Tudo começou antes mesmo do chamado
valerioduto tucano.
Muita gente pensa que a história do
mensalão começou em 14 de maio de 2004, quando a TV Globo mostrou uma
reportagem com um diretor da Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos
(ECT), Maurício Marinho, recebendo propina de uma pessoa apresentada como um
empresário.
Outros pensam que foi quando o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) deu a
bombástica e fantasiosa entrevista à Folha de S. Paulo, em 6 de junho de 2005,
que logo repercutiu pela imprensa, tornando-se capa nos maiores jornais do
país. Foi nela que o então deputado criou o neologismo “mensalão”.
Entretanto, estes acontecimentos expõem apenas a superfície da luta
política que há por trás do chamado “mensalão”. Sua história mais profunda só
pode ser entendida no quadro mais largo da luta política no Brasil. Ela começou
muito antes, mesmo deixando de lado considerações sobre o ”mensalão tucano”,
que irrigou a campanha eleitoral de 1998, beneficiando o candidato do PSDB em
Minas Gerais Eduardo Azeredo e, também, a candidatura de Fernando Henrique Cardoso
à reeleição para a presidência da República (“O valerioduto abasteceu Gilmar”.
Carta Capital, nº 708, 27 de julho de 2012).
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Um dos marcos dessa história foi a
eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994, quando a coalizão
tucano-pefelista imaginou iniciar um projeto de poder que, como acreditava o
mentor de FHC, o ex-ministro das Comunicações Sérgio Mota, deveria durar 30 anos!
De “principe dos sociólogos” a
“monarca dos políticos”
Não durou tanto. A eleição de
Fernando Henrique Cardoso e seu vice do PFL (atual DEM) Marco Maciel foi
impulsionada pelo lançamento do Plano Real que, em 2 de julho de 1994,
introduziu o real como padrão monetário.
A promessa de fim da inflação e de uma moeda forte (de “primeiro mundo”)
sensibilizou o eleitorado e transformou o então ministro da Fazenda, Fernando
Henrique Cardoso, no ansiado (pela classe dominante) anti-Lula: o candidato com
apelo popular suficientemente forte para derrotar o líder operário que, em
1989, quase chegou à presidência e deixou a classe dominante em pânico.
Fernando Henrique Cardoso era, aliás, um anti-Lula conveniente para a
classe dominante. Ancorado em seu passado de oposicionista à ditadura militar,
sua candidatura navegou no clamor pela ética na política que os brasileiros
passaram a ver como uma verdadeira bandeira programática depois do impeachment
de Fernando Collor de Mello em 1992, acusado justamente de corrupção.
Coube ao governo tucano implantar o programa de Collor: o programa de
privatizações, reformas neoliberais, desregulamentação das relações
trabalhistas, redução dos direitos sociais e submissão às imposições do
imperialismo, que Collor iniciou sem poder levar até o final.
Mas a ilusão popular com Fernando Henrique Cardoso durou pouco e
diminuiu drasticamente durante seu primeiro mandato. Para assegurar a aplicação
daquele programa antinacional e antipopular, o então presidente usou de todos
os meios, sob uma chuva de acusações de ter comprado votos de parlamentares
para mudar a Constituição e permitir, para si próprio, a reeleição para mais um
mandato como presidente da República. O cientista político Bolivar Lamounier
comentou com ironia, na semana daquela votação, que Fernando Henrique Cardoso –
antes considerado o “príncipe dos sociólogos” brasileiros – com a reeleição
podia se tornar “o monarca dos políticos” (Veja, 5 de fevereiro de 1997).
Ele tinha razão: a soberba fez o presidente governar de forma imperial,
de olhos fechados para o povo e para as ruas, e de joelhos perante a classe
dominante, o capital financeiro e o imperialismo, principalmente dos EUA.
Veja: “A euforia inicial pode azedar”
Estava pavimentado o caminho para o
desastre. Fernando Henrique Cardoso esperou a campanha eleitoral passar e o
evento de sua própria posse, em janeiro de 1999, para revelar a gravidade da
crise econômica na qual sua política econômica encalacrou o país.
