Por Rafael Patto
Fui à minha estante de livros pegar o “As grandes esperanças”, do Charles Dickens, para emprestar a um amigo e acabei encontrando um exemplar da saudosa Revista Bundas, número 34, de fevereiro de 2000, que publicou uma grande entrevista com o Lula.
Ainda bem que eu guardei essa revista porque é realmente uma entrevista histórica. Nela, Lula fala do PT, que completava 20 anos desde sua fundação; fala da imprensa brasileira; de Hugo Chávez e da esquerda latino-americana; do Fernando Henrique Cardoso e do patrimonialismo, clientelismo e coronelismo das oligarquias brasileiras, entre outros “ismos”, e muito mais.
A seguir, alguns trechos das respostas de Lula a essa entrevista memorável, que eu dividi por temas. O que aparece entre colchetes é acréscimo meu.
FHC , “o único que, saindo do nosso meio, venderia a sua alma”.
Minha decepção com determinadas pessoas se deve a vacilações delas em momentos decisivos. FHC chegou a participar dos encontros no Colégio Sion, com Sérgio Buarque de Hollanda, Mario Pedrosa, Lélia Abramo, fundando o PT, mas pra cabeça dele era muito difícil participar de um partido político que tivesse um metalúrgico como presidente. Isso era duro prum cara que estudou tanto. Ele pode ser o Príncipe da Sociologia, mas também é o rei da vaidade. Mario Pedrosa, Paulo Freire e Sérgio Buarque assimilaram o PT, ele não.
Durante muitos anos FHC foi considerado um dos grandes intelectuais brasileiros. Só não era o rei da Sociologia por causa do Florestan Fernandes [duas vezes deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores]. Mas nem todo sociólogo sabe fazer política. Parece que no curso que FHC fez não tinha a cadeira de Política, ou, se tinha, ele tirou zero.
Nós do PT poderíamos ter tido uma influência mais forte no governo Itamar. O PT tinha força, mas deliberamos por não participar e nos enfraquecemos. E aí figuras que não tiveram nada a ver com o impeachment, como FHC, ganharam destaque. FHC se aproximou de Itamar, que tinha poucos aliados, e ocupou espaços. Mas ele não tinha participado de nada daquilo. Inclusive, se não fosse a esquerda do PSDB, ele teria entrado na barca do Collor.
A Imprensa
Fui a um debate em Paris com Roberto Marinho e sabe o que ele disse, publicamente? “No Brasil havia três candidatos [em 89]. O governador Brizola vivia dizendo que ia fechar a Globo. O pessoal do PT, representado pelo Sr. Lula, vivia enterrando a Globo, passando em frente da sede do Jardim Botânico com meu caixão. O Collor era filho de um ex-amigo meu, falava fluentemente o inglês, então resolvi adotá-lo como candidato”.
Se um jornalista resolvesse escrever o “Notícias do Planalto” do governo FHC, vocês veriam que o resultado seria ainda pior que o do Collor. Vou contar uma história pra vocês. Junho de 1998. A Folha de SP publica uma pesquisa: “Lula tecnicamente empatado com FHC”. FHC chama a Brasília os donos dos principais canais de televisão: “Se vocês continuarem a falar da fome, do desemprego e da seca no Nordeste, o Lula vai ganhar as eleições e eu não estou disposto a ser candidato para perder. Então escolham outro candidato”. Esse foi o teor da conversa. Quase num passe de mágica, a fome saiu da TV, a seca desapareceu dos jornais, e ninguém mais falou em desemprego.
(Vladimir Sachetta, um dos entrevistadores, emendou: “Você contou esse episódio no Roda Viva e nenhum dono de jornal negou.”)
As elites
Agora por ocasião dos 500 anos do Brasil, estou lendo sobre as revoltas brasileiras. Muitas delas não foram nem contadas. Somente agora aprendemos a verdadeira história de Canudos, porque Antonio Conselheiro era apresentado como um bandido, monarquista inveterado. Zumbi era um monte de coisas, menos herói. Sabe o que mais me assusta? A competência da elite brasileira. Nomes que hoje estão no poder já eram o poder há 200 anos! Algumas famílias estão mandando desde a morte dos dinossauros. Lembrei de uma cena no comício das Diretas em 84, em Belo Horizonte, onde Tancredo Neves pega na minha mão e fala: “Lula, o que a gente faz com esse povo agora?” A elite brasileira que se colocava contra os portugueses queria liberdade mas não queria que o povo viesse junto. Índio, negro e pobre tinham que ficar fora do processo. Essa elite ainda mantém isso.
Qual a diferença entre São Paulo e o Rio Grande do Sul? É simples: a política gaúcha passa por Getúlio, Jango e Brizola [Olívio Dutra e Dilma Rousseff]. A paulista passa por Adhemar de Barros, Jânio Quadros e Paulo Maluf [Serra, Alckmin e FHC...].
Hugo Chávez
O Estadão e a Folha ficaram “nerviosos” porque falei bem do Chávez. Falei bem de um cara que ganhou as eleições com 57% dos votos, que conseguiu juntar toda a esquerda em torno dele, que fez campanha baseada na convocação de uma Constituinte para diminuir o poder das elites, que elegeu 90% dos membros dessa Constituinte, que ainda fez um referendo sobre essa Constituinte e conseguiu 80% de apoio, e que agora vai se candidatar de novo antes mesmo de terminar seu mandato. Porra, o Chávez é muito mais decente do que o FHC que tá aí esse tempo inteiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário