Pessoas inteligentes e informadas conseguem ignorar o gigantesco desvio
de recursos através dos bancos, e culpam o eterno bode expiatório que é o
governo.
Por: Ladislau Dowbor,
27/03/2015
O homo sapiens todos conhecemos.
Inclusive a maior parte da teoria econômica e das teorias das
transformações sociais se baseia numa compreensão otimista de que o
homem absorve conhecimentos, confronta-os com os seus objetivos
racionalmente entendidos, e procede de acordo. Quando erra, analisa os
erros e corrige a sua visão para não repeti-los.
Naturalmente, é agradável pensarmos que
somos, conforme aprendi na escola, animais racionais, racionalidade que
nos separaria confortavelmente dos animais. As minhas dúvidas aumentam
proporcionalmente à minha idade, o que significa que são elevadas.
Pensar que somos mais do que somos é uma atitude muito difundida. A
bíblia já abre com o tom adequado: Deus nos criou à sua imagem e
semelhança, o que implica por virtude dos espelhos que somos semelhantes
nada mais nada menos que a Ele. O tamanho desta pretensão, e o fato de
passar tão desapercebida e natural, já mostra a que ponto a nossa
racionalidade pode ser adaptada ao que é agradável, mas não
necessariamente ao que é verdadeiro.
Pensar na dimensão irracional da nossa
inteligência, ou nas raízes interessadas e ideologicamente deformadas do
que nos parece racionalmente verdadeiro, é muito interessante. Fazemos
uma construção racional em cima de fundamentos profundamente enterrados
na confusão de paixões, medos, ódios e sentimentos contraditórios.
Quanto maior o preconceito – no sentido literal, raiz emocional que
assume a postura antes do entendimento – maior parece ser a busca do
sentimento de superioridade moral.
Devemos lembrar como foram
denunciados e massacrados ou ridicularizados os que lutaram pelo fim da
escravidão, pelo fim da discriminação racial, pelos direitos de
organização dos trabalhadores, pelo voto universal, pelos direitos das
mulheres? A imensa batalha que foi chegar ao intelecto dos dominantes
que um povo colonizar outro não dá certo? Hoje é a mesma luta pela
redução das desigualdades, pelo fim da destruição do planeta, pela
democratização de uma sociedade asfixiada por interesses econômicos.
Aqui precisamos de muito bom senso e generosidade. Ou seja, emoções e
indignações sim, mas apoiadas na inteligência do que acontece no mundo e
visando o interesse maior de todos, e não no interesse particular de
defesa dos privilégios.
Aqui realmente é preciso de
muita ignorância, ou seja, desconhecimento (voluntário ou não), para não
se dar conta dos desafios reais. O aquecimento global é uma ameaça
real, mas a direita tende a negar, como se o termômetro e os gazes de
efeito de estufa fossem de esquerda. O desmatamento generalizado do
planeta está levando a perdas de solo fértil em grande escala, quando
iremos precisar de mais área de plantio. A vida nos mares está sendo
esgotada pela sobrepesca e em 40 anos, segundo o WWF, perdemos 52% da
vida vertebrada no planeta. É um desastre planetário espantoso, mas não
aparece na mídia comercial. Os dados sobre a inviabilização ambiental do
planeta são hoje amplamente comprovados. Há controvérsias, nos dizem.
Mas é questão de opinião ou de conhecimento dos dados?
No plano social é mais
impressionante ainda: até o Fórum Econômico em Davos escuta e divulga as
pesquisas da Oxfam, do Banco Mundial e das Nações Unidas, dos inúmeros
institutos de pesquisa estatística em todos os países sobre a
desigualdade crescente da renda. Pior, temos agora os dados da
desigualdade do patrimônio acumulado das famílias – 85 famílias são
donas de mais riqueza acumulada do que 3,5 bilhões de pessoas na base da
pirâmide social – gerando tensões insustentáveis. Mas em Wall Street
enchem a boca e declaram “greed is good”. Sobre esta desigualdade de
patrimônio uma das principais fontes é o Crédit Suisse, que tem boas
razões para entender tudo de fortunas familiares. Nem os dados da
própria direita parecem convencer a direita, se não confirmam os seus
preconceitos.