As medidas por ele anunciadas agravaram a crise, dificultando a vida das
empresas e dos trabalhadores, com o aumento do desemprego, que já era alto.
Ação penal 470 é julgada durante o
mês de agosto. Ano: 2012.
Seu governo mudou o câmbio,
desatrelando o real do dólar, desmanchando assim a chamada “âncora cambial”. Em
consequência, a cotação da moeda norte-americana disparou de R$ 1,20 em
novembro de 1998 para R$ 2,07 no final de janeiro de 1999, representando um
golpe rude e inesperado nas finanças das empresas que, estimuladas pelo própio
governo, haviam contraído empréstimos externos: em poucas semanas elas viram o
valor em reais de suas dívidas quase dobrar. As matérias da revista Veja
refletiram a gravidade da crise e o sentimento de traição de grande parte dos
empresários. Uma delas tinha um título significativo: “A âncora virou anzol”;
outra dizia: “A euforia inicial pode azedar” (Veja, 20 de janeiro de 1999).
Contra a crise, o governo pensou na receita conservadora de sempre e, num
artigo elogioso sobre o ministro da Fazenda Pedro Malan, a revista assegurou
que o governo estudava a venda imediata da Petrobras (Veja, 3 de fevereiro
de 1999).
A popularidade do presidente foi ladeira abaixo. Em dezembro de 1998 ele
ainda ostentava 58% de aprovação nas pesquisas de opinião; em março de 1999,
caiu para 35% e em julho ainda mais: 26%. A desaprovação crescia no mesmo
sentido, passando de 37% em dezembro de 1998 para 56% em março de 1999 e para
66% em julho.
Se a queda do prestígio de Fernando Henrique Cardoso era nítida, crescia
a percepção de que a eleição de 2002 para sua sucessão seria vencida pelo
temido Luís Inácio Lula da Silva.
Um mandato é suficiente para Lula
Os setores conservadores da política
e da mídia, articulados na coalizão PSDB-PFL, alimentaram o sonho de que
bastaria um mandato para Lula como presidente. E que logo o controle do Palácio
do Planalto voltaria às mesmas forças políticas que sempre estiveram à frente
dele: os derrotados de 2002. Apostaram que o novo governo se esboroaria em um
imaginado desastre político- administrativo, que o prestígio popular do líder
operário logo se diluiria, e que isso favoreceria o retorno do projeto
neoliberal e seus paladinos ao governo.
Mas a realidade não saiu como seus planos e, ante a realidade adversa,
tentaram construir este cenário apelando para a velha e esfarrapada banderia da
corrução, já aplicada contra Getúlio Vargas (1954, levando ao suicídio do
presidente), Juscelino Kubtischek (1955 a 1961) e João Goulart (1961 a 1964,
resultando na deposição do presidente).
As acusações contra Lula se multiplicaram desde 2004 quando os sonhos de
esboroamento do governo se desfizeram, principalmente depois do bom desempenho
de candidatos apoiados por Lula na eleição municipal daquele ano.
Ao contrário das esperanças conservadoras, a popularidade do governo
Lula não cedia. Se o grau de aprovação do governo caiu, em 2004, chegando a 29%
(fruto dos problemas que o governo enfrentava devido à “herança maldita” de FHC
e também das acusações feitas através da mídia conservadora), o grau de
confiança popular no presidente permanecia: 54% (Jornal do Brasil, 29 de junho
de 2004).
Os brasileiros começavam a notar a diferença entre a nova era que se
iniciava sob Lula e o período de retrocesso e empobrecimento vivido sob
Fernando Henrique Cardoso. De um lado, essa diferença se manifestava na
retomada da economia e do emprego. Em 2004, informa o Caged (Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e do Emprego) foram
criados 1,8 milhão de empregos formais, muito acima do milhão de novos empregos
do último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Outro sinal importante de mudança – e inquietante para os conservadores
e neoliberais – foi o anúncio feito pelo governo, em março de 2005, de que não
renovaria o acordo com o Fundo Monetário Inrternacional (FMI) assinado por
Fernando Henrique Cardoso em 2002 e que reforçou a submissão do Brasil às
autoridades financeiras daquele organismo e do imperialismo. Aquele anúncio
apontava para o fortalecimento da soberania nacional e para a recuperação da
autonomia do país em matéria de política econômica, o que é inaceitável para a
direita neoliberal.
