sábado, 24 de agosto de 2013

Vargas e a revolução errada que o derrubou



Por : Paulo Moreira Leite

O aniversário do suicídio de Getúlio Vargas, que completa 49 anos, é e sempre será motivo de reflexões políticas indispensáveis. Mas esta é uma conversa difícil por uma razão simples. 

Poucos homens públicos e intelectuais tem contas a receber no debate sobre a herança Vargas. 
Muitos têm contas a pagar pelos erros e injustiças que cometeram. 

Um dos poucos homens públicos com coragem para fazer uma avaliação desprovida de preconceitos e segundas intenções, o advogado e antigo ministro José Gregori produziu linhas exemplares em seu livro de memórias, “Os sonhos que alimentam a vida.” Vale a pena recordar o que ele diz. É surpreendente. 

Na década de 1950, estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a mais tradicional do país, Gregori era um líder estudantil vinculado a UDN, principal força de oposição a Vargas. 

O poder de sua oratória era tão grande que, certa vez, usando apenas as palavras e o apoio da platéia, o líder estudantil José Gregori conseguiu impedir um emissário de Vargas de falar aos estudantes.

Gregori estava na linha de frente das mobilizações que, em 1954, ajudaram a criar encurralar Getúlio.
Nas vésperas da tragédia, estava de viagem marcada para o Rio de Janeiro, capital do país, como uma liderança que iria participar de toda agitação civil-militar para forçar a renuncia de Vargas. 

“Abaixo a ilegalidade! Instaure-se a legitimidade,” chegou a dizer num comício. 
Meio século depois, o antigo líder estudantil Gregori se refere a morte de Vargas com palavras que, publicamente, nunca empregou antes. Recordando o que disse, viu e lembrou, diz no livro que com o passar dos anos chegou a conclusão de que ao participar do movimento anti-Vargas tinha “feito a revolução errada.” 
Descreve a noite da morte de Getúlio “como a mais triste que São Paulo já viveu.” 
Afirma que, embora pudesse ter convicções corretas, havia participado de um movimento “contra a história.” 
Ao fazer essa auto-crítica, diz Gregori, foi como se “me libertasse de um fantasma.”
O depoimento é importante quando se considera o personagem. Grande amigo de FHC, personagem destacado na luta pelos direitos humanos sob o regime militar, a atitude de Gregori chama atenção por suas companhias políticas. 

Numa instável aproximação ideológica com o pensamento conservador organizado em torno do Estado de S. Paulo, núcleo principal do anti-varguismo no país desde 1932, intelectuais e personalidades que mais tarde seriam identificadas com o PSDB ajudaram a construir e preservar a visão de Vargas como uma versão brasileira do fascismo. 

Essa noção se encontra em Boris Fausto, o mais importante e competente entre eles. No primeiro tomo da trilogia Getúlio, o escritor Lira Neto recorre a Boris Fausto para dizer que “por diferentes caminhos e diferentes conjunturas, brotaria o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, o franquismo na Espanha, o salazarismo em Portugal e, em certa medida, com suas especificidades, o getulismo no Brasil.” 

Pesquisando os jornais no dia da morte de Vargas, em seu blogue de hoje o jornalista Mário Magalhães recorda que os principais veículos da época fizeram um coro unânime de oposição a Getúlio. 

A exceção, recorda Magalhães, era a Ultima Hora, jornal que o próprio presidente ajudou a lançar e financiava com ajuda de dinheiro público e empresários amigos. 

Você vê os jornais e pode pensar que Vargas era um presidente impopular. Pode achar, como é sempre mais confortável em eventos históricos, que “deu-se o inevitável.” Como era comum se dizer em 1964, após a morte de Jango: “Caiu de maduro.” Errado. 

Vargas foi um dos principais líderes políticos vinculados aos trabalhadores e aos mais pobres. Um dos poucos, em 124 anos de república. 

Chefe de governo revolucionário, ditador, presidente eleito, deixou um legado duradouro. Simplificando: como contestar a importância da Petrobras? O que dizer dos direitos trabalhistas num país que menos 60 anos antes da CLT aceitava a escravidão? 

Morto um ano depois da morte de Josef Stalin, Getúlio segue um personagem difícil de nossa história por uma razão muito simples. De uma forma ou de outra, grande parte das forças políticas em atividade naquela época atuaram para inviabilizar seu governo, forçar sua queda – passos que antecederam ao suicídio. Há algo pouco estudado na oposição a Vargas. 

É normal e aceitável que fosse combatido por conservadores, adversários assumidos de seu nacionalismo e sua atuação social. Estava na cartilha da UDN e seus aliados. 

O problema é que, em 1954, os comunistas também estavam contra Vargas. Eram diretos e radicais. A linguagem do partido era revolucionária e sua oposição a Vargas tinha tintas de muita ferocidade. 
Num primeiro momento, os jornais do PCB chegaram a comemorar a morte de Getúlio, aqui também tratado como ditador, revoltando uma população que destruiu a redação. 

Alinhado inteiramente ao comando do aparato comunista na União Soviética, naquele momento o PCB praticava a política da Guerra Fria. Definia Vargas como “agente do imperialismo,” para combate-lo pela esquerda, enquanto a UDN, a Casa Branca e os demais atacavam pela direita. 
Comunistas e conservadores, naquele momento, eram incapaz de enxergar o país com uma nação autônoma, em busca de seu desenvolvimento e com direito a própria soberania. Estavam convencidos, cada um a sua maneira, que era obrigatório alinhar-se e, em última análise, submeter-se. 
Partindo de pontos de vista ideologicamente diversos, ambos chegavam a uma ação comum contra um mesmo governo. 
O pensamento anti-Vargas nunca teve grande aceitação popular, mas deixou ideias e conceitos que fizeram sucesso no meio acadêmico e em nossas elites políticas. 

Noções como “populismo” foram assumidas à direita e à esquerda, como forma de desmoralizar sua herança política, dando caráter de demagogia a medidas de grande alcance na melhoria de vida da população, a começar pelo salário mínimo e o conjunto da CLT. 

Em novo casamento de conveniências, o combate a estrutura sindical, descrita como “herança fascista”, uniu adversários ideológicos em novas comunhões da vida prática, esquecidos de que boa parte da inspiração de Vargas, nesse terreno, e em outros, veio de Franklin D. Roosevelt e o New Deal. (O próprio Roosevelt achava que o New Deal devia muito ao que Vargas fizera no Brasil). 

À direita, Vargas e seus herdeiros eram inconvenientes porque já haviam “feito muito.” À esquerda, eram atacados porque haviam “feito pouco.”

Com tantas contas para ajustar, compreende-se que poucos herdeiros de nossa árvore ideológica mental tenham disposição para contar o que fizeram, falaram e ouviram.

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