DA
IMPOSSIBILIDADE DE OS PROCURADORES MUNICIPAIS EXERCEREM A DEFESA DOS PREFEITOS
EM AÇÃO POPULAR
Augusto
Vinícius Fonseca e Silva
Procurador
do Município de Juiz de Fora/MG
Membro
do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC
Ex-pesquisador/bolsista
da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Viçosa em convêncio com a
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais nas áreas de Direito
Administrativo e Direito Comunitário Europeu
Pós-graduado
em Direito Civil e Processo Civil pela UNESA/RJ
Ementa:
Ação Popular ajuizada em face da pessoa do
Prefeito Municipal de Juiz de Fora pessoa do Vice-prefeito Municipal – Dúvida –
Atribuições dos Procuradores do Município – Incompatibilidade para defesa das pessoas do Prefeito e Vice-prefeito –
art. 6º, §3º da Lei 4717/65 (Ação Popular).
Introdução
e proposta do trabalho:
Exercendo
as atribuições gerais inerentes ao cargo de Procurador de Município, surgiu
questionamento sobre a possibilidade de tais profissionais exercerem a defesa
do Prefeito e do Vice-Prefeito, em Ação Popular cujas autoridades figurassem
como rés.
Este
artigo nasceu de parecer emitido à consulta formulada pela Procuradoria-Geral
do Município de Juiz de Fora e sobre o tema chegou-se às conclusões a seguir
expostas, não sem antes contextulizá-lo.
Assim,
neste estudo, buscar-se-á demonstrar, fundamentadamente, os porquês e as
consequências, inclusive de ordem criminal, de os Procuradores Municipais não
poderem patrocinar defesa do agente público.
1-
Tramita na Comarca de Juiz de Fora, processo judicial (Ação Popular) ajuizada
por cidadãos em face do Prefeito e do Vice-Prefeito do Município. Citado para
promoverem suas defesas, foi acionado a Procuradoria-Geral, a qual formulou o
questionamento acima feito.
Mas,
para análise da situação em tela, necessário averiguar-se quais são as
atribuições de um Procurador de Município.
2-
No caso do Município de Juiz de Fora, há Decreto Regulamentar Municipal 7243,
de 04/01/2002, que institui o sistema jurídico municipal e regulamenta as
atribuições da Procuradoria-Geral do Município. Em seu art. 4º, I, prescreve:
“art.
4º. À Procuradoria-Geral do Município – PGM, dotada de autonomia
administrativa, orçamentária e financeira, compete:
I-
a representação do Município em
juízo ou em processos administrativos contenciosos.”
O
art. 6º do mesmo Diploma Municipal prescreve, também, peremptoriamente:
“Compete
ao Departamento de Procuradoria Administrativa prestar assessoria jurídica aos órgãos da Administração Pública nos
assuntos relativos (...).”
3-
Nota-se, dessa maneira, que o órgão Procuradoria-Geral de Município e seus
respectivos Procuradores encontram-se vinculados à defesa do Município, enquanto pessoa jurídica de
direito público interno (CPC, 12, II), com personalidade jurídica própria e distinta das pessoas que o
representam.
4-
Logo, vê-se, sem maiores dificuldades, que os Procuradores Municipais não
possuem atribuição legal para a defesa das pessoas
de seus representantes.
5-
Além do mais, a remuneração dos Procuradores Municipais advém dos cofres do Município, oneram o erário municipal,
pelo que se conclui ser a este ente federativo que tais servidores devem
defender.
6-
A situação de incompatilidade dos Procuradores Municipais agrava-se ainda mais,
pela possibilidade conferida pela Lei Nacional 4717/65, em seu art. 6º, §3º, de
a pessoa jurídica de direito público (no caso, um Município) poder atuar ao
lado dos autores da referida ação ajuizada, desde que isso se afigure útil ao
interesse público.
