segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O fim do mundo é sempre o começo de outro


O fim do mundo é sempre o começo de outro

Estamos às vésperas de mais um espetáculo paradoxalmente triunfante e deprimente do império da democracia liberal. Esse espetáculo, preparado para manter a ordem das coisas do universo, entretanto, deixa uma brecha. E é nesse espaço estreito de liberalidade imaginária que temos a (in)feliz oportunidade de combater o bom combate, de transformar um instrumento de controle da vida dos povos e das pessoas em ferramenta de subversão fantástica e inadmissível. E eu gosto do inadmissível: nosso Deus é o Deus do impossível, do inadmissível.

Primeiro, deixe-me iluminar você com o clarão desta verdade: não há posição que não seja política, e o movimento político mais incisivo e mais engajado que você pode cometer é a suposição de neutralidade. Nunca se está neutro. A neutralidade é a vergonha de se declarar do lado do opressor. O mais anárquico não é o mais indiferente; pelo contrário. De outro lado, também não há verdade que não seja circunstancial: a liberdade política é um exercício localizado na história, com todas as suas contradições e impasses, e não uma sensação vaga de suposta independência! Eu não vim trazer a neutralidade (paz), vim trazer a parcialidade (a espada).

Se você está neutro, saiba que está de um lado. E eu vou mostrar o meu, agora: o lado dos que estão debaixo.

Política deve ser um ato de tesão! Eu exijo política com tara! A política gira ao redor da resistência do gozo e da construção de oportunidades de se gozar a vida da forma mais livre possível; e como relação de poder que é, há sempre um quê de liberador, de subversivo no gozo e na política: o prazer, a possibilidade de acessá-lo e de mantê-lo, é o fundamento do ato político. O prazer está ligado àquilo que ultrapassa a simples demanda fisiológica: a necessidade do estômago é de comer, mas a língua da gente não quer só comida; a gente quer comida temperada, cheirosa, farta, saborosa. A gente não quer só casar, a gente quer beijar ardentemente, quer companhia carinhosa, quer trepar com amor incandescente. O desejo é da ordem da festa! A mais bonita das contra-doutrinas políticas é a do evangelho, que liberta almas na sua raiz, ou seja, nos corpos. O reino de Deus é uma esquerda libidinosa baseada na liberdade do corpo e no desejo ardente, na fome e sede de justiça; é o Reino de um Deus dos impossíveis, um Deus do inadmissível.

Escandalosamente, o Brasil foi construído ao longo de cinco séculos de forma a permitir que apenas uma minúscula parcela do seu povo pudesse desejar e gozar desses prazeres festivos, sobre e a partir do labor, do suor e do sangue da grande maioria: aquela maioria apartada mas trituradas pelos círculos do poder; aquela maioria negra, analfabeta e pobre que não podia senão aceitar a comida que lhe davam; aquela maioria da senzala, das prisões e das favelas; aquela maioria que devia trabalhar apenas, trabalhar para os outros; aquela maioria empobrecida que, hoje, quando recebe o Bolsa-Família, é tida por vagabunda.

Inadmissivelmente, de repente, essa maioria - vagabunda, preta e pobre - pela primeira vez, na história dessa nação precária, tem a voz liberada e a possibilidade de comer e gastar o seu dinheiro: aquilo que era impossível, começa a acontecer!

Aí vem você argumentar que é o Estado - o monstro opressor - que dá dinheiro dos contribuintes para os miseráveis gastarem com cachaça e não trabalharem - e eu lhe pergunto três coisas: por que é inadmissível que os pobres não possam ser preferidos pelo governo, pela igreja, pelo Estado, por quem quer que seja, se do ponto de vista do cara mais revolucionário que já houve não há nunca imparcialidade, são as vítimas sempre a serem preferidas? E, além do mais, se o governo está fazendo aquilo que você deveria fazer – dar o dinheiro aos pobres? De onde saiu a regra de que pobres não podem ter seu dinheiro de forma autônoma? A regra de que eles precisam ser porteiros, empregadas domésticas, babás, motoristas, de que eles só valem quando vendem sua força, seu vigor e seu saber prático para o gozo dos poucos de sempre? De onde saiu a regra de que os pobres não podem gastar seu pouco dinheiro da forma que bem entenderem, assim como eu e você gastamos insensatamente o nosso salário?

