Falhas que falam
As irregularidades cometidas nesta fase inicial da execução
penal dos condenados no processo do mensalão suprimem as aparências de um rito
“estritamente técnico” que acusadores e juízes se esforçaram para manter na
condução da Ação Penal 470. Agora, transpareceu o desejo de humilhar,
espezinhar e incitar ao assédio midiático, que não pode ser atributo da
Justiça. De sexta-feira até ontem, ocorreram anomalias diversas, como a
injustificada transferência para Brasília de presos que se entregaram na
expectativa do direito de cumprir pena nas proximidades do domicílio e a
imposição do regime fechado aos que tinham direito ao semiaberto. Houve o
deslocamento para o presídio da Papuda sem a devida guia de encaminhamento dos
presos, com indicações clara, do juiz executor, das condições de cumprimento de
pena, afora a desconsideração para com o estado de saúde de José Genoino. Só
ontem, foi anunciado o ajuste nos regimes de prisão. Ainda é insondável a
percepção da opinião pública, mas, os que compreendem a gravidade de tais fatos
numa democracia e o significado de um Estado judicial, devem ter se preocupado.
Durante oito anos, a trama do mensalão envenenou e dividiu o
Brasil. Ódios e intolerâncias contaminaram espaços interativos da internet,
alianças e até amizades se perderam. De um lado, os indignados, por rancor
político ou sincero ardor republicano, clamando por castigo exemplar e cadeia
para os protagonistas do “maior escândalo de corrupção da história”. Em outra
faixa, minoritária — mas não circunscrita ao PT e à esquerda —, os que veem no
processo um acerto de contas, uma revanche ideológica, propiciada pela
narrativa de Roberto Jefferson, que foi confirmada quanto ao fluxo irregular de
recursos do PT para os partidos aliados, mas não quanto à origem e à finalidade
do dinheiro. A sofisticação dos libelos acusatórios e a condução calculada do
julgamento prevaleceram sobre o contraditório, que por sinal