A mídia seletiva e os mensalões
Por Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes:
A lisura no trato da coisa pública é uma aspiração legítima
da sociedade brasileira, e o fato de o conservadorismo, em conluio com a mídia,
manipular politicamente tal demanda não a torna menos genuína.
A esquerda não
pode igualar-se à direita e se utilizar de dois pesos e duas medidas para
relativizar a corrupção e dissimular suas próprias violações éticas, sob pena
de comprometer não apenas sua imagem, mas a legitimidade de seu projeto
político.
Por outro lado, a parcialidade, a distorção deliberada e a
assimetria de tratamento que a mídia dispensa à corrupção quando praticada por
conservadores ou progressistas constitui, em si, não apenas uma grave
negligência das funções públicas que os meios de comunicação – mesmo se
privados - deveriam exercer, mas, assim, uma forma perversa de violação da
ordem democrática.
Que tal violação, embora evidente e de longo prazo,
permaneça impune – para o que muito contribui a extinção da Lei de Imprensa
pelo mais midiático e politicamente tendencioso ministro da história do STF –
constitui, em si, um atestado do precário estágio do ordenamento institucional
jurídico do país e dos desequilíbrios entre os pesos e contrapesos que lhe
deveriam assegurar a plena democracia.
Parcialidade e omissão
O protagonismo do “escândalo do mensalão” e a presunção de
que seria o maior caso de corrupção da história do país derivam diretamente
desse estado de coisas. Tanto o volume de movimentação financeira envolvido
quanto a gravidade das práticas alegadamente identificadas, não obstante
merecedoras de investigação e de apreciação pela Justiça, estão aquém dos
níveis alcançados por diversos casos pregressos e atuais patrocinados pelos
setores conservadores, como o esquema identificado pela Operação Monte Carlo da
Polícia Federal, protagonizado por Carlinhos Cachoeira, políticos do DEM e ao
menos um órgão de imprensa, e as denúncias documentadas envolvendo José Serra e
o processo de privatização da era FHC apresentadas no livro A Privataria
Tucana, do premiado repórter Amaury Ribeiro Jr.
O fato de a mídia dar relativamente pouco destaque às
descobertas gravíssimas da Operação Monte Carlo – que sugerem um poder paralelo
que dominaria o estado de Goiás, com ramificações nacionais e grande poder de
manipulação midiática –, e não dar uma linha sequer sobre as denúncias
envolvendo as privatizações tucanas, em comparação com o estardalhaço que fez,
faz e continuará fazendo com o mensalão, constitui uma clara violação do
princípio da imparcialidade jornalística.
Às favas os princípios
Ainda que constitua, na prática, um preceito inatingível em
sua plenitude, o esforço para se manter fiel a ele seria fundamental para
assegurar um processamento criterioso e equânime à notícia, o qual desse um
tratamento em bases similares aos acusados e fornecesse os elementos para o
leitor julgar por si mesmo os fatos retratados, sem induzi-lo ou manipulá-lo a
favor desta ideologia ou daquele partido.
Desnecessário observar que a mídia brasileira, embora erija
para si um discurso fundado no direito público à informação, ignora solenemente
tal princípio e, na verdade, pratica o inverso do que ele preceitua, como fica
evidente quando se analisa os casos acima citados e na diferença de tratamento
entre o quase desconhecido “mensalão” do PSDB e o megadifundido “mensalão”
petista. O primeiro, embora cronologicamente anterior, milionário,
protagonizado pelo mesmo Marcos Valério e com processo criminal aberto no STF
contra o ex-governador Eduardo Azeredo (PSDB/MG), só é referenciado como
“mensalão mineiro”, truque retórico que troca a origem partidária pela regional
como forma de blindar os tucanos.
A cobertura do “mensalão”
Seria ingenuidade esperar que, com tal retrospecto, a mídia
fosse oferecer uma cobertura minimamente equilibrada do trâmite, no STF, da
Ação Penal 470, vulgo “julgamento do mensalão” - afinal, trata-se de uma rara
chance de, em pleno período eleitoral, dar uma força ao carcomido
demotucanismo.
