domingo, 19 de setembro de 2010

La neves vá


La neves vá
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Gilson Reis, blogdogilsonreis.blogspot.com

Em 1983 Frederico Fellini lançava a mais importante obra cinematográfica da sua pródiga e bem sucedida carreira: La Nave Va.

O filme retrata o cenário fúnebre do início da primeira guerra mundial. Fellini reúne em um navio personagens bizarros e membros da alta elite italiana para uma viagem surreal. O funeral de uma cantora lírica é interrompido em pleno oceano para que o capitão da embarcação resgate uma comunidade sérvia que fugia da guerra. Os sérvios, cidadãos de segunda categoria, são jogados no porão do navio e assim a trama se desenvolve.

Na transferência de cargo do governador Aécio Neves para o seu vice, Antônio Anastasia, os arredores do Palácio da Liberdade pareciam a embarcação do filme de Fellini. Nas dependências do Palácio, encontrava-se a fina flor da corte mineira. Estavam lá embarcados cinco governadores mineiros: Francelino Pereira, Itamar Franco e Eduardo Azeredo, Aécio Neves e Antonio Anastasia. Os artistas globais Luciano Huck, Cristiane Torloni, Maitê Proença e até o galinho de Quintino, o jogador Zico. A duzentos metros de distância, populares espremidos na cerca de proteção observavam o cortejo da nobreza. De sorrisos ocos, lá estavam os pobres e desavisados mineiros a servir de sérvios para a fúnebre festa da elite mineira.

A posse do novo governador encerra um período de sete anos e três meses de profunda unidade das elites mineiras. Uma unidade construída em torno do governador tucano Aécio Neves e do seu ambicioso projeto presidencial. A tradicional política mineira, que ainda persiste nas várias regiões do estado, sempre foi marcada pela divisão entre dois blocos antagônicos vinculados à elite: os conservadores e os liberais. O primeiro grupo de concepção conservadora, rural, ligado inicialmente às fileiras da UDN e suas congêneres ao longo da história. Já o segundo grupo, de viés liberal, urbano, nasceu e consolidou-se com a urbanização do estado de Minas. Essa corrente política iniciou sua trajetória a partir do PSD. Esse grupo político também foi mudando de siglas, mas sempre mantendo suas raízes teóricas liberais. A aspiração das elites mineiras em retornar o comando da Presidência da República possibilitou esta inédita unidade.

Consolidada a fusão de conservadores e liberais, a segunda medida do Palácio da Liberdade foi dividir o setor oposicionista. Primeiro, aproximou-se de forma habilidosa do presidente Lula, utilizando-se de recursos federais para projetar as políticas públicas em Minas Gerais. No campo político, manteve permanente diálogo com o Palácio da Alvorada, permitindo ao não menos hábil presidente Lula usar e abusar da aproximação com o governador mineiro, chegando ao limite de construir em 2006 o Lulécio, em oposição ao candidato tucano Geraldo Alckmin.

No Estado não foi diferente. O governador Aécio Neves administrou com ampla maioria na Assembléia Legislativa, chegando a atrair em vários momentos a base parlamentar vinculada ao Partido dos Trabalhadores para votações de emendas constitucionais e projetos de interesse do governo. O PMDB dividido e sem grandes lideranças foi uma presa fácil para o Palácio da Liberdade. Porém, foi na eleição municipal da capital mineira que Aécio Neves demonstrou todo o seu conhecimento, adquirido através da convivência com o avô Tancredo Neves: a arte de manter-se neutro sem sê-lo. No processo sucessório de Belo Horizonte, lançou um candidato pelo PSB, dividiu o PT através de um acordo com o então prefeito Pimentel e conquistou depois de dezesseis anos a prefeitura da capital mineira.

No campo da economia, Aécio e Anastasia desenvolveram e consolidaram o choque de gestão. Trata-se do projeto neoliberal, que é a marca do governo de Minas, mesmo com a falência do neoliberalismo em escala mundial, principalmente a partir da crise internacional do ano passado. No entanto, o choque de gestão cantado em verso e prosa pelos quatro cantos de Minas não passa de uma gestão fiscal do estado que beneficia amplamente o setor privado, em detrimento do setor público. Minas Gerais foi, ao longo dos últimos anos, um laboratório de destruição das políticas públicas, a exemplo da saúde, educação, segurança e previdência, entre outras. Nos sete anos e três meses de governo, milhões de reais foram retirados das políticas públicas e repassados para a iniciativa privada, seja através da isenção fiscal, seja por meio de obras faraônicas, a exemplo do Centro Administrativo, que custou aos cofres do estado dois bilhões de reais. A inversão de prioridades e o endividamento do estado, a destruição do Ipsemg, a focalização da educação, a centralização da saúde e o aumento da criminalidade são apenas alguns dos resultados da fracassada política econômica.