O princípio mais demoníaco dos últimos dois séculos é o da igualdade de oportunidade. Igualdade de oportunidade é como colocar pra concorrer numa prova de atletismo um rapaz de cadeira de rodas e um atleta. As oportunidades são iguais, as condições, não. Além do mais não gosto da igualdade por si mesma: eu gosto das diferenças! (Veja, eu não disse desigualdade – que é terrível – mas diferenças). E a luta por igualdade é justamente a luta para que os diferentes possam igualmente manifestar sua vida e seu modo de estar, de falar, de cantar, de abraçar, de se vestir, de dançar e de tomar banho. Nesse caso, eu quero um Estado que trate os desiguais como desiguais: a quem tem menos (dinheiro, poder, saber, espaço) seja dado mais e primeiro; quem tem mais, já têm sua recompensa! Eu quero um país das cotas raciais e do ProUni (porque negros e brancos, alunos de escolas niveladas e de escolas modelares, nunca tiveram igualdade de condições e não teriam oportunidades iguais), quero o país da Bolsa-Família (porque pobres e ricos nunca comeram as mesmas coisas e não poderiam gozar do mesmo sabor de gastar o seu dinheiro como bem entendem), quero o país das comunidades quilombolas, das reservas indígenas, dos assentamentos bem-estruturados, da agricultura familiar camponesa (porque esses povos nunca tiveram as mesmas condições dos brancos, ricos, urbanos e agroindustriais).

Note-se que isso não foi simples doação do governo Lula, muitas dessas foram conquistas populares, com esforço e peleja, permitidas, vá lá, pelo ambiente de democracia participativa e de inclusão que o governo Lula propiciou, na contramão do pensamento reacionário e sexista que se manifestava em todos nós, mas beneficiava poucos.

O Brasil, por mais carnavalescamente anárquico que pareça, desencadeou um processo de autonomia, a partir da tomada de partido. Este país não ficou neutro, tomou partido. De maneira atabalhoada e ainda um tanto capenga, o Brasil liderou nos últimos anos o ensaio dos primeiros passos rumo a uma nova configuração das relações de poder no mundo, não mais baseadas unicamente no desempenho econômico-financeiro, nem na pujança fálico-militar, mas na simples e inadmissível fraternidade histórica , travestida de interesses pequenos, que apenas de pretexto serviam de disfarce. Nos últimos oito anos o Brasil foi reconhecido como o povo que soube dialogar com a minúscula Bolívia, defender do cacetete a simplória Honduras, tentar compreender o complexo e contraditório processo de Cuba, olhar nos olhos da besta imperial do Norte, chamar à conversa aqueles que foram carimbados de trogloditas no Oriente Médio (e que, ao que tudo indica, assumiram essa posição), se posicionar claramente contra o massacre palestino e denunciar com um sorriso irônico as incoerências da moral política senatorial do capitalismo hegemônico. E isso é inadmissível, e o nosso é o reino do inadmissível!