O primeiro dia, que foi dedicado a examinar – e a negar - o
pedido da defesa pelo desmembramento do processo - para que permanecessem
apenas os réus com direito à foro privilegiado no STF e os demais fossem
submetidos à primeira instância, como ocorrera com o “mensalão mineiro” -
acabou, inadvertidamente e numa ironia do destino, por levar ao conhecimento do
público a existência de um “mensalão” do PSDB, citado pela maioria dos
ministros.
Premissas questionáveis
Mas a mídia reagiria ao lapso já no dia seguinte. E de forma
virulenta: só o partidarismo mais tacanho, somado ao pouco apreço pelo Estado
de Direito e ao desprezo intelectual que nutre por seus leitores e
telespectadores – os quais Willian Bonner compara a Homer Simpson -, pode
explicar a ginástica verbal que ela, no intuito de tirar o máximo proveito
eleitoral do “mensalão”, tem feito desde então para legitimar como
incriminadora a peça acusatória apresentada por Roberto Gurgel,
procurador-geral da República, contra o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu.
O procurador parte de uma premissa genérica que, não
obstante potencialmente perigosa, beira a comicidade: a de que a não-aparição
do nome do acusado na, em suas palavras, “execução do esquema” é indício de que
ele seria o “chefão”. Uau, isso permitiria acusar virtualmente qualquer um.
Seria o caso de recomendar aos chefões do crime, de agora em diante, que, para
se preservar, cuidem de sempre colocar seu nome no expediente de suas
quadrilhas...
A explanação de Gurgel pecou não apenas por partir de tal
premissa, mas por se valer unicamente de relatos de terceiros – em sua maioria,
acusados ou inimigos políticos do réu – e de trechos selecionados de matérias
produzidas por nossa mais do que tendenciosa imprensa. Soa como uma base para
acusação extremamente frágil.
Provas, para quê?
Nenhum indício material - um extrato de banco, uma
assinatura em um documento -; nenhuma evidência física - uma gravação, uma
foto, um vídeo -; nenhuma prova digital – um comprovante de transferência, um
log de movimentação financeira ou epistolar, um SMS, uma chamada telefônica.
Na era do positivismo científico, da tecnologia forense, do
DNA, da vigilância eletrônica e digital não seria demais esperar que o ilustre
procurador apresentasse indícios concretos e provas factíveis, passíveis de
comprovação, ao invés de uma interminável e monocórdia arenga baseada numa
premissa pra lá de questionável e no “ouvi dizer” de testemunhas de índole
questionável, além de no material produzido por uma mídia comprometida até o
pescoço com a condenação de Dirceu.
Talvez tivesse sido mais honesto se o procurador abrisse mão
da benevolência midiática e de seus holofotes e admitisse que o Ministério
Público Federal não foi capaz de achar provas contra o acusado.
Punam-se os culpados, mas todos.
A falta de provas contra Dirceu talvez seja uma exceção. Há,
sim, um forte indício de irregularidades cometidas, se não por todos, por
alguns dos réus do julgamento. É bem provável que pelo menos a utilização de
“caixa dois” seja caracterizada no decorrer do julgamento. Se isso vier a
acontecer, os responsáveis devem ser punidos, e com o rigor cabível.
Ocorre, porém, que utilização de “caixa dois” é um
expediente amplamente disseminado entre virtualmente todos os partidos
políticos do país e pau que bate em Chico bate em Francisco - ou seja, se o
partido A for justamente punido por recorrer a uma prática ilegal, a justiça e
o bom funcionamento da democracia demandam que os partidos B, C, D e E também o
sejam. E que a mídia cubra com igual voracidade. De outro modo, não se estará
fazendo justiça, mas, ao dispensar diferentes tratamentos a práticas idênticas,
promovendo o contrário disto.
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