Por Flavio Lyra, no sítio da Adital:
O tema da corrupção, especialmente em sua existência
associada ao desvio de recursos públicos para o favorecimento de empresas, de
políticos e de pessoas comuns, constitui a pièce de résistance, o prato
principal, do cardápio político da classe média.
Não sem fortes razões é assim, pois os membros da classe
média conhecem de perto o funcionamento dos mecanismos da corrupção, seja como
observadores, seja como executores das práticas envolvidas, através das
posições que ocupam nas empresas e na administração pública; seja como
beneficiários parciais dos resultados das fraudes.
A atitude de indignação que os membros da classe média
revelam frente aos casos mais notórios de corrupção que chegam ao conhecimento
público deve-se, em boa medida, a razões de ordem moral. Entretanto, não cabe
descartar dois aspectos: os casos de corrupção de menor importância são muito
difundidos e geralmente aceitos como normais; e os casos realmente importantes
beneficiam apenas pequenos grupos contra os quais se levantam as vozes dos que
ficam de fora dos esquemas: não há necessidade nem recursos de corromper a
todos que aceitariam ser corrompidos. Existe um dito popular que define
corrupção como "todo bom negócio para o qual não fomos convidados”.
As denúncias de casos de corrupção, bem como a insinuação de
suspeitas a respeito, assumem assim em nossa sociedade a condição de arma
política importante, porquanto fácil de ser mobilizada e acionada, quando
conveniente, contra competidores e adversários, especialmente com a utilização dos
meios de comunicação controlados por grupos minoritários vinculados à classe
dominante.
Seu uso para fins políticos é sobejamente conhecido e muito
bem aproveitado pela mídia que faz das denúncias e dos escândalos comprovados,
material fértil para aumentar a venda de seus serviços ao público em geral e
aos interessados diretos na divulgação das notícias pertinentes.
Para que a corrupção possa continuar sendo usada para
atingir inimigos é indispensável que os atos que lhe são inerentes sejam vistos
como desvios da normalidade. Os corruptos acabam sendo apenas aqueles que, em
virtude de circunstâncias desfavoráveis, foram flagrados com a mão na massa e
não tiveram o poder suficiente para corromper os responsáveis pela aplicação da
lei ou para desviarem de si o foco das atenções.
À classe dominante não interessa, de modo algum, que venha à
luz o fato de que a corrupção é inerente à forma de organização econômica em
que vivemos, baseada na concentração da propriedade privada nas mãos de uma
minoria, na exploração do trabalho e na acumulação de riqueza. Enfim, na
organização capitalista. Daí que se esmere em manter a classe média, usando o
controle que exerce sobre meios de comunicação, convencida de que o grande
problema nacional é a corrupção, sem apontar suas causas reais.
O ofuscamento da questão política central, que é a luta de
classes entre capitalistas e trabalhadores, por uma simples disputa dos
partidos políticos em torno da questão da corrupção, mostra-se amplamente
favorável à perpetuação do sistema capitalista e, portanto, é estimulado e
promovido, a preço de ouro, pelos formadores de opinião vinculados às minorias
que controlam a empresa privada e suas associações.
Aliás, fenômeno semelhante ocorre nos países capitalistas
centrais. Nestes, a corrupção sistêmica inerente ao funcionamento do sistema de
livre empresa, hegemonizado pelas grandes corporações privadas, que controlam
de modo avassalador o poder político, não permite sequer a posta em prática de
políticas que fortaleçam os mecanismos estatais de regulação da atividade
econômica, que poderiam atenuar as formas fraudulentas de atuação das grandes
empresas privadas, especialmente, os bancos.
Nos Estados Unidos e na Europa a disputa política central
entre capitalistas e trabalhadores não vem à tona, pois aparece sob o disfarce
de um conflito em torno do tema da intervenção estatal na economia, com os
conservadores (Tea Party) defendendo à volta ao ‘paraíso perdido’ da máxima
liberdade de empresa e os liberais defendendo um maior poder de regulação do
Estado.
Para ambos contendores, não fica claro que o problema real
reside exatamente na forma de organização econômica predominante, cujo
funcionamento é dirigido para favorecer a acumulação da propriedade nas mãos de
poucos e o empobrecimento da classe média.
Anteriormente ao primeiro governo do PT (antes de 2003), a
bandeira da luta contra a corrupção estava nas mãos do PT. Nos anos
subsequentes, os partidos derrotados nas eleições e as organizações de direita
encontraram no combate nominal à corrupção o instrumento eficaz para demonizar
o governo, o PT, e os movimentos de esquerda.
Por certo, que o PT, em sua ingenuidade ideológica, não
percebeu a armadilha em que estava se metendo, ao copiar os métodos dos grupos
políticos tradicionais no que respeita ao uso de recursos públicos para
financiar arranjos políticos e atender a insaciável demanda de recursos desses
grupos.
Para essa mudança de mãos da bandeira anticorrupção têm
jogado papel primordial os quatros grandes grupos empresariais familiares que
controlam os meios de comunicação no país: Estado de São Paulo, Folha de São
Paulo, Globo e Veja.
