por Paulo
Moreira Leite
Em 1964,
havia as marchadeiras do golpe militar. Eram aquelas senhoras que, de terço da
mão, foram às ruas para denunciar a corrupção e a subversão, acreditando que
iriam salvar a democracia.
Só ajudaram
a instalar uma ditadura militar que o país até hoje não esqueceu.
Em 2012,
temos uma marcha do retrocesso. Não há um golpe de Estado à vista.
Mas temos
homens e mulheres em campanha para que o Supremo passe por cima do artigo 55 da
Constituição e casse o mandato de três parlamentares condenados pelo mensalão.
Este número
deve chegar a quatro em janeiro do ano que vem, quando José Genoíno deve
assumir uma vaga como suplente.
A lei diz
que, para cassar o mandato de um parlamentar, é preciso que a medida seja
aprovada no Câmara ou no Senado, por maioria absoluta, em votação secreta, após
ampla defesa.
Em vez de
procurar votos no Congresso, como é obrigado a fazer todo cidadão interessado
em mudanças de seu interesse, as novas marchadeiras querem uma cassação na
marra.
Assim: o STF
manda e o Congresso cumpre – mesmo que a Constituição diga outra coisa.
A desculpa é
que estão preocupados com o decoro. Acham feio pensar que um deputado condenado
a cumprir pena em regime fechado conserve suas prerrogativas de parlamentar.
Concordo que é estranho. Muita gente acha que proibir a pena de morte é
estranho. Mas está lá na Constituição. Muita gente acha que os índios e os
negros não deveriam ter suas terras nem seus quilombos. Mas está lá.
Falta de
decoro, que é sinônimo de falta de vergonha, de honradez, é defender que se
desrespeite a Constituição.
Mas
marchadeiros e marchadeiras são assim. Foram à rua em 64 para combater a
corrupção e a subversão e jogaram o país numa ditadura que só iria encerrar-se
com a nova Constituição, em 1988, aquela mesma que se ameaça agora.
Não custa
lembrar que o debate sobre cassação de mandatos tem poucas consequências
práticas. Mesmo que a Câmara, cumprindo uma prerrogativa que a Constituição lhe
oferece, resolva preservar seus mandatos, eles sequer poderão voltar às urnas
em 2014. Já estarão enquadrados na Lei do Ficha Limpa. O que se discute, acima
de tudo, é um direito.
É isso que
se pode atingir.
Em 1988, 407
parlamentares votaram a favor do artigo 55, que define quem tem poderes para
cassar mandato de senadores e deputados. Deixaram lá, por escrito,
explicitamente, para ninguém ter duvida. A Câmara, no caso de Deputados. O
Senado, no caso de senadores. Não há mas, porém, todavia.
É isso e
ponto.
É como bomba
atômica. O Brasil assumiu o compromisso constitucional de não desenvolver
energia nuclear com fins militares. Está lá e não se discute.
Por que se
considera vergonhoso que a Câmara queira definir o destino de seus membros?
Porque está
em jogo um princípio: apenas representantes eleitos pelo povo podem cassar o
mandato de um representante eleito. Foi essa a grande lição de um país que saía
de uma ditadura, iniciada com a promessa de que iria salvar a democracia.
É uma regra
coerente com a noção de soberania popular, de que todos os poderes emanam do
povo “que o exerce através de representantes eleitos.” (Está lá, justamente no
artigo 1).
Como recorda
o deputado Marco Maia, em artigo publicado hoje na Folha de S. Paulo, o artigo
55 nasceu numa votação ampla e plural. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio
Lula da Silva votaram a favor.
Aécio Neves,
apontado por FHC como candidato para 2014, também. Delfim Netto, que ainda
exibia a coroa de tzar do milagre brasileiro da ditadura, também.
Isso quer
dizer que havia um consenso político a respeito. Por que?
Não se
discutia o motivo das cassações passadas. A imensa maioria dos casos envolvia
perseguição política notória, contra adversários que a ditadura queria excluir
da vida pública. Mas havia corruptos de verdade entre aqueles que perdiam o
mandato. Teve um governador do Paraná que foi afastado depois que foi gravado
fazendo um pedido de propina. A fita com a gravação chegou ao Planalto e ele
foi degolado.
Os
constituintes se encarregaram de definir um ritual democrático para garantir o
cumprimento da lei em qualquer caso. Não se queria uma democracia à paraguaia,
onde as regras são vagas e pouco claras, permitindo atos arbitrários, como a
deposição de um presidente que só teve duas horas para defender-se.
Ao contrário
do que ocorre numa ditadura, quando o governo improvisa soluções ao sabor das
conveniências e a Constituição é um enfeite para fazer discurso na ONU, numa
democracia existem regras, que devem ser cumpridas por todos.
Isso
permitiu que, em 1992, o Senado tivesse cassado os direitos políticos de
Fernando Collor que, em 1994, julgado pelo Supremo, Collor foi absolvido por
falta de provas válidas. Era contraditório? Claro que era.
Mas era o
que precisava ser feito, em nome da separação entre poderes. Coubera ao
Congresso fazer o julgamento político de Collor. Ao Supremo, coube o julgamento
criminal.
No mais
prolongado período de liberdades de nossa história moderna, o Brasil aprendeu
que a única forma de livrar-se de uma lei errada é apresentar um projeto de
mudança constitucional, reunir votos e ir à luta no Congresso.
Vários
artigos da carta de 1988 foram reformados, emendados e até extintos de lá para
cá. Quem acha que o artigo 55 está errado, pode seguir o exemplo e tentar
modificá-lo. Vamos lembrar quantas mudanças foram feitas nos últimos anos.
Mudou-se o caráter de empresa nacional, permitiu-se a reeleição para mandatos
executivos e muitas outras coisas mais, não é mesmo?
O caminho
democrático é este.
Quem quiser
cassar mandato dos deputados, só precisa reunir uma maioria de votos, no
Congresso. Se conseguir, leva. Se não conseguir, paciência.
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