Fernando Henrique Cardoso defende a
“ruptura institucional”
Neste quadro, a tática que sobrava
para a direita e para os conservadores era investir numa cruzada moralista para
abalar o governo do presidente Lula. Paralelamente ao espetáculo midiático
protagonizado por Roberto Jefferson e personagens de seu quilate, Fernando Henrique
Cardoso repercutia em artigos e discursos aquelas acusações usando-as como base
para orientar seus prosélitos do campo conservador e direitista.
No auge daquela campanha midiática, o ex-presidente tucano repetiu em
sua coluna nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo afirmações de que “o
partido do presidente e seu governo estão envoltos num tsunami de suspeitas de
corrupção” (publicada em 8 de agosto de 2005). Mas fazia uma ressalva
dizendo-se cheio “de cuidados para não atribuir ao presidente culpas
específicas em função de suas responsabilidades gerais”, embora afirmasse que o
presidente não assumia essas responsabilidades deixando de fazer “o que o País
espera: governar”. Mas pedia pressa: “Nesse processo, entretanto, ruma-se
contra o tempo. O país perderá se deixarmos passar a hora”, insinuando
(claramente) a tomada de medidas contra o presidente – o impeachment.
Em artigo publicado em abril de 2005, naquela coluna, Fernando Henrique
Cardoso teve a desfaçatez de propor que, ante as acusações contra o governo, a
oposição (isto é, o conluio direitista e conservador) devia estar preparada
para tudo, inclusive para uma ruptura institucional! Isto é, para o golpe. Esta
ambição recuou logo para o objetivo de impor ao presidente Lula o compromisso
de não se candidatar à reeleição em 2006.
Em 5 de julho de 2005 Fernando Henrique Cardoso voltou à carga
apelidando as acusações como “inéditas em nossa história”, mantendo a ressalva
de que “até agora nada indica que o presidente Lula tenha diretamente algo a
ver com tudo isso”.
Mas insistia na tese de que “Lula deveria anunciar que não é mais
candidato à reeleição” (entrevista à revista Exame,1º de setembro de 2005). E
tentava explicar a chantagem: isso “poderia aliviar a crise e permitir que
[Lula] volte a ser candidato se as coisas andarem bem”.
Deixava claro o objetivo político da cruzada moralizante da mídia
conservadora e da oposição neoliberal e de direita: abrir caminho para sua
volta à presidência da República com o afastamento de Lula e da esquerda da
disputa eleitoral de 2006.
Lula rejeitou prontamente a chantagem. Como mostraram os repórteres
Cristiano Romero e Raymundo Costa (“Como Lula deu a volta por cima”, Valor
Econômico, 21 de maio de 2010), sua reação foi forte e embutia uma ameaça da
qual a direita e os conservadores fugiam como o diabo da cruz: “Se eles estão
pensando que vão me tirar daqui no tapetão, nem pensar! Vou pra rua”, disse ele
numa reunião.
Impeachment
Se o presidente não aceitava as
pressões para desistir da disputa, era preciso tirá-lo – esta foi a tese que
começou a crescer no campo da oposição conservadora e de direita. Fernando
Henrique Cardoso, o principal dirigente da oposição conservadora e neoliberal,
defendeu a tese em seu costumeiro estilo sinuoso e aparentemente indireto. Em
julho de 2005, numa coluna em O Estado de S. Paulo, referiu-se ao impeachment
de Collor num claro paralelo à crise criada em torno do presidente Lula. “Os
fatos foram mais fortes do que tudo e nos curvamos a eles e à necessidade da
depuração”, escreveu, concluindo com uma espécie de “garantia” ao dizer que “a
democracia resistiu galhardamente” (O Estado de S. Paulo, 5 de julho de 2005).
