sábado, 12 de março de 2011
Cruzando a linha: entre o “normal” e o “anormal”
Cruzando a linha: entre o “normal” e o “anormal”
De acordo com o relatório sobre os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) do estado de São Paulo, publicado em 2010 pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), cerca de 10% da população precisa de assistência em saúde mental atualmente, seja ela eventual ou contínua. Entre as dez principais causas de incapacitação por doenças em geral, cinco são por transtornos psiquiátricos. Depressão, alcoolismo, esquizofrenia, transtorno bipolar e transtorno obsessivo-compulsivo são as mais comuns. O quadro corresponde a 12% do total de incapacitações por doenças em geral e cresce para 23% em países desenvolvidos. No mundo todo, os transtornos mentais são responsáveis por uma média de 31% dos anos vividos com incapacitação.
Ainda que os transtornos mentais representem um sério problema de saúde pública, os embates e polêmicas sobre seus diagnósticos e tratamentos, e sobre os limites entre uma doença e outra ainda são muitos. Ao longo da história da humanidade e, consequentemente, do processo de construção dos conceitos envolvendo psiquiatria, psicanálise e psicologia, diversos conceitos e paradigmas entraram em jogo e, ora se destacavam, ora caíam por terra. Isso porque a ideia de “normalidade” ou “anormalidade” está relacionada, em grande medida, a conceitos históricos, culturais e socialmente elaborados, ainda que relacionados, em grande medida, a questões físico-químico-biológicas que interferem no processo de classificação daquilo que é tido como “transtorno mental”.
Normal x anormal
De acordo com a filosofia, a “normalidade” deve ser entendida como um estado de equilíbrio do organismo, seja do ponto de vista do corpo ou da mente. Segundo João de Fernandes Teixeira, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a sentença “de perto, ninguém é normal” já era em grande medida professada pela filosofia e vem cada vez mais sendo estudada e desenvolvida. Embora os filósofos tenham criticado a existência de padrões de normalidade/anormalidade rígidos nos últimos tempos, uma certa classificação é plenamente possível.
“George Canguilhem, por exemplo, tem um livro clássico sobre o assunto, que se chama O normal e o patológico, em que ele nos diz que não é possível usar critérios externos, universais, para definir normalidade. Entretanto, em The disordered mind: philosophy of mind and mental illness, George Graham, filósofo da mente americano, argumenta que a mente insana é aquela na qual a racionalidade foi profundamente afetada. Embora não possamos nos ver mais como um animal inteiramente racional, os distúrbios da racionalidade, quando em excesso, nos levam à mente insana. Nesse sentido, a insanidade é a incoerência quase total, o que leva também a uma desorganização das emoções – as emoções não estão inteiramente separadas da razão, senão, não seríamos sequer capazes de falar delas”, explica Teixeira.
Segundo o pesquisador da UFSCar, a filosofia da mente nunca se preocupou especificamente com o transtorno mental. O livro de Graham é um dos pioneiros, nesse sentido. Para os estudiosos da área, o transtorno mental é enfocado como um dos tipos de problemas que ocorrem na interação entre mente e cérebro. “Esse é o chamado problema mente-cérebro, e é a principal questão da filosofia da mente. Nesse sentido, há várias perguntas como, por exemplo: ‘a depressão e a tristeza podem afetar o cérebro?’ Ou melhor, ‘como uma série de acontecimentos ruins na vida de uma pessoa pode levar a uma modificação de neurotransmissores?’ E há a pergunta na direção inversa: ‘como drogas biopsiquiátricas podem afetar nossa maneira de pensar?’ ‘Será que elas agem só no cérebro ou também na mente?’”, enumera.