Nos últimos oito anos, a passos lentos, mas visíveis, essa nação imprecisa e vulgarmente plural começou a ensaiar o princípio da parcialidade bíblica; e com a contradição de usar o instrumental que se tinha disponível (leia-se congresso corruptos, burocracia reacionária e alianças fedorentas), o que deu no mensalão, por exemplo. Se você vier me dizer que o governo Lula se corrompeu da mesma forma dos outros, eu lhe pergunto: você é imparcial a ponto de dizer que pagar para o congresso aprovar uma emenda da reeleição, como fez FHC em 1996, é a mesma coisa que pagar pra o congresso aprovar medidas e reformas que permitissem uma maior rapidez na distribuição do dinheiro do país com aqueles que sempre tinham sido vítimas? De onde vem a voz que se escandaliza com esses atos que antes eram feitos para beneficiar os poucos de sempre e então estava sendo feito para beneficiar uma multidão? De onde vem a moral da Imprensa pra acusar o mensalão? De quem são os órgãos da Imprensa? Do povo, dos mais pobres, das vítimas? São seus?

O mais inadmissível (e nosso Deus é o Deus do inadmissível) é que, acompanhando o processo de dar dinheiro a quem não tinha nada, para que, podendo sanar as necessidades do corpo, os miseráveis pudessem chegar a desejar algo (e a política só funciona com desejo, como dissemos acima), nos últimos anos, milhares de camponeses, trabalhadores, pequenos comerciantes, jovens universitários começaram a se intrometer nos espaços de decisão do dinheiro público: conselhos, fóruns deliberativos, povo dando pitaco, gente apequenada que pode agora apontar e tratar de igual para igual o prefeito, o vereador e o secretário e dizer que o dinheiro do governo vai pra isso e não pr’aquilo. Aí vem você me dizer que os caciques do PT e aliados usam política pública para se abarrotar de dinheiro e poder: eu lhe digo que esses padecerão do fogo e que não há liberdade em ambiente puro, que a liberdade é um exercício do erro, da queda e da lama, que é infinitamente melhor um governo que permite o diálogo e a participação do que um que prepara às escondidas coisas obscuras e que no claro do dia faz calar a voz dos que reivindicam seus direitos. Ou você gosta das balas e cacetetes que o simpático Serra usou para negociar com os professores de São Paulo?

Na verdade, eu quero o Não-Estado, o Despoder; eu quero a festa de corpos livres, de desejos ardentes, de danças, de músicas, de comida farta, de uma mesa única com todo mundo junto; mas essa realidade que parece impossível, é o Reino do Deus do impossível, que trabalha por nossas mãos, sua por nossos poros e chora com nossos prantos, e que não acontecerá sem a luta incessante contra aqueles que querem acumular, que criam barreiras de separação, que não gostam da inclusão de mais gente, que não querem a participação dos pobres, dos pretos, dos bêbados, dos analfabetos, das crianças, dos poetas e das mullheres! Por ora, enquanto o Reino não chega, só devemos manifestar a festa da vida em nossa vida, junto de quem está perto de nós, contra a discriminação e a repressão, pela liberdade, pelas diferenças, pela diversidade. Agora, o momento é de não permitir que as forças reacionárias do escuro impeçam a aurora de continuar a clarear o dia. A salvação não virá do governo, mas a continuidade de um governo que permite a liberdade ampla da expressão, que distribui renda, que tira pobres da pobreza e dá voz a quem não tinha é fundamental para destruirmos esse Brasil capenga, dividido e opressivo e tirar de dentro dele o outro Brasil vibrante, colorido, dançante e flamejante, contra o poder e com sabor de vida! Não por José Serra, nem por Dilma Roussef, que são apenas gente, cheia de papéis a cumprirem. Não eles, mas pelos projetos que eles podem levar adiante.

O que quero é um Brasil que se reconheça como frátria, de vários povos em diálogo, de escolas onde se ensine a ler, a brincar e a amar, de hospitais que tratem de gente, de gente que coma bem e adoeça menos e não precise tanto de hospitais, de gente que possa dar pitaco nos rumos de sua cidade, de gente que more bem no sítio e nas cidades, de cidades menos poluídas, de cidades com periferias que não sejam favelas, de homens que possam liberar-se e de mulheres que possam governar seus corpos e, agora, pela primeira vez, governar o país! Agora é Dilma, é a vez da mulher! Matriarcado de Pindorama!

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