada. Ao contrário. Basta lembrar que, no começo de  1999, houve o leilão das concessões das “empresas espelho” para a telefonia, isto é, para a escolha das empresas que vão concorrer com as ex-estatais. O governo previa um preço mínimo de 1,25 bilhão de reais. Apurou um décimo, ridículos 125 milhões. E bateu o martelo. Bom para os “compradores”.

A desmoralização dos bancos estatais

 O presidente da República, em pelo menos duas grandes concentrações de agricultores, reconheceu publicamente uma distorção que é sabida até por crianças do interior: os bancos privados não fazem empréstimos, a não ser em escala quase nula, aos produtores rurais. Quem desempenha esse papel – hoje de forma insatisfatória, por orientação da equipe econômica? O Banco do Brasil e bancos estaduais como o Banespa (Banco do Estado de São Paulo), regionalmente. O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio reconhece, também publicamente, que os bancos privados não querem fazer empréstimos para as pequenas e médias empresas – mesmo quando o dinheiro a ser aplicado não é deles, mas mero repasse de recursos do BNDES (que só empresta a grandes grupos, confiando as operações pequenas, chamadas de “varejo”, a bancos privados). No mesmo tom, a Câmara de Comércio Exterior do governo reclama, igualmente, que as exportações não crescem porque os bancos privados não querem financiar as vendas externas das pequenas e médias empresas.

Moral da história: do presidente da República a ministros e funcionários do primeiro escalão, há o reconhecimento generalizado de que os bancos privados se recusam a atender determinadas áreas, reforçando assim a necessidade de o governo dispor de bancos oficiais, que assumam funções necessárias ao alcance de metas ou superação de problemas do país e da sociedade. Mesmo assim, em contradição total, o governo Fernando Henrique Cardoso insiste na privatização dos bancos estaduais e prepara a privatização do Banco do Brasil (BB) e da Caixa Econômica Federal (CEF). Houve uma tentativa, do próprio presidente da república, de negar esses planos. Mas ele foi vexadoramente desmentido pelo diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus, que cometeu a inconfidência – em reunião com banqueiros internacionais – de anunciar as privatizações da CEF e do BB (uma inconfidência explicável: Camdessus quis mostrar aos banqueiros internacionais que o governo FHC obedece às ordens do FMI, para convencê-los a restabelecer o crédito para o Brasil...).

Mais uma vez, para conquistar apoio da opinião pública à privatização, o governo alega que o Banco do Brasil e o Banespa estão “quebrados”, os demais bancos estaduais idem, e que a Caixa Econômica Federal apresenta elevados índices de inadimplência nos contratos habitacionais, “exigindo uma administração não sujeita a influências políticas” etc. Tudo falsificação da verdade.

Delenda Banco do Brasil

A desmoralização do Banco do Brasil perante a opinião pública foi uma das “operações de manipulação” mais maquiavelicamente montadas pelo governo FHC. Em entrevista coletiva, com a presença de vários ministros, anunciou-se um prejuízo recorde para o Banco do Brasil, previsto para 6 bilhões de reais somente no primeiro semestre de 1996, e a necessidade de o governo injetar 8 bilhões de reais no banco, para que ele se enquadrasse nas normas em vigor em todo o mundo. Qual a verdade? A equipe econômica “fabricou” o prejuízo. Decidiu lançar como dinheiro perdido no balanço do BB todo e qualquer empréstimo em atraso, mesmo que este atraso fosse de apenas um dia. Qual a manobra? Pelas regras do Banco Central do Brasil (BC), somente devem ser considerados “créditos de liquidação duvidosa” os empréstimos já vencidos e não pagos há mais de dois meses... A equipe, repita-se, lançou como prejuízos empréstimos com até um dia de atraso...

Não se contentou com isso. Meses mais tarde, resolveu lançar como prejuízo, falsificando novamente os balanços do Banco do Brasil, até mesmo os créditos ainda não vencidos, isto é, obviamente sem atraso – mas que podiam ser considerados (pela equipe econômica...) de “má qualidade”, isto é, que “talvez, quem sabe, não venham a ser pagos...”.