A mudança deu-se com grande receptividade na classe média
que, em sua ânsia de condenar o PT, como represália pela perda de privilégios
que vem sofrendo para dar lugar à ascensão social dos segmentos mais pobres da
população, chega a esquecer que os maiores escândalos de corrupção ocorridos no
país, nos últimos tempos, não estiveram ligados ao PT: as privatizações nos
governos de FHC, as operações financeiras de Daniel Dantas (operação
Satiagraha), a operação Gautama, as fraudes do governo Arruda no Distrito
Federal, e o recente caso de Carlos Cachoeira, que envolveu o Senador
Demóstenes Torres.
Para entender o verdadeiro espírito da empresa capitalista e
sua propensão natural à corrupção, basta concentrar a atenção no significado do
lucro, que nada mais é do que o resultado do uso da capacidade da empresa para
gerar receita e para reduzir custo. As formas como a receita é gerada e o custo
é reduzido, dispensam qualquer juízo moral. Aplica-se ao caso o dito chinês:
"não importa a cor do gato, o fundamental é que come ratos”.
O poder de mercado das empresas privadas é usado para
aumentar as receitas e/ou reduzir os custos, portanto, para aumentar os lucros,
sem qualquer justificativa ou preocupação social. Os oligopólios da indústria
farmacêutica, por exemplo, aumentam seus lucros à custa da vida dos que não
podem pagar seus preços exorbitantes. A Nike, mantém suas altas taxas de lucro,
pagando míseros salários a trabalhadores asiáticos e contando com vultosos
subsídios fiscais dos governos. A alma da empresa capitalista é a ideia de que
tudo que aumenta a receita e diminui o custo, é meritório, pois aumenta o lucro
e favorece a acumulação de riqueza
Quem aceita o discurso liberal de que o mercado é um
mecanismo justo e eficiente de alocação de recursos e distribuição renda
desconhece as poderosas forças que estão por trás da fixação de preços e de
salários. Não existem mercados perfeitos, nem neutros, os preços a que
compramos os produtos e vendemos nosso trabalho são apenas o reflexo das
relações poder na sociedade. São eles que viabilizam a acumulação das grandes
fortunas privadas nas atividades realizadas dentro da lei. Os preços e os
salários, portanto, já são em si mesmos formas "corruptas” de realização
das transações econômicas consideradas legais.
No mundo empresarial a corrupção é um elemento importante da
estratégia de negócios, uma arma adicional para enfrentar a competição. Nenhuma
empresa bem sucedida sobrevive sem um caixa dois que lhe permita registrar as
operações que realiza fora do controle do fisco, nem sem o pagamento de
comissões e propinas aos que com ela mantêm transações econômicas e
financeiras.
Os inúmeros paraísos fiscais existentes no mundo, sinônimo
de corrupção, são uma peça importante do sistema financeiro mundial, pois sem
eles os recursos de origem ilícita (dos lucros que fogem à tributação, das
rendas do tráfico de drogas e de armamentos, dos valores subtraídos aos países,
através de operações de sub e superfaturamento do comércio, as propinas aos
políticos e aos funcionários públicos) não teriam onde ser acumulados e
transformados em "dinheiro limpo” para retornarem aos países de onde
provieram, como investimentos.
Vivemos numa cultura em que o objetivo primordial é acumular
riqueza. Uns o fazem respeitando em alguma medida as leis, outros o fazem através
do roubo, do contrabando, do tráfico de drogas, da apropriação ilícita de
recursos públicos.
Imaginar que em nossas sociedades os organismos do Estado
pairam acima das formas corruptas de operação das empresas privadas é uma
grande ilusão. Estado e empresas acham-se inteiramente imbricados. Os
tentáculos das empresas privadas, especialmente das grandes empresas penetram
em toda a estrutura do Estado. Para os partidos de esquerda que chegam ao
poder, constitui uma tarefa verdadeiramente hercúlea governar sujeitos às
pressões corruptoras inerentes à realidade econômica.
Não é crível admitir que, numa sociedade em que o
financiamento das campanhas dos candidatos a postos eletivos é feita por
empresadas privadas, a maioria dos políticos não atue em favor dos interesses
das empresas financiadoras. Quem conhece o funcionamento do Legislativo
brasileiro sabe precisamente quem são patrocinadores de seus membros.
Nossas sociedades são fundamentalmente corruptas, pois sua
forma de organização econômica, voltada para a acumulação de riqueza por
indivíduos e grupos de indivíduos, em detrimento do resto da sociedade,
estimula permanentemente tais comportamentos.
A eliminação total da corrupção é, portanto, praticamente
impossível, mantidas as instituições atuais. Ao contrário do que pensa a classe
média, somente com a crescente participação das organizações populares no
controle do poder econômico e da política é possível reduzir a corrupção. O
desafio que está diante de nossas sociedades é enveredar pelo caminho de novas
formas de organização econômica, social e política. Essa solução só pode surgir
da classe trabalhadora e das organizações populares, as quais são as grandes
prejudicadas pelas formas de organização atual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário