sábado, 6 de janeiro de 2018

Gramsci: Socialismo e Cultura


Introdução por Marcelo Troysi

O presente texto faz parte de uma série de escritos de Antonio Gramsci, ilustre pensador marxista que criou reflexões das mais brilhantes, como hegemonia, intelectual orgânico e adicionou novos pensamentos acerca do conceito de ideologia. Gramsci nasceu em 1891 na cidade de Ales (Oristano, Sardenha), inscreve-se na seção de Turim do Partido Socialista Italiano em 1913, faz parte da redação turinense do Avanti!, onde escreve diversos artigos. Gramsci é preso em 1926 pelo regime fascista de Mussolini. É no cárcere que vem à luz suas mais brilhantes reflexões.

Trato de expor aqui o primeiro de uma série de escritos pré-carcerários de Gramsci que estou redigindo de vários livros sobre este prolífico pensador, principalmente livros de um grande intelectual brasileiro, Carlos Nelson Coutinho, que tratou de analisar profundamente o pensamento de Antonio Gramsci e expô-lo em Antologias como "O leitor de Gramsci", publicado pela Civilização Brasileira em 2011 e outras obras.
                                                                                                                             
                                                                                                                                         

Por Antonio Gramsci

[...]Recordemos duas passagens. Uma de um romântico alemão, Novalis (que viveu entre 1772 e 1801), que diz : "O supremo problema da cultura é o de dominar o próprio transcendental, de ser ao mesmo tempo o eu do próprio eu. Por isso, surpeende pouco a falta de intuição e de conhecimento completo dos outros. Sem uma perfeita compreensão de nós mesmos, não poderemos compreender verdadeiramente os outros."

 A outra, que resumimos, é de G. B. Vico. Vico [...] dá uma interpretação política do famoso dito de Sólon, que Sócrates depois assumiu para a filosofia: "Conhece-te a ti mesmo". Vico afirma que Sólon, com este dito, quis aconselhar os plebeus, que acreditavam ser de origem bestial, enquanto os nobres seriam de origem divina, a refletirem sobre si mesmos para se reconhecerem de igual natureza humana que os nobres e, por conseguinte, para pretenderem ser-lhesigualados no direito civil. E, em seguida, põe essa consciência da igualdade humana entre plebeus e nobres como a base e a razão histórica do surgimento das repúblicas democráticas na Antiguidade.
Não aproximamos os dois fragmentos por acaso. Eles nos parecem conter, ainda que expressos e definidos de modo não muito preciso, os limites e os princípios que devem servir de base para uma justa compreensão do conceito de cultura também em relação ao socialismo.

É preciso perder o hábito e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico, no qual o homem é visto apenas sob a forma de um recipiente a encher e entupir de dados empíricos, de fatos brutos e desconexos, que ele depois deverá classificar em seu cérebro como nas colunas de um dicionário, para poder em seguida, em cada ocasião concreta, responder aos vários estímulos do mundo exterior. Essa forma de cultura é realmente prejudicial, sobretudo para o ploretariado. Serve apenas para criar marginais, pessoas que acreditam ser superiores ao resto da humanidade porque acumularam na memória certo número de dados e de datas que vomitam em certa ocasião, criando assim quase que uma barreira entre elas e as demais pessoas. Serve para criar aquele tipo de intelectualismo balofo e incolor, tão bem-fustigado duramente por Romain Rolland, intelectualismo que gerou toda uma caterva de presunçosos e sabichões, mais deletérios para a vida social do que os micróbios da tuberculose e da sífilis o são para a beleza e a saúde física dos corpos. O estudantezinho que sabe um pouco de latim e de história, o rábula que conseguiu obter um diploma graças à irresponsabilidade e à desatenção dos professores acreditam ser diferentes, superiores até mesmo ao melhor operário qualificado, que cumpre na vida uma tarefa bem precisa indispensável e que vale cem vezes mais em sua atividade do que os outros valem na deles. Mas isso não é cultura, é pedantismo; não é inteligência, mas intelectualismo - e é com toda razão que se reage contra isso.