Do ponto de vista psiquiátrico/psicológico, as noções de “normalidade” ou “anormalidade” se definem também por meio de padrões culturais e sociais, mas, principalmente, por meio de reações químico-físico-biológicas. Em doenças graves como esquizofrenia, por exemplo, que compõe o grupo das psicoses, os processos de pensamento, entendimento e processamento de informações ficam desconexos e existem graves alterações no contato com a realidade. O paciente sofre com paranoias, transtornos graves de humor, delírios e alucinações (visuais, sinestésicas, e sobretudo auditivas). Diante de um caso como esse, não fica difícil identificar a “anormalidade”. De modo geral, essas características se repetem em vários dos transtornos mentais, mas existem também transtornos relativamente menos “graves” que são mais difíceis de serem diagnosticados e que dependem, em grande medida, de conceitos históricos e culturais, como a depressão, por exemplo. Embora seu potencial para afetar negativamente a vida das pessoas seja grande – pois leva à incapacitação para realizar atividades comuns do dia-a-dia, como diminuição do apetite, alteração de sono, de peso, ineficiência para processar informações, concatenar ideias e fazer escolhas –, durante muito tempo, a depressão não foi encarada como transtorno, e apenas recentemente passou a ser tratada com a devida seriedade.
De acordo com Laura Helena Silveira Guerra de Andrade, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), e uma das organizadoras do relatório do Cremesp citado acima, a Classificação Internacional das Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde, e o Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders (DSM), publicado pela American Psychiatric Association, são os grandes parâmetros para definir esses padrões. “A pessoa tem uma doença se preencher os critérios”, explica Andrade. “Porém, em estudos na população geral, há uma grande porcentagem que tem algum diagnóstico, por exemplo, fobia, mas não tem incapacitação. A incapacitação, o prejuízo em atividades no trabalho, em casa, no relacionamento interpessoal, associada ao diagnóstico é o que realmente implica que a pessoa tem um transtorno que necessita ser tratado”, enfatiza.
De acordo com a psiquiatra, existe uma crença de que as classificações atuais são ateóricas, sem juízos de valor, mas isso tem sido questionado e, segundo ela, não corresponde à verdade. “Tudo depende das circunstâncias. É mais fácil, em casos graves, saber quem é acometido e quem não é. Porém, em casos mais leves, muita coisa depende de valores sociais”, pondera.
Segundo o relatório do Cremesp, a carga dos transtornos mentais não é meramente um reflexo dos índices de psicopatologia, mas de uma série de condições e problemas individuais e da coletividade. Em países desenvolvidos, o uso nocivo ou a dependência de substâncias psicoativas está entre as 10 principais causas de incapacitação, sendo a Doença de Alzheimer e outros quadros demenciais a terceira causa de incapacitação e morte prematura.
Conceitos e paradigmas
Ao longo de suas quatro edições já publicadas, de fato, os DSMs vêm passando por significativas transformações em relação a seus conceitos e procedimentos. A definição de algumas doenças se alterou ao longo dos anos e nas diferentes versões do manual, o que mostra como a compreensão daquilo que é tido como “normal” ou “patológico” muda não apenas conforme os avanços e descobertas da ciência e da tecnologia mas também em relação à cultura e ao período histórico que a rodeia, conformando e modificando conceitos e paradigmas.
No artigo “Classificando as pessoas e suas perturbações: a ‘revolução terminológica’ do DSM III”, Jane Russo e Ana Teresa Venâncio mostram como os conceitos de neurose e homossexualismo, por exemplo, foram caracterizados de diferentes formas ao longo dos anos e das diversas versões do manual. A forma de lidar com os doentes e de compreender e tratar as diferentes manifestações dos transtornos mentais também se alterou ao longo da história e de suas transformações culturais e sociais. Segundo o artigo, havia e ainda há um grande embate conceitual entre a psiquiatria e a psicanálise, e mesmo dentro de cada uma dessas áreas, quando se trata de compreender os distúrbios mentais. A história dos manicômios e a resposta da sociedade a essas instituições ajudam a compreender um pouco desse processo. (Ver reportagens e sobre a história dos manicômios e da reforma psiquiátrica).
De acordo com o relatório do Cremesp, o fato de a faixa etária economicamente ativa sofrer nas últimas décadas forte impacto com problemas sociais graves como desemprego, violência, pobreza, inequidade social, desrespeito aos direitos humanos e, em diversos países, guerras civis e desastres naturais, entre outros, fez com que a população viesse a se tornar muito mais vulnerável a quadros relacionados ao estresse, pós-traumático ou não, e a diversas doenças como depressão, alcoolismo e os transtornos bipolar e obsessivo-compulsivo.