O subtexto era claro: em sua opinião o afastamento de Lula poderia não
significar riscos à democracia na forma como um conservador como Fernando
Henrique Cardoso a compreende.
Em agosto ele voltou à carga. Insistindo na acusação de que nunca teria
ocorrido, “na História do Brasil, uma sequência de desvios de conduta tão
deprimente como a que foi montada no País sob os auspícios de um partido, o PT”
(ele deixava de considerar, é óbvio, a pilhagem do patrimônio público ocorrida
em seu governo, entre 1995 e 2002), e pedia que as responsabilidades recaíssem
“sobre cada indivíduo na proporção dos erros cometidos. Seja qual for o
resultado das investigações, o importante é que, em seguida, haja as punições
de acordo com as leis”. Sem reservas: “se crime de responsabilidade houver ou
quebra de decoro parlamentar, sigam-se as regras estabelecidas na Constituição
com todas as consequências”. O alvo da expressão “crime de responsabilidade
“não podia ser outro senão o presidente Lula, não deixando dúvida de que a pena
constitucional defendida naquele texto só podia ser seu impeachment (O Estado
de S. Paulo, 8 de agosto de 2005).
O auge da crise ocorreu na ocasião do depoimento do publicitário Duda
Mendonça à CPI dos Correios, em 11 de agosto de 2005. Orientado pelo senador
Antônio Carlos Magalhães, um dos principais líderes da direita brasileira desde
a década de 1950, seu depoimento associou a campanha presidencial de 2002 a
irregularidades eleitorais referentes ao financiamento da campanha; elas dariam
o pretexto para o pedido de anulação judicial da vitória de Lula em 2002 –
podendo passar a presidência da República ao segundo colocado, José Serra!
Lula: “esses caras não conhecem minha
ligação com o povo”
“O governo Lula balançou” naquele
dia, dizem os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa e, no dia seguinte,
a cúpula do Palácio do Planalto fez um exame detalhado da situação, encarando
“o impeachment como uma ameaça concreta”, afirmam aqueles repórteres. Lula
revelou que um auxiliar havia proposto, dias antes, que renunciasse à reeleição
em 2006, aceitando os acenos de trégua feitos por Fernando Henrique Cardoso.
“Esses caras são gozados”, respondeu Lula, reafirmando a disposição de
continuar no páreo. “Eles não conhecem a minha ligação com o povo. Isso não vai
acontecer! Vou ganhar a eleição desses filhos da mãe!”. Desenhava-se, cada vez
com mais força, a reação que faria os conservadores e a direita recuar: o apelo
à rua (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
Mas foi exatamente o temor dessa ligação do presidente com o povo que
intimidou a direita e os conservadores. A pretensão de levar o presidente ao
impeachment começou a perder força quando os dirigentes da oposição avaliaram,
numa reunião realizadas na segunda feira seguinte ao depoimento de Duda
Mendonça, não terem votos no Congresso Nacional nem apoio popular para tirar o
presidente. “Não há clima político para o impedimento e o pedido, se houver,
tem de vir da sociedade”, disse o senador tucano Arthur Virgílio, depois da
reunião (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
À sua maneira, o então senador tucano Arthur Virgílio manifestou os
temores da direita e dos conservadores: o medo da reação popular. Isto é, da
“rua”.
No passado, a “rua” já se manifestara contra a mesma linha política
representada pela coalizão tucano-pefelista: em 1954 quando, após o suicídio de
Getúlio Vargas, a população apedrejou instalações de empresas norte-americanas
e redações de jornais que participaram da campanha contra o presidente em
capitais como Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre. A manifestação teve
força suficiente para barrar o golpe em andamento, que ficou “adiado” por uma
década. Em 1964, a direita conquistou a “rua”, mas sem mobilizar os
trabalhadores a seu favor: as passeatas contra Goulart foram frequentadas pela
classe média carola e anticomunista que deu um ar de apoio popular ao golpe de
Estado.
A direita perdeu a “rua”
As mais recentes manifestações da
“rua” não foram exatamente a favor do programa da direita e dos conservadores.
