sábado, 5 de fevereiro de 2011

POR QUE PERSISTE O RACISMO?


POR QUE PERSISTE O RACISMO?

A partir de determinado momento da sua história, o homem passou a não fazer mais guerras como antigamente: as lutas entres os diferentes povos que viviam nesse planeta se deviam, até então, a sonhos de poder centralizado por parte de um príncipe ou de um líder religioso, ou à conquista de novas terras para a pastagem do gado, para a agricultura ou uma passagem para o mar. Ou, mais simplesmente ainda, as guerras eram feitas porque algum rei resolvera expandir seu território, na busca de um maior número de escravos e súditos - o que, ao fim, é a mesma coisa.

Em um dado instante, no entanto - e seria do maior interesse descobrir quando e onde tal fato ocorreu -, o homem passou a guerrear, a perseguir e a massacrar outros homens apenas porque esse outro era diferente. Terras foram invadidas e, mais tarde, lares e consciências, porque o vizinho não tinha a mesma crença religiosa, a mesma cor de pele, nem se vestia como o agressor gostaria que ele o fizesse.

Assim, persegue-se, destrói-se e mata-se, ainda hoje como há séculos, não apenas porque o outro vive do lado de lá do rio - enquanto eu vivo aqui, nesta margem menos fértil, ensolarada e bela -, mas principalmente porque ele não acredita no mesmo deus que eu, a cor da sua pele não é a minha, ele não fala a língua dos meus amigos, não se veste como meus pais me ensinaram e sequer dança, canta e ri ao som dos ritmos que aprendi a gostar. Pior: não trabalha como eu.

Em algum momento da história humana passou-se, assim, a invadir, torturar e matar outros homens não mais para conquistar suas terras e escravizar seus corpos - mas para domar e dirigir suas consciências. Ou seu espírito como quer os religiosos profissionais.

Ao guerreiro, então, já não bastava mais invadir, destruir, aniquilar seu adversário: interessava, antes disso, fazer o inimigo adotar o deus e senhor do invasor. O homem derrotado deveria abrir mão da sua fé - aliás, tudo que pudesse representar a cultura do povo invadido devia ser esmagado, a começar pela religião. Com isso, o que se pretendia era mudar o comportamento dos vencidos, dando-lhes uma nova regra de vida, imposta pelos vencedores.

As guerras passavam, assim, a ser santas - um conceito usado pelo judaísmo, pelo cristianismo e o islamismo, três religiões messiânicas: o inimigo é a encarnação do Mal. Já não se lutava mais contra homens, mas contra seres demoníacos: aparentemente humanos, porém no fundo cheios de maldade, prontos para praticar todas as atrocidades, exatamente pela sua inumanidade.

E o povo que encarna o Bem, que tem a divindade, a verdade e toda a razão ao seu lado, não pode ter nenhum tipo de piedade ou contemplação com a dignidade humana ao tratar com tais semi-homens: na verdade, não luta contra os seus iguais. E, se o inimigo representa todo esse horror, deve ser destruído da forma mais violenta e degradante possível - para servir de exemplo.

É claro que esse gênero de comportamento, ao que parece relativamente recente na história humana, relaciona-se totalmente com a apologia do "eu". É o ego que passa a ser levado às últimas conseqüências, o "eu" elevado à divindade só eu e meus iguais sabemos o que é bom para a população que nos cerca e, se depender de nós, todos os homens passarão a agir dessa forma ideal que só nós conhecemos. E, como temos todas as bênçãos, podemos agir como bem entendermos sem autocensura ou maiores preocupações - é pelo bem de todos os homens. Não temos tempo a perder: ou todos se adaptam àquilo em que acreditamos ou devem ser destruídos. Não existe meio-termo.

O mais curioso é que, com exceção de alguns trabalhos de Freud, das tentativas de buscar uma explicação simbólica por parte de Carl Jung, ou das preocupações constantes de Wilhelm Reich, poucos analistas do comportamento humano se detiveram mais longamente sobre esse tema tão atual: o horror do diverso, o medo daquele que não lhe é semelhante, a tendência a afastar aquilo que não se conhece.

E, no entanto, foi esse preconceito tão disseminado pelo mundo inteiro que deu origem a toda forma de racismo, do mais violento - que leva às guerras de fronteiras, às lutas pelos direitos das minorias, ao conceito colonialista do mundo e às divisões sociais -, ao mais sutil. Este está presente no dia-a-dia e poucos ainda têm sensibilidade bastante para notá-lo, apenas porque é mais fácil e cômodo acreditar que os dogmas da maioria já se tornaram verdade, de tanto que são repetidos.

Ora, mas por que o racismo seria um tema para psicólogos, psicanalistas, psiquiatras? Simplesmente porque, pelo menos na aparência, é um preconceito filho do narcisismo: a regra é afastar -, e de preferência, destruir - tudo e todos que não se pareçam comigo ou a mim se adaptem.

É claro que narcisismo aqui está sendo visto no sentido mais amplo possível: o espelho nos mostra a nossa beleza e sabedoria, mas é a partir desse espelho que descobrimos que o mundo deve moldar-se a nós.

Se somos tão belos e sabemos tantos, se fomos ungidos pelos deuses e se, de certa forma, somos enviados pelas divindades, precisamos espalhar as boas novas pelo mundo. E a melhor forma de nos fazermos amados como esperamos é, inicialmente, fazer com que todos nos conheçam e se dobrem diante de nossa beleza, palavras, poder, autoridade.