Segundo Teixeira, da UFSCar, a cultura influencia sim, e muito, os limites para aquilo que é tido como “normal” ou “anormal”. “No final do século XIX, falava-se muito em histeria e esse foi o assunto inicial da psicanálise, os famosos Estudos sobre a histeria, de Freud. Hoje em dia, pouco se fala sobre histeria no sentido freudiano e outros transtornos ganharam lugar de destaque, como, por exemplo, as depressões e o transtorno bipolar. As depressões são mais típicas de uma época como a nossa, na qual ‘não há cadeira para todo mundo sentar’, ou seja, em que há excesso de competitividade, o que acaba levando a uma maior existência de ‘perdedores’ do que ‘ganhadores’ e, por isso, um número maior de pessoas acometidas pela depressão, embora essa seja apenas uma das possíveis causas da doença”, acentua.
A classificação e suas implicações
No documentário Omissão de socorro, o cineasta Olívio Tavares de Araújo mostra a dura realidade dos doentes mentais depois da política de extinção dos leitos psiquiátricos no sistema público de saúde. Araújo já havia rodado, na década de 1980, um filme sobre travestis vivendo de prostituição, e outro, no início da década de 1990, sobre soropositivos, quando a aids ainda era uma doença inevitavelmente fatal. O cineasta conta que teve problemas parecidos durante a produção dos três filmes. “O principal é que da classe média baixa para cima, ninguém quer se expor. Acabam predominando, de longe, as personagens pobres, e é preciso muito cuidado para não ficar parecendo que o problema tratado afeta só a pobres. Senão, o cara vê o filme e diz: ‘Ah, mas isso é lá com eles. Eu estou fora’. Em todas as minorias (‘loucos’, soropositivos, deficientes físicos, negros, homossexuais etc.), a resposta é absolutamente simples e transparente. Ninguém quer olhar para as próprias feridas, sejam elas já existentes, sejam apenas possíveis de acontecer um dia. No caso da ‘loucura’, então, já imaginou? Até pessoas das mais esclarecidas têm medo de psiquiatra. Soma-se o terror do desconhecido, do incontrolável, do abismo”, aponta Araújo. “Acho que o filme deixa absolutamente evidente a diferença entre doentes tratados e não tratados, e mostra que em muitos casos, o tratamento passa forçosamente pelo hospital. Doença não tem ideologia”, destaca.
Para Teixeira, da UFSCar, essa dicotomia entre o “normal” e o “anormal” prejudica, e muito, a vida em sociedade, porque faz com que o “diferente” não seja aceito e acabe sendo até mesmo recriminado e escondido. “Tenho a impressão de que nunca vivemos uma época em que se tenta ‘normalizar’ as pessoas tanto quanto a atual. O desvio, mas também a originalidade, são fortemente coibidos atualmente. Todo mundo tem de ser igual. Esse, aliás, é o pano de fundo da neurociência hoje em dia: todos são iguais porque têm um cérebro igual. Acho isso tão ridículo como dizer que os cardápios de todos os restaurantes do mundo deveriam ser iguais porque temos todos um estômago igual. Com esse discurso, tenta-se eliminar as diferenças e, entre elas, os grupos diferentes”, argumenta. “Recentemente, o presidente do Irã declarou que no seu país não há homossexuais. Nunca vi nada tão forte no sentido de enquadrar as pessoas na ‘normalidade’. Mas ele não é o único caso. Muitas culturas fazem um discurso que pretende eliminar a exclusão, a homofobia etc, mas acho que fica só no nível do discurso. Claro que não quero dizer que as leis não devam existir, mas se soubéssemos lidar bem com as diferenças, não precisaríamos de legislação que punisse a discriminação”, aponta o filósofo.
Para saber mais:
Roda Viva, com o psiquiatra Valentim Gentil Filho:
Documentário Omissão de Socorro, de Olívio Tavares de Araújo:
Por Cristiane Paião 10/03/2011
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