Vamos tampar os olhos e fazer de
conta que acreditamos que é possível manter a paz política e social num
planeta onde 1,3 bilhões não têm acesso à luz elétrica, 2 bilhões não
têm acesso a fontes decentes de água, e 850 milhões passam fome?
Tem sentido acreditar no bom pobre¸ que se resigna e aceita, quando
hoje até no último degrau da pobreza há uma consciência do direito a ter
uma escola decente para o filho, saúde básica para a família? Aqui já
não são apenas os olhos e os ouvidos que estão tapados, e sim a própria
inteligência. O homo ignorans raciocina com o fígado.
E porque toda esta riqueza
acumulada no topo não serve para as reconversões tecnológicas que nos
permitam salvar o planeta, e para financiar as políticas sociais e
inclusão produtiva capaz de reduzir as desigualdades? Basicamente
porque está situada em paraísos fiscais, aplicada em sistemas de
especulação financeira, sequer orientada para investimentos produtivos
tradicionais. Os 737 grupos que controlam 80% das atividades
corporativas do planeta são essencialmente grupos financeiros. Fonte? O
Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica. São
recursos que não só se aplicam em especulação financeira em vez de
financiar investimentos produtivos, como migram para paraísos fiscais
onde não pagam impostos. O Economist estima que sejam 20 trilhões de
dólares, um pouco menos de um terço do PIB mundial.
O Brasil tem cerca de 520
bilhões de dólares em paraísos fiscais, da ordem de 25% do PIB. O HSBC
que o diga. Mas no Brasil a grande vitória é a eliminação da CPMF que
cobrava ridículos 0,38% sobre movimentações financeiras. No Brasil
pessoas inteligentes e informadas conseguem ignorar o gigantesco desvio
de recursos através dos grandes intermediários financeiros, e culpam o
eterno bode expiatório que é o governo. Em particular
quando comete o pecado de melhorar a condição dos pobres. Ainda bem que
temos a corrupção para canalizar a atenção e os ódios. O uso produtivo
dos recursos não seria mais inteligente?
Não há nenhuma confusão sobre as
dimensões propositivas: se estamos destruindo o planeta em proveito de
uma minoria que pouco produz e muito especula, trata-se de tributar a
riqueza improdutiva para financiar as políticas tecnológicas, ambientais
e sociais indispensáveis aos equilíbrios do planeta. Com Ignacy Sachs e
Carlos Lopes apontamos rumos básicos no documento Crises e
Oportunidades em Tempos de Mudança, não são ideias que faltam:
falta muita gente que tampa o sol com a peneira dos seus interesses se
dar conta dos desafios reais que enfrentamos. Aliás, o norte é bem simples:
toda política que reduz as desigualdades, protege o meio ambiente, e
tributa capitais improdutivos contribui não para salvar um governo, mas
para nos salvar a todos. E um país do tamanho do Brasil tem como trunfo
fundamental, nesta época de turbulências planetárias, a possibilidade de
ampliar a base econômica interna através da inclusão produtiva.
Confesso que ando preocupado.
Parece que quanto maior a bobagem declarada, maior o sentimento de
superioridade moral. E o ódio, esta eterna ferramenta dos
preconceituosos, é um sentimento agradável quando se consegue encobrir o
interesse com um véu de ética. Nesta nossa guerra permanente entre o
frágil homo sapiens e o poderoso e arrogante homo ignorans, a olhar pelo
mundo afora, e pelos gritos histéricos de extremistas por toda parte –
sempre em nome de elevados sentimentos morais e com amplas
justificações racionais – o direito ao ódio parece superar todos os
outros. Pobre Deus, nosso semelhante.
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