Nem mesmo a antropologia trata habitualmente com maiores cuidados o tema racismo, a não ser em casos como, de Claude Lévi-Strauss, para quem a tendência em recusar humanidade aos homens que não se parecem conosco e chamá-los de "selvagens" e "bárbaros" é uma prova de selvageria e barbárie de nossa parte: "Bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie", diz ele.

No mundo ocidental, onde todo o comportamento humano está baseado em conceitos judaico-cristãos, o deus é masculino e único, protetor e autoritário a um só tempo, e o primeiro grande censor: com sua onisciência, vigia eternamente até mesmo os mais íntimos pensamento e sonhos do homem.

Esse, inclusive, é mais um dado curioso que os estudiosos do comportamento humano pouco têm discutido: o que deve representar para nós, ocidentais, sabermos desde a infância que há alguém, uma divindade invisível, que não deixa a nossa consciência em paz. Poderíamos dizer, talvez, que esta divindade é totalitária e que todos os ditadores do mundo têm em quem se espelhar. Quem sabe o deus cristão - ou todo deus único - tenha sido o primeiro Grande Irmão da história: ele está sempre de olho em nós, vigiando, cobrando, perseguindo.

Essa divindade única é, assim, um ser antropomorfizado e tem reações extremamente emocionais: irritadiço, dita regras, exige obediência irrestrita e explode de raiva quando não o atendem, enviando raios, destruição e morte. Juiz e policial ao mesmo tempo fazem as leis e cobra seu cumprimento, por mais absurdas que possam ser as exigências - como, por exemplo, no caso de Abraão. Com tudo isso, não se pode dizer desta divindade que suas características sejam amor, carinho, atenção: é feita mais de raiva, arrogância, autoritarismo.

As ilustrações que mostram o Cristo tentam retratar um homem europeizado, branco, cabelos lisos, olhos claros - quando, por várias vezes, historiadores e arqueólogos isentos afirmaram que dificilmente ele teria possuído tais características raciais. Como se sabe, Cristo nasceu no seio de um povo cujos traços estavam longe de ser os retratados comumente.

É como se o cristão, na maioria branco e europeizado, quisesse adorar a uma divindade branca e europeizada, bem a sua imagem e semelhança. Exemplo disso talvez seja o fato de o Vaticano ainda não ter presenciado homens asiáticos, negros ou com traços indígenas ocupando o trono de Pedro.

Dessa forma, Roma age exatamente como os líderes judaicos, que têm a pretensão de que seus seguidores formem o "povo escolhido", isto é, os que professam outros credos seriam inferiores. O cristianismo pretende o mesmo, pregando a superioridade dos cristãos e, no caso específico do catolicismo, submetendo-se a papas brancos e repletos de conceitos europeus. Claro está que o islamismo não fica atrás: Alá é o deus único e todos devem ser submissos à sua vontade.

Imbuído de símbolos desse gênero, o homem cristão e branco - e, em suas regiões, o homem judeu e o islamita - não tem mesmo por que se preocupar com seja o que for: ele tem por pai uma divindade que tudo sabe, que lhe serve de apoio e tem as mesmas características físicas do filho.

Com isso, esse homem branco e cristão pode acreditar que tudo está no mundo somente para servi-lo: a terra, a água, as mulheres, os animais e os homens que não professam o seu credo. É como se ele pensasse: "Tudo isso é meu e dos meus iguais. Sou feito à imagem do deus e o mundo existe para me servir. Faço dele o que bem entender: poluo, destruo, queimo, persigo e mato a quem não se submeter a minha vontade. Que todos se pareçam comigo - ou que desapareçam."

É ainda sob tais pretextos que é possível ao homem cristão torturar os seus inimigos, um ato que foi regra na Inquisição e hoje é adotado em todas as guerras, delegacias e hospícios: qual a finalidade da tortura senão submeter, massacrar, aniquilar a consciência do torturado? E quem torturaria, a não ser aquele que se crê com a razão, a verdade, a divindade ao seu lado? Por isso cristãos e católicos puderam perseguir judeus, escravizar negros, massacrar índios, invadir países islamíticos.

Qualquer pessoa mais observadora já notou que as crianças, em geral, não têm um comportamento racista. Pelo contrário: elas são curiosas, se interessam pelo desconhecido, o novo. O mesmo se dá, segundo os antropólogos, com indígenas e grupos pré-civilizados: ao encontrar homens diferentes eles demonstram a curiosidade de uma criança. Gritam, riem, tocam, cheiram, querem descobrir o que há de comum entre eles e o grupo de desconhecidos recém-chegados.

Poderíamos perguntar, talvez, se existiria qualquer tipo de racismo ou preconceito desse gênero em uma sociedade onde a religião é politeísta e os deuses possuem várias faces. Ou se é possível encontrar qualquer traço de machismo em uma cultura cujo deus fosse feminino ou, melhor ainda, demonstrasse características femininas, como carinho, ternura, aconchego. Mais: seria possível encontrar toda essa quantidade de preconceitos com os quais convivemos diariamente em uma cultura onde o ego não fosse evidenciado quanto o é para nós? Seria possível estarmos cercados de autoridade de todo o gênero se o deus cristão não fosse tão centralizador.

Carlos Humberto www.sementereiki.com

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