A cultura é algo bem diverso. É organização, disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista de consciência superior: e é graças a isso que alguém consegue compreender seu próprio valor histórico, sua própria função na vida , seus próprios direitos e seus próprios deveres. Mas nada disso pode ocorrer por evolução espontânea, por ações e reações independentes da própria vontade, como ocorre na natureza vegetal e animal, onde cada ser singular seleciona e especifica seus próprios orgãos inconscientemente, pela lei fatal das coisas. O homem é sobretudo espírito, ou seja, criação histórica, e não natureza. Se não fosse assim, seria impossível explicar por que, tendo tendo sempre existido explorados e exploradores, criadores de riqueza e consumidores egoístas da mesma, o socialismo ainda não se realizou. É que só pouco a pouco, de estrato em estrato, a humanidade adquire consciência de seu próprio valor e conquista o direito de viver independentemente dos esquemas e dos direitos de minorias que se afirmaram historicamente num momento anterior.  E essa consciência se forma não sob a pressão brutal da necessidades fisiológicas, mas através da reflexão inteligente (primeiro de alguns e depois de toda uma classe) sobre as razões de certos fatos e sobre os meios para convertê-los, de ocasião de vassalagem, em bandeira de rebelião e de reconstrução social. O que significa que toda revolução foi precedida por um intenso e continuado trabalho de crítica, de penetração cultural, de impregnação de ideias em agregados de homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos, dia a dia, hora a hora, seus próprios problemas econômicos e políticos, sem vínculos de solidariedade com os que se encontravam na mesma situação. O último exemplo, o mais próximo de nós e por isso o menos diferente do nosso, é o da Revolução Francesa. 

O período cultural que a antecedeu, chamado de Iluminismo, tão difamado pelos críticos superficiais da razão teórica, não foi de modo algum - ou, pelo menos, não foi inteiramente - aquele borboletar de inteligências enciclopédicas superficiais que discorriam sobre tudo e sobre todos com idêntica imperturbabilidade, que acreditavam só ser homens do seu tempo depois de ter lido a Grande Enciclopédia de D'Alembert e de Diderot. Em suma, não foi apenas um fenômeno de intelectualismo pedante e árido, similar ao que vemos diante dos nossos olhos e que encontra sua manifestação nas universidades populares de baixo nível. Foi ele mesmo uma magnífica revolução, mediante a qual, como observa agudamente De Sanctis em sua Storia della letteratura italiana, formou-se em toda Europa  uma consciência unitária, uma internacional espiritual burguesa, sensível em todos os seus elementos às dores e às desgraças comuns, e que foi a melhor preparação para a sangrenta revolta que depois teve lugar na França.

Na Itália, na França, na Alemanha, discutiam-se as mesmas coisas, as mesmas instituições, os mesmo princípios. Toda nova comédia de Voltaire, todo pamphlet era a centelha que passava pelos fios já tensos entre Estado e Estado, entre região e região, encontrando por toda parte e ao mesmo tempo os mesmos defensores e os mesmos opositores. As baionetas dos exércitos de Napoleão encontravam o caminho já preparado por um exército invisível de livros, de opúsculos, que vinham como enxames de Paris desde a primeira metade do século XVIII e que haviam preparado homens e instituições para a necessária renovação. Mais tarde, quando os fatos da França solidificaram as consciências, bastou um movimento popular em Paris para suscitar outros similares em Milão, em Viena e nos centros menores. Aos simplistas, tudo isso parece natural e espontâneo; mas ao contrário, seria incompreensível se não conhecessem os fatores culturais que contribuíram para criar aquele estado de espírito pronto para explosões em favor de uma causa que se acreditava em comum.

O mesmo fenômeno repete-se hoje com o socialismo. É através da crítica à civilização capitalista que se forma ou se está formando a consciência unitária do ploretariado: e crítica quer dizer cultura, e não evolução espontânea e natural. Crítica quer dizer precisamente aquela consciência do eu que Novalis definia como meta da cultura. Um eu que se opõe aos outros, que se diferencia, e que, tendo criado para si mesmo uma finalidade, julga os fatos e os eventos não só em si e para si, mas também como valores de propulsão ou repulsão. Conhecer a si mesmo significa ser si mesmo, ser o senhor de si mesmo, diferenciar-se, elevar-se acima do caos, ser um elemento de ordem, mas da própria ordem e da própria disciplina diante de um ideal. E isso não pode ser obtido se também não se conhecem os outros, a história deles, a sucessão dos esforços que fizeram para ser o que são, para criar a civilização que criaram e que nós queremos substituir pela nossa. Significa ter noções sobre o que é a natureza e suas leis a fim de conhecer as leis que governam o espírito. E aprender tudo sem perder de vista a finalidade última, ou seja, a de conhecer melhor a si mesmo através dos outros e conhecer melhor os outros através de si mesmo.

Se é verdade que a história universal  é uma cadeia dos esforços  que o homem fez para libertar-se dos privilégios, do preconceitos e das idolatrias, não se compreende por que o ploretariado - que quer acrescentar um outro elo a essa cadeia - não deva saber como, por que e por quem foi precedido, bem como o benefício que poderá  extrair deste saber.

(Assinado Alfa Gamma, Il Grido del popolo, 29/1/1916; EP 1, 56-61).

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