Assim,
haveria risco de inevitável impasse: se os Procuradores do Município fizessem a
defesa do Prefeito e do Vice e, após, o Município tivesse de intervir no pólo
ativo, como ficariam? Patrocinariam o interesse de partes que se encontram em
pólos antagônicos? Não. Terminantemente. A situação poderia consubstanciar-se,
pelo menos em tese, o crime tipificado no art. 355, parágrafo único do Código
Penal, qual seja, “Patrocínio Simultâneo ou Tergiversação”, transcrito abaixo:
“Incorre
na pena prevista neste artigo (Detenção de 06 meses a 03 anos e multa) o
advogado ou procurador judicial que
defende na mesma causa, simultânea ou sucessivamente, partes contrárias.”
Risco,
pois, para os Procuradores.
7-
Corroborando esta impossibilidade de atuação dos Procuradores Municipais na
defesa de seus representante, por atos seus, ainda que respeitantes ao cargo,
disserta Alexandre de Moraes:
“Ressalte-se
a impossibilidade de a União,
Estados, Distrito Federal e Municípios
defenderem, por meio de suas procuradorias, o servidor público acusado de ato
de improbidade, pois não haveria nenhum sentido na própria Administração arcar
com os gastos advocatícios do servidor-réu. Além disso, a Pessoa Jurídica de
Direito Público prejudicada integrará, querendo, a lide, em defesa do interesse
público.” [1]
8-
Afinando do mesmo diapasão, só que se posicionando de maneira bem mais
contundente, porém, sem menos razão, manifesta-se o Promotor de Justiça gaúcho
Fábio Medina Osório, cujas linhas, por sua precisão e pertinência ao tema
presente, merercem transcrição literal:
“Advogado
do Município que defende agentes públicos acusados de crime contra o próprio
Município. Colidência de interesses:
Não se pode deixar de referir que as
hipóteses mais comuns, nesse terreno, resultam da atuação de Procuradores
Municipais em processos criminais movidos pelo Ministério Público contra
Prefeitos Municpais, ou da contratação de advogados para essa finalidade, sob o
pretexto de que estariam os agentes políticos sofrendo processos por fatos
ligados ao exercício de suas funções e, por isso mesmo, não poderiam gastar
dinheiro do próprio bolso com despesas advocatícias, ou, mais ainda, op
Município teria interesse, em tese, na comprovação da inocência de seu
representante máxio. Também se diz que seria difícil separar as figuras do Ente
Público e do seu representante legal.
Deve-se
discordar frontalmente daqueles que sustentam a possibilidade de o Município
ceder sua própria Procuradoria para defender o Prefeito, ou qualquer outro
agente público, por crime, em tese, praticado contra os interesses do próprio
Ente Público.
Em primeiro lugar, descabe semelhante utilização da Procuradoria do Município, porque
a responsabilidade penal ou extrapenal
do agente público que comente, em tese, crime contra o Município, é pessoal,
sendo que o imputado responde processo como pessoa física que atingiu os
interesses do Ente público, não havendo exceção, a esse respeito, relativamente
aos agentes políticos.
Em segundo, A Procuradoria Municipal, a
Procuradoria do Estado e a Advocacia da União defendem os interesses dos
respectivos Entes Públics, ,não se confundindo os interesses da pessoa
jurídica com os interesses de seus representantes legais, enquanto pessoas
físicas. Mais ainda o sistema constitucional, uma vez calcado na distinção entre pessoas jurídicas de
Direito Público e pessoas físicas representantes das primeiras, veda,
logicamente, que os interesses pessoais dessas últimas se sobreponham aos
interesses dos Entes Públicos.
Nos processos criminais e nas ações cíveis em que se questionam atos dos
administradores públicos, dos agentes políticos, o que se busca, pela Lei
8429/92, é uma responsabilização pessoal,
figurando o Enjte Público, inclusive, como litisconsorte ativo da demanda,
mostrando-se inviável aceitar a idéia de
que o próprio Ente Público pudesses arcar com os custos da defesa pessoal
daqueles que são acusados de crimes contra seus interesses! Outra hipótese,
que também vem ganhando terreno na praxis
administrativa, diz respeito à possibilidade de o Prefeito, por exemplo, alegar
celebração de suposto contrato privado com o advogado do Município,
sustentando, então, que seria possível ao causídico exercer sua defesa em
processos criminais em que é acusado de crimes contra a Administração Pública
Municipal, visto que o Ente Público não estaria pagando ao profissional da
advocacia.