Em 1984, multidões exigiram as Diretas Já, apressando o fim da ditadura
militar. Em 1992, ergueram-se novamente contra o programa neoliberal de
privatizações e cortes de direitos sociais do presidente Fernando Collor de
Mello.
Em 2005 havia, de fato, um risco para a direita e seus dirigentes
estiveram à beira do pânico quando, em julho, estudantes que participavam do
49º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Goiânia, juntamente com
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) colocaram 20 mil pessoas nas ruas da capital goiana contra o golpe em
andamento, em apoio ao presidente Lula e à ordem constitucional e em defesa das
reivindicações contidas na Carta ao Povo Brasileiro, que fora entregue ao
presidente em junho, assinada por 42 entidades do movimento social. Ela
convocava manifestações populares contra a campanha da direita e por mudanças
no rumo do governo.
Lula reconheceu o significado daquela iniciativa ao receber a Carta
dizendo: “essa é a diferença dos amigos e dos companheiros como vocês em
relação aos que apareceram no meu caminho nos últimos anos. É bom contar com
vocês nessa hora”
(Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2005).
A direita perdera a “rua” e se consolava com um discurso conveniente,
para eles, de que o povo teria sido “comprado” pelos programas sociais (como o
Bolsa Família) e pelas melhorias econômicas trazidas pelo governo Lula.
Ilusões desfeitas no moinho da
política
Na entrevista para a revista Exame
(1º de julho de 2005) Fernando Henrique Cardoso ainda mantinha a ilusão de
obter apoio popular para a campanha que liderava contra o presidente Lula. Fora
assim no passado – em 1954 ou 1964, por exemplo; porque seria diferente agora?
Para explicar a popularidade de Lula, apesar dos ataques que sofria, ele usou
um sofisma. “A opinião pública reage lentamente”, disse, acrescentando um
preconceito elitista, de classe, ao argumento: “A opinião mais esclarecida já
perdeu a confiança, o povo não. É um movimento que aos poucos vai se
espalhando”. “Opinião mais esclarecida”, aqui, é uma expressão que se refere
aos setores conservadores que aderiram à campanha anti-Lula; ele esperava que
estes setores, tradicionalmente formadores de opinião, repercutissem as teses
da campanha conservadora, obtendo a adesão dos trabalhadores e do povo. Mas o
país já tinha mudado, e muito – e o que se viu, nos meses seguintes, foi a
falência destes formadores de opinião, que perderam cada vez mais a capacidade
de influir sobre as decisões dos demais. Basta lembrar o fracasso do pífio
Cansei! que a direita tentou convocar em 2007, e que deu em nada.
Sem perceber, ou admitir, que a questão não é de moralidade ou ética,
esta ilusão conservadora se juntava a outras desfeitas no moinho da política e
da luta de classes.
O velho e persistente conflito entre desenvolvimentistas e neoliberais –
que, desde os primórdios da República, manifestou-se no confronto entre
industrialistas e os dogmáticos da “vocação agrícola” do Brasil – foi reposto
com força no final da ditadura de 1964. Os interesses do capital financeiro e
do imperialismo confluíram no programa neoliberal imposto pelo Consenso de
Washington reforçando a posição subordinada do Brasil na divisão internacional
do trabalho.
Num país como o Brasil, onde a divisão de classes atingiu alto grau de
complexidade, a luta de classes em torno do projeto neoliberal envolveu
inclusive setores das classes dominantes que discordavam de alguns aspectos
parciais, como destacou o professor Décio Saes num artigo publicado na revista
Princípios, em 1996.
Embora praticamente toda a classe dominante fosse favorável à
desregulação das relações de trabalho e ao programa de privatizações, cada uma
de suas facções tinha lá seu próprio neoliberalismo. Os grandes bancos
brasileiros, por exemplo, não queriam a abertura do sistema financeiro aos
estrangeiros. A grande burguesia industrial, representada pela Fiesp e pela
CNI, queria a liquidação dos direitos sociais e trabalhistas, mas resistia à
abertura do mercado ao capital estrangeiro e, sobretudo, à enxurrada de
importações representada pela abertura econômica que ameaçava, inclusive, o
“desaparecimento do empresariado industrial e a conversão dos antigos
industriais em importadores de similares estrangeiros” (Décio Saes, “O governo
de FHC e o campo político conservador”. Princípios Nº 40, fevereiro/março/abril
de 1996).