Além disso, mesmo com os prejuízos “inventados”, o Banco do Brasil poderia apresentar lucros naqueles balanços. Como assim?
Naquele mesmo momento da operação “destruição do BB”, o governo federal devia nada menos de 7,2 bilhões de reais ao banco, relativos a apenas duas operações (isto é, sem relembrar outras):
5,5 bilhões de títulos da dívida externa que o BB havia sido obrigado a comprar, já vencidos, e 1,7 bilhão de reais em títulos federais, utilizados por grupos privados para “comprar” a Acesita, siderúrgica que “pertencia ao BB” e deveria, portanto, ter recebido o dinheiro ou os papéis, que, no entanto, ficaram para o governo.

A CEF, uma lixeira

Tanto quanto o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal também foi utilizada, ao longo dos anos, para resolver problemas que eventualmente afetassem a economia. Uma utilização muitas vezes de interesse da sociedade mas que, inevitavelmente, reduzia a lucratividade da instituição. No governo FHC, no entanto, a CEF tem sido utilizada para aumentar os lucros dos bancos privados, vergonhosamente obrigada a “engolir” bilhões e bilhões de prejuízos que, na prática, seriam dos banqueiros. 

Como? Na quebra do Banco Econômico, por exemplo, a CEF “comprou” a carteira imobiliária, isto é, os contratos de financiamento da casa própria que o Econômico havia concedido. Valor: 1,7 bilhão de reais. Na quebra do Bamerindus, a mesma coisa. Até aí, a Caixa já estava sendo usada para “engolir” negócios “podres”, com alto nível de inadimplência, ou empréstimos que nunca seriam pagos, de bancos que quebraram. Beneficiando os futuros “compradores”. 

Mas, o pior, é que essa operação virou norma: a Caixa Econômica Federal passou a comprar permanentemente esses ativos “podres”– inclusive de grandes bancos que são lucrativos, aumentando seus lucros e ficando com os prejuízos... E tem mais: a partir de julho de 1996, a CEF passou a “comprar” não apenas os empréstimos concedidos dentro do Sistema Financeiro da Habitação, o antigo BNH, do qual é agente responsável. Não. Até empréstimos concedidos pelos bancos, em seus negócios normais – a chamada carteira hipotecária –, foram transferidos para a Caixa, transformada, assim, em imensa lixeira dos negócios “podres”, capazes de provocar prejuízos para os bancos privados...Enganosamente, a equipe econômica e porta-vozes neoliberais freqüentemente dizem que a inadimplência dos contratos de venda de imóveis é uma “prova” da ineficiência de instituições oficiais como a CEF, que não sabe “selecionar os clientes”. Hipocritamente, fingem não saber que a CEF engoliu dezenas de bilhões de reais em contratos “podres” de outros bancos...

E o Banespa?

Antes mesmo do BB, o Banespa já havia sido vítima de manobras para considerá-lo quebrado”. Poucos dias antes da posse do governador Mário Covas, em seu primeiro mandato, no final de 1994, o Banco Central decretou a intervenção no banco paulista, alegando que o estado havia deixado de pagar uma parcela de um acordo de refinanciamento da dívida, firmado com o governo federal. No entanto, segundo a defesa de um ex-governador paulista, em juízo, o atraso era inferior a dez dias – e as regras do acordo de financiamento previam que qualquer punição somente poderia ser adotada após 30 dias de atraso.

No caso do Banespa, ainda, houve um aspecto nunca explicado suficientemente à opinião pública. Afirmava-se que o banco tinha um “rombo”, que estava “quebrado”, insinuando-se que seria uma situação igual à do Nacional, do Econômico e de outros bancos particulares que quebraram.


Na verdade, no caso desses bancos privados, as dívidas eram superiores aos créditos que os bancos tinham – inclusive a receber. Havia um “rombo”, sim. No caso do Banespa, a situação era outra: o dinheiro do banco não havia “evaporado”, sumido, deixando um “rombo”. Havia, o que não foi satisfatoriamente explicado, um grande devedor, que não estava pagando suas dívidas: o governo do estado. O Banespa nunca quebrou. Quem estava “quebrado” era o governo do estado. Os créditos a receber existiam. O dinheiro existia. Mas a equipe de FHC construiu uma imagem de “quebra” para o Banespa, para abrir caminho para a privatização.

Livro de Aloysio Biondi

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