Importante registrar, aqui, em primeiro
lugar, a notória prova diabólica que, por via de regra, pode ocorrer com a
celebração de um contrato privado semelhante: quem poderia garantir que,
efetivamente, a atuação do causídico decorre de contrato privado?
Ora, se o profissional da advocacia já
está vinculado a priori, aos interesses do Município, resulta risível que um
contrato privado, no papel, pudesse gerar presunção de que, efetivamente, a
atuação do causídico estivesses sendo movimentada por dinheiro particular do
administador público, pois o instrumento negocial pode, plausivelmente, estar
manipulado como uma farsa a iludir incautos!
Outra hipótese, um pouco diversa, ocorre
quando o Município contrata
diretamente o advogado para defesa pessoal do Prefeito em processos cíveis ou
criminais.
Nesse caso, ouso afirmar que não há suporte jurídico para celebração do
contrato, ante a ausência de interesse público, na medida em que as causas
pessoais dos administradores públicos não podem receber sustento dos
contribuintes.
Mas é especialmente vedada qualquer
hipótese de contratação de profissional, com dinheiro público, para defesa de
agentes políticos em processos nos quais as vítimas são os próprios Entes
Públicos, ante a notória colidência de interesses do Ente lesado e do
administrador acusado! Impende ressaltar, de qualquer sorte, é absoluta a
impossibilidade de o agente político servir-se de advogado pago pelo Município,
por exemplo, para sua defesa em processos criminais en que seus próprios
interesses se apresentam antagônicos aos interesses do Município!
O que não se pode olvidar, no caso, é que
o próprio advogado, uma vez tendo celebrado contrato com o Município, está visceralmente proibido de trair os deveres
de honestidade e lealdade com o Ente Público, praticando ato de improbidade
administrativa quando aceita celebrar contrato posterior com pessoa acusada de
crimes contra o erário municipal.
Outro argumento comumente utilizado por
aqueles que defendem a tese que possibilita essa atuação promíscua de advogados
em favor do Município e, simultaneamente, de pessoas acusadas de crimes contra
o Município, diz respeito à suposta paz administrativa trazida pela atuação do
causídicos em favor da pessoa física do administrador público!
Saliente-se que não seria uma eventual
tranqüilidade subjetiva do administrador que justificaria o procedimento
ilícito, ilegal e inconstitucional de atender a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo,
porquanto a verdade incontestável é que o advogado contratado pelo Município
nçao pode atuar em favor de pessoas acusadas de crimes contra esse mesmo
Município!
O certo é que, na hipótese de se admitir
o procedimento ora em exame, não se
teria controle a respeito dos gastos públicos com advogados para defesa pessoal
dos agentes políticos acusados de ilícitos contra a Administração Pública, pois
os contratos privados estariam regidos pela liberdade das partes.
Neste contexto, singela é a tese de que o
Prefeito Municipal, no exercício de seu mandato, está sujeito a uma legislação
difícil e, por isso mesmo, também está sujeito e exposto aos riscos de
processos judiciais, justificando-se, eventualmente, que o Município arque com
os gastos advocatícios na defesa do Prefeito em processos criminais por fatos
ligados ao exercício funcional!
Tal tese, além de desprovida de fundamentação jurídica, beira o absurdo, mormente porque, ao que tudo indica, os Prefeitos também
não teriam limites na fização do quantum
dos honorários advocatícios dos profissionais contratados com o precioso e escasso dinheiro público!
Que belo prato para a mídia e para os
detratores do Estado e dos agentes públicos esta utilização desmedida e abusiva
do erário municipal em favor de interesses privados dos administradores
públicos!
Cumpre registrar, em derradeiro, que a
eventual existência de custos pessoais ao administrador público, em decorrência
de suas funções, é ônus, data maxima
venia, do cargo ocupado,
salientando-se que sempre seria possível evitar os problemas através de
consultoria e procedimentos prévios adotáveis pela própria Procuradoria do
Município!