Aldo Rebelo: “A rua não tem regimento
interno”
Lula manifestou uma notável percepção
deste dissenso. Se há uma contradição de classe mais geral, que opõe o
proletariado à burguesia, ou os trabalhadores às classes dominantes, os
conflitos dentro da própria classe dominante têm também uma expressão política
que se manifesta na oposição entre programas para o país – e o neoliberalismo
de Collor e Fernando Henrique Cardoso atendia sobretudo aos interesses da
oligarquia financeira aliada do imperialismo.
Naquela conjuntura, cresceram os acenos do presidente em direção aos
sindicalistas, trabalhadores e ao movimento social. Em 12 de julho de 2005 – em
plena crise – ele colocou no Ministério do Trabalho e do Emprego o
ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ex-presidente da CUT, Luiz
Marinho. Era uma sinalização importante, reforçada pela aceleração do processo
de recuperação do valor do salário mínimo.
A disposição de “ir pra rua” acompanhava estas mudanças. Na reunião
ocorrida no Palácio do Planalto no dia seguinte ao depoimento de Duda Mendonça,
Lula reafirmou esta disposição: “Nós vamos pra rua defender o mandato que o
povo nos deu”, disse Lula (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
A “rua” – este era o fantasma dos pesadelos conservadores e da direita.
Temor ressaltado pelo deputado comunista Aldo Rebelo ao final de uma reunião
com Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, que teve a participação dos então
ministros Márcio Thomaz Bastos e Antônio Palocci. O tema da conversa, ocorrida
depois do depoimento de Duda Mendonça, foi a questão do impeachment, e os
ministros manifestavam preocupação com a agressividade da oposição.
A oposição temia, dizem os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa
(Valor Econômico, 21 de maio de 2010), que a reação de Lula a um processo de
impeachment pudesse ser um apelo ao instinto de classe dos trabalhadores: “o
primeiro trabalhador a chegar à Presidência da República ia ser degolado pela
elite”, seguido de um inevitável aprofundamento das contradições políticas no
país. Temor acentuado quando Aldo Rebelo advertiu o ex-presidente: “Rua não tem
regimento interno”. Isto é, seu desenvolvimento pode ser imprevisível, ao
contrário dos embates no âmbito do parlamento, onde existe um regimento interno
que estabelece as regras para o confronto.
Tudo indica que a frase de Aldo Rebelo repercutiu no ânimo da liderança
tucana. “O problema é o seguinte: temos força?” [para o impeachment], perguntou
o ex-presidente aos senadores tucanos Arthur Virgílio e Tasso Jereissati, que
era presidente do PSDB. Virgílio já havia concluído, antes, que não tinham. E o
próprio Fernando Henrique chegou a essa conclusão na conversa finalizada com a
advertência de Aldo Rebelo. “O impeachment é um ato político, o jurídico é
outra coisa. Você vai para o tribunal. O ato político você tem que ter força
para ganhar, não é ter a razão”, disse aos ministros e ao deputado que foram
conversar com ele. E a oposição de direita e conservadora reconhecia não ter
força para ganhar.
A “tática do jagunço”: sangrar o
adversário até que morra
A consequência foi uma mudança na
tática da oposição. Se Lula não aceitou desistir da reeleição, se o impeachment
era inviável pela falta de força da direita, o caminho escolhido por ela e
pelos conservadores foi aquilo que pode se chamar de “tática do jagunço”:
sangrar o adversário até a morte. Investir contra ele, de todas as formas
imagináveis, com o objetivo de desmoralizá-lo e erodir a alta aprovação
popular, levando-o à derrota na eleição de 2006.