No âmbito das relações de trabalho, a atitude foi ainda mais perversa. Durante todo o governo, a relação com os servidores foi amplamente desrespeitosa. A permanente precarização nas relações de trabalho em todas as áreas do estado culminou com a prática criminosa da terceirização realizada pela MGS.

A empresa foi criada pelo estado para contratar trabalhadores de forma precária, com o objetivo de diminuir o custeio da máquina e conseqüentemente a qualidade do serviço público. A ausência de concursos públicos para ingresso na carreira de estado, o achatamento salarial, a emenda 100, que criou uma distorção inconstitucional na carreira pública, a negativa do governo em aplicar o piso nacional dos trabalhadores em educação são apenas alguns dos exemplos da política desenvolvida pelo governo Aécio/Anastasia.

Para cumprir essa plataforma política, o governo mineiro praticou duas estratégias complementares. A primeira e mais refinada foi a cooptação dos movimentos sociais e sindicais. Ao longo de todo o período, dirigentes sindicais e sociais passaram a cooperar com o governo, abdicando das bandeiras históricas pela qualidade dos serviços públicos, controlando a mobilização e a luta dos trabalhadores. A segunda estratégia foi criminalizar os movimentos sociais e sindicais que lutavam e enfrentavam a política neoliberal e o choque de gestão do Palácio da Liberdade. O resultado foi uma permanente ação de repressão das forças policiais contra os trabalhadores urbanos e rurais.

Na área da comunicação e informação, o governo Aécio/Anastasia construiu um “bunker” jamais visto em toda a história política de Minas. O governo, a partir de um núcleo operacional de comunicação, constituído no Palácio da Liberdade e coordenado pela sua irmã Andréa Neves, controlou ao longo dos anos todos os meios de comunicação de Minas, do maior jornal à menor rádio e jornal do interior do estado. O controle da mídia foi cotidiano e permanente. Alguns jornalistas que tentaram romper o cerco do governador foram imediatamente punidos, demitidos ou mesmo “varridos” dos meios de comunicação do estado. Ao longo de sete anos, a população de Minas Gerais foi impedida de ser informada, a máxima da comunicação fascista foi expressão de um tempo com profunda ditadura midiática. O que importa ao governo Aécio/Anastasia é a propaganda oficial, com gastos extraordinários, para utilizar a mesma prática fascista de Hitler, pela qual “uma mentira contada mil vezes se transforma em verdade”.

Todavia, o que se sobressai com mais evidencia nesses sete anos e três meses de governo é o projeto de desenvolvimento proposto pela dupla Aécio/Anastasia. A verdadeira situação das condições políticas e econômicas veio à tona no período da crise internacional, ocorrida no ano de 2009. Minas Gerais, mesmo ocupando o segundo PIB do país, é o décimo terceiro em distribuição de renda. Mais de sessenta por cento da população recebe até um salário mínimo. O estado, apesar de rico, é um dos maiores concentradores de renda e riqueza do país. Em Minas Gerais, dos dez principais produtos de exportação, nove estão relacionados a produtos primários: agrícolas ou minerais. A única exceção é a exportação de veículos produzidos pelo setor automotivo, constituído no estado no final dos anos setenta. O choque de gestão neste contexto é uma farsa, não alterou um milímetro sequer as condições sociais e econômicas da população. O estado está paralisado, Minas Gerais não possui hoje um único projeto de desenvolvimento que avance na área de ciência e tecnologia.

É navegando nesse mar aparentemente tranquilo, porém revolto, que Minas e os mineiros se encontram à deriva. Para as nossas condições de povo da montanha, longe do mar, que nossa situação se torna ainda mais emblemática. Espero que a nave que trouxe o governador Aécio Neves não volte a atracar por aqui. Que Minas e os mineiros, agora livres do governo Aécio Neves, compreendam com mais clareza a farsa que foi esse período histórico, e possam refletir com mais profundidade as reais aspirações políticas, econômicas e sociais que, aliás, sempre foi a nossa maior virtude. Fellini trouxe para a ficção os dilemas de um tempo de guerra. Nós, mineiros, precisamos trazer para a realidade os dilemas de um tempo de paz, que exige avanços sociais e democráticos. La Neves Vá! E leve consigo Anastas!

Gilson Reis nasceu em Belo Horizonte, é professor de Biologia e especialista em Economia do Trabalho pela Unicamp. Nos últimos vinte anos, esteve à frente de importantes lutas políticas e populares em Minas Gerais e no Brasil. Fundou e presidiu o Diretório Acadêmico da Faculdade Metodista Izabela Hendrix, na capital mineira, foi dirigente da União Nacional dos Estudantes (UNE), vice-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em Minas Gerais e dirigente da Executiva Nacional da CUT. Atualmente é presidente do Sindicato dos Professores de Minas Gerais (Sinpro Minas), membro da Direção Nacional da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e presidente estadual da Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB/MG).

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