Inadmissível que se adote raciocínio no
sentido de que os processos criminais instaurados contra Prefeitos, por fatos
ligados ao exercício funcional, pudessem estar nas despesas públicas, pois o
Município ostenta interesse, em tese, na condenação dos agentes públicos e na
busca de ressarcimento ao erário, sendo litisconsorte ativo na demanda fundada
em improbidade administrativa (art. 17, §3º da Lei 8429/92) (...).
Finalmente,
a própria sociedade, com o escasso dinheiro público, que estaria financiando a
defesa processual privada de administratdores públicos acusados de ilícitos
contra o Município, o que significa locupletamento ilegal, imoral e
inconstitucional do agente público às expensas da Entidade Pública!
O mais grave, talvez, é que a própria
administração da justiça resultaria manchada com a atuação tão promíscua de
advogados, os quais, não obstante a essecialidade à prestação jurisdicional,
estariam prejudicando os interesses das vítimas (Entes Públicos) em favor dos
acusados (Autoridades Públicas que figuram no pólo passivo das demandas
criminais ou cíveis), prejudicando, desse modo, a imagem e as funções do Poder
Judiciário.” [2]
[grifou-se]
9
A questão, portanto, de os Procuradores Municipais atuarem na defesa das
pessoas que representam esta unidade federativa toca, com precisão, ao campo
dos princípios.
10-
E, mais precisamente, concerne ao Princípio Constitucional da Moralidade
Administrativa, instituto este que bem se explica nas palavras de Weida
Zancaner:
“A
moralidade administrativa para Welter, e para seu mestre Hauriou, nada mais é
do que a obediência às regras de boa administração, entendida esta locução não
em seu sentido comum, mas enquanto interpretação finalística do sistema
jurídico, tendo em vista a missão à qual a administração pública está afeta, e
associada às idéias de função e de interesse público. É de bom alvitre, neste
passo, estabelecer distinção conceitual entre moralidade administrativa e
probidade administrativa. Os dois termos são usados pela Constituição Federal.
O art. 37 dispõe que a Administração Pública de qualquer dos Poderes deverá
obedecer, entre outros, o princípio da moralidade. Também este princípio se
acha albergado no art. 5° LXXIII, da Constituição Federal quando trata do
cabimento de Ação Popular para anulação de ato lesivo ao patrimônio público por
infringência à moralidade administrativa. O art.14, § 9°, dispõe que lei
complementar, com o fito de proteger a moralidade e a probidade administrativa,
estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação. Por
sua vez o art. 85, V, estabelece que são crimes de responsabilidade os atos do
Presidente que atentem contra a Constituição, especialmente, entre outros, os
que afrontem a probidade administrativa. O art. 37, § 4°, determina que os atos
de improbidade administrativa dos servidores públicos acarretarão a suspensão
dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens
e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo
das sanções legais cabíveis.
Acertada a lição de José Afonso da Silva
quando diz que a improbidade administrativa é uma forma de "imoralidade administrativa qualificada". Consiste no
dever do "funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo
no exercício de suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas
decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira
fornecer."Assim, a moralidade administrativa pode ser considerada gênero
da qual a probidade é espécie e, como conseqüência, assiste razão a Marcelo
Figueiredo quando diz que "dado agente
pode violar a moralidade administrativa e nem por isso violará necessariamente
a probidade, se na análise de sua conduta não houver a previsão legal tida por
ato de improbidade". Serve de exemplo o hábito instituído por nossos
governantes de levar parentes em viagens ao exterior, no exercício da função de
Chefe de Estado, o que sem sombra de dúvida consiste em mordomia indevida.
Sabe-se que o conceito de moralidade,
símile ao que ocorre com o da razoabilidade, constitui conceito de experiência
ou de valor. Esses conceitos, quando utilizados pelo direito, são denominados,
pela Ciência Jurídica, conceitos jurídicos indeterminados. A indeterminação
deste tipo de conceito não impede sua compreensão nem impede sua aplicação.