Isto intensificou a campanha moralista da oposição, que passava a
apostar no desdobramento das CPIs e em sua repercussão na imprensa
conservadora. A “tática do jagunço” mobilizou os cardeais tucanos e pefelistas,
de Tasso Jereissati a Jorge Bornhausen, José Serra e Aécio Neves (Valor
Econômico, 21 de maio de 2010). Os meses seguintes e a campanha eleitoral de
2006 foram marcados por ela e pelas acusações mais inverossímeis, caluniosas e
irresponsáveis que o país assistiu até a véspera da eleição de 2006. Foi,
contudo, um vale-tudo inútil cujo resultado é conhecido: a direita e os
conservadores perderam.
Os propagandistas do chamado “mensalão” alardeiam tratar-se do “maior
escândalo de corrupção da história da República”. Esquecem do mar de lama
constituído pela privataria tucana e pela entrega de patrimônio público a
empresas privadas (muitas delas multinacionais), a preços aviltados. Esquecem
do esquema de financiamento das campanhas de 1998, envolvendo o candidato
tucano em Minas Gerais (Eduardo Azeredo) e também Fernando Henrique Cardoso.
Ele e a cúpula de seu governo não esqueceram, e uma das últimas medidas do
então presidente da República foi aprovar uma lei, no final de seu governo (em
24 de dezembro de 2002) garantindo foro privilegiado a ex-presidentes,
ex-ministros, ex-governadores, ex-secretários de Estado e ex-prefeitos e por aí
vai, subtraindo o julgamento de suas ações à justiça comum. Medida que indica o
temor de precisar comparecer perante os tribunais para responder por aquilo que
fez na presidência da República.
Ganhar no tapetão
O processo continuou na justiça. Com
base nas apurações feitas pelas CPIs em agosto de 2007 o Supremo Tribunal
Federal (STF) aceitou a denúncia apresentada em abril de 2006 pelo Procurador
Geral da República, iniciando o processo contra os acusados pelo chamado
“mensalão”. É o processo cujo julgamento entrou em sua fase final no dia 2 de
agosto.
As alegações deste processo, baseadas em argumentação frágil, reiteram o
caráter político de seu desdobramento e acentuam o objetivo de condenar o
governo de Luís Inácio Lula da Silva e a esquerda em geral, acusados de imersos
no apelidado “maior escândalo de corrupção” da República.
Mas não há provas e este é o problema para a oposição. Inexistência de
provas reforçada inclusive pelas alegações do autor da farsa do “mensalão” – Roberto
Jefferson – ao STF, em setembro de 2011, como revelou a colunista Hildegard
Angel (Portal R7, 15 de setembro de 2011). Em sua defesa, o denunciante afirma
que o
“Mensalão nunca existiu. Não foi fato. Foi retórica”.
O caráter político do julgamento do chamado “mensalão” revela-se nessa
fragilidade. A mídia conservadora e a direita neoliberal condenaram
antecipadamente aqueles a quem acusaram pelo crime do “mensalão”. E agora
colocam uma faca no pescoço do STF, exigindo que ratifique esta condenação “extrajudicial”.
Este é o grande problema da direita e dos conservadores. Que mesmo assim não
deixam de usar aquelas acusações e o julgamento como ferramenta política contra
o ex-presidente Lula e a esquerda (“Com a faca no pescoço. Ou sem a faca?”.
Retrato do Brasil, edição nº 55, fevereiro de 2012).
Uso, agora, defensivo: em meio às graves dificuldades eleitorais que vai
ceifando, eleição a eleição, os quadros mais notáveis do conluio
tucano-pefelista, esperam agitar as sessões do STF no mesmo espírito da “tática
do jagunço”: sangrar o adversário para pelo menos reduzir sua força na eleição
deste ano e criar algumas dificuldades para a disputa de 2014.
Outros pensam que foi quando o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) deu a bombástica e fantasiosa entrevista à Folha de S. Paulo, em 6 de junho de 2005, que logo repercutiu pela imprensa, tornando-se capa nos maiores jornais do país. Foi nela que o então deputado criou o neologismo “mensalão”.
Coube ao governo tucano implantar o programa de Collor: o programa de privatizações, reformas neoliberais, desregulamentação das relações trabalhistas, redução dos direitos sociais e submissão às imposições do imperialismo, que Collor iniciou sem poder levar até o final.
As medidas por ele anunciadas agravaram a crise, dificultando a vida das empresas e dos trabalhadores, com o aumento do desemprego, que já era alto.
Mas insistia na tese de que “Lula deveria anunciar que não é mais candidato à reeleição” (entrevista à revista Exame,1º de setembro de 2005). E tentava explicar a chantagem: isso “poderia aliviar a crise e permitir que [Lula] volte a ser candidato se as coisas andarem bem”.
Lula rejeitou prontamente a chantagem. Como mostraram os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa (“Como Lula deu a volta por cima”, Valor Econômico, 21 de maio de 2010), sua reação foi forte e embutia uma ameaça da qual a direita e os conservadores fugiam como o diabo da cruz: “Se eles estão pensando que vão me tirar daqui no tapetão, nem pensar! Vou pra rua”, disse ele numa reunião.
O subtexto era claro: em sua opinião o afastamento de Lula poderia não significar riscos à democracia na forma como um conservador como Fernando Henrique Cardoso a compreende.
No passado, a “rua” já se manifestara contra a mesma linha política representada pela coalizão tucano-pefelista: em 1954 quando, após o suicídio de Getúlio Vargas, a população apedrejou instalações de empresas norte-americanas e redações de jornais que participaram da campanha contra o presidente em capitais como Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre. A manifestação teve força suficiente para barrar o golpe em andamento, que ficou “adiado” por uma década. Em 1964, a direita conquistou a “rua”, mas sem mobilizar os trabalhadores a seu favor: as passeatas contra Goulart foram frequentadas pela classe média carola e anticomunista que deu um ar de apoio popular ao golpe de Estado.
Lula reconheceu o significado daquela iniciativa ao receber a Carta dizendo: “essa é a diferença dos amigos e dos companheiros como vocês em relação aos que apareceram no meu caminho nos últimos anos. É bom contar com vocês nessa hora”
O velho e persistente conflito entre desenvolvimentistas e neoliberais – que, desde os primórdios da República, manifestou-se no confronto entre industrialistas e os dogmáticos da “vocação agrícola” do Brasil – foi reposto com força no final da ditadura de 1964. Os interesses do capital financeiro e do imperialismo confluíram no programa neoliberal imposto pelo Consenso de Washington reforçando a posição subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho.
Naquela conjuntura, cresceram os acenos do presidente em direção aos sindicalistas, trabalhadores e ao movimento social. Em 12 de julho de 2005 – em plena crise – ele colocou no Ministério do Trabalho e do Emprego o ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ex-presidente da CUT, Luiz Marinho. Era uma sinalização importante, reforçada pela aceleração do processo de recuperação do valor do salário mínimo.
A “rua” – este era o fantasma dos pesadelos conservadores e da direita. Temor ressaltado pelo deputado comunista Aldo Rebelo ao final de uma reunião com Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, que teve a participação dos então ministros Márcio Thomaz Bastos e Antônio Palocci. O tema da conversa, ocorrida depois do depoimento de Duda Mendonça, foi a questão do impeachment, e os ministros manifestavam preocupação com a agressividade da oposição.
As alegações deste processo, baseadas em argumentação frágil, reiteram o caráter político de seu desdobramento e acentuam o objetivo de condenar o governo de Luís Inácio Lula da Silva e a esquerda em geral, acusados de imersos no apelidado “maior escândalo de corrupção” da República.
Mas não há provas e este é o problema para a oposição. Inexistência de provas reforçada inclusive pelas alegações do autor da farsa do “mensalão” – Roberto Jefferson – ao STF, em setembro de 2011, como revelou a colunista Hildegard Angel (Portal R7, 15 de setembro de 2011). Em sua defesa, o denunciante afirma que o
Postado em: 7 ago 2012 às 19:19
Por José Carlos Ruy, Vermelho
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