Aliás, os conceitos jurídicos indeterminados ao invés de batalhar, promovem a
comunicação jurídica. O conceito de moralidade deve ser sacado do próprio
conceito de moralidade vigente em uma determinada sociedade em uma determinada
época. Entretanto, é bom que se esclareça que este conceito não deve ter por
parâmetro a conduta social das pessoas, mas
o que elas entendem como moralmente correto, o que dizem ser correto como valor
que exprime o consenso social e os valores albergados pelo sistema jurídico
positivo. A compreensão que temos acerca do tema, nos induz a concluir que a
moralidade é recepcionada pelo sistema jurídico positivo como um todo e não uma
pontualização de tópicos onde deva ser tida como vigente. A moralidade ao ser
absorvida pelo direito posto, se espraia por todo o sistema normativo, não se
alocando, necessariamente, na norma "A" ou "B". Entretanto,
muito embora permeie o sistema, é autônoma no sentido de que não pode ser
objetivada puntualmente em cada uma das normas jurídicas, e, portanto, diluída
simplesmente no mero enunciado do princípio da legalidade. O princípio da
moralidade têm sua essência captada com precisão por Marçal Justen Filho quando
se refere a este como um "princípio
jurídico "em branco", o que significa que seu conteúdo não se exaure
em comando concretos e definidos, explícita ou implicitamente previstos no
Direito legislado. O princípio da moralidade pública contempla a determinação
jurídica da observância de preceitos éticos produzidos pela sociedade,
variáveis segundo as circunstâncias de cada caso". Em síntese, podemos
dizer que o administrador afrontará o princípio da moralidade todas as vezes
que agir visando interesses pessoais, com o fito de tirar proveito para si ou
amigos, ou quando editar atos maliciosos ou desleais, ou ainda, atos caprichosos,
atos exarados com o intuito de perseguir inimigos ou desafetos políticos,
quando afrontar a probidade administrativa, quando agir com má-fé ou de maneira
desleal.
Mister ainda frisar, que os atos
afrontosos ao princípio da moralidade são atos portadores de vício de desvio de
poder, pois o agente usa sua competência para atingir finalidade alheia à
própria do ato praticado e ( no mais das vezes) imbuído de um móvel considerado
reprovável do ponto de vista moral. O princípio da moralidade encartada em
inúmeros artigos da Constituição Federal, consiste, em ultima ratio, regra de civilidade essencial à sobrevivência das
instituições democráticas.
Esta posição, isto é, a compreensão do
princípio da moralidade com um “plus”
ao princípio da legalidade, inclusive enquanto autônomo em relação a
este,
é a aceitação de valores éticos e morais pelo sistema jurídico, valores que se
espraiam por todo sistema porque ajudaram a compor o perfil constitucional do
Estado adotado por uma determinada sociedade em uma determinada época. [3]
11-
E, a despeito de a positivação constitucional do princípio da moralidade
administrativa só ter ocorrido com a Emenda Constitucional 19/98,o art. 5º,
LXXIII (norma constitucional originária) já o antevia no Texto Magno, justamente
nas hipóteses de possibilitação de Ação Popular.
12-
Mas, nem por isso, é de se afastar a autonomia do referido princípio. Como
prega Juarez Freitas, o legislador constituinte “pretendeu conferir autonomia jurídica ao princípio da
moralidade, o qual veda condutas eticamente inaceitáveis e transgressoras do
senso moral da sociedade, a ponto de não comportarem condescendência (...).
Como princípio autônomo e de valia tendente ao crescimento, colabora, ao mesmo
tempo, para o reforço dos demais e para a separação da dicotomia rígida entre
Direito e Ética, rigidez tão enganosa quanto aquela que pretende separar o
Direito da Sociedade (...).” [4]
13-
Necessário se fez falar no princípio da moralidade, porque, conforme o mesmo
Juarez Freitas, este “tem na probidade administrativa um subprincípio
diretamente descendente e da maior significação jurídica e política, figurando
como uma das hipóteses de crime de responsabilidade do Presidente da República
(CF, art. 85, V).” [5]
E, conforme art. 11 da Lei 8429/92, constituem atos de impriobidade
administrativa a afronta aos princípios constitucionais do art. 37, caput da Carta de 1988.
14-
Outro princípio que norteia e reforça a posição aqui sustentada, de que os
Procuradores Municipais devem defender única e exclusivamente o Município, é o Princípio da Confiança ou
da boa-fé nas relações administrativas. Este princípio traduz um dever-poder de
qualquer administrador público zelar pela estabilidade decorrernte de uma
relação matizada de mútua confiança, no plano institucional. Como aduz,
novamente, Juarez Freitas, citando Norbert Achterberg, “o cidadão deverá ser
protegido na sua confiança na legalidade da ação administrativa.” [6]
15-
Princípios e regras: ambos, para a moderna teoria do Direito Constitucional
(Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau, Robert Alexy, Daniel Sarmento, Claus
Wilhelm Canaris, Ronald Dworkin), são normas. E, como a lei, enquanto
norma-regra, não consegue abarcar todos os comportamentos humanos, mister
observarmos, para fins de comportamento social adequado, as normas-princípios.
Já dizia Platão que “a lei jamais conseguirá estabelecer o melhor e o mais
justo para todas as pessoas. A diversidade entre os homens e suas ações, a
instabilidade permanente dos assuntos humanos, não permitem que se formule a
norma absoluta para todos os casos e tempos.” [7]
16-
Só que a afronta a uma norma princípio é muito mais grave que a afronta a uma
norma-regra. É o que se pode tirar da lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Princípio
– já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua
exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das
diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico
positivo.
Violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não
apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra
todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível
a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as
vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.”
[8]
[grifou-se]
17-
Especificamente tratando da situação em apreço, as lições de Rodolfo Camargo
Mancuso caem como luva:
“É
de se lembrar que a citação do ente político (pessoa jurídica de direito
público interno, de índole constitucional e permanente), não se confunde com a citação da autoridade que episodicamente, esteja
à sua testa, no exercício de mandato popular, temporário; daí, porque, em
havendo Procurador que represente institucionalmente o ente político, exercendo
cargo de provimento efetivo, deverá este assumir a capacidade postulatória em
nome do ente político, enquanto a Autoridade deverá constituir advogado
próprio, às suas expensas.” [9]
[grifou-se]
18-
E é neste sentido que me manifesto, substanciado nas razões acima, parecendo-me
ser de todo incompatível que os Procuradores Municipais assumam a defesa do
Prefeito e do Vice-Prefeito em Ação Popular.
[1]MELLO, Celso
Antônio Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. 15ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 817 e 818.
[1]CAMARGO MANCUSO, Rodolfo de. Ação Popular.Proteção ao erário público; do
patrimônio cultural e natural; e do meio ambiente. São Paulo: RT, 1994, p.
115.
[1]MORAES, Alexandre
de. Direito Constitucional Administrativo.
São Paulo: Atlas, 2002, pp. 346 e 347.
[2]OSÓRIO, Fábio
Medina. Observações sobre a improbidade
dos agentes públicos à luz da Lei 8429/92. RT 740/96.
[3] ZANCANER, Weida.
Razoabilidade e moralidade: princípios concretizadores do perfil constitucional
do estado social e democrático de direito. Revista
Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, ano I,
nº. 9, dezembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em:
10 de Outubro de 2003.
[4]FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os
princípios fundamentais. 2ª ed.. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 67 e 68.
[6]Idem, p. 72, nota
de rodapé 78.
[7]Platão. Política.
Trecho inserido no livro 180 Ensinamentos
filosóficos. Organizador: Fernando Nuno. São Paulo: Publifolha: 2003, p.
140.
[8]MELLO, Celso
Antônio Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. 15ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 817 e 818.
[9]CAMARGO MANCUSO,
Rodolfo de. Ação Popular.Proteção ao
erário público; do patrimônio cultural e natural; e do meio ambiente. São
Paulo: RT, 1994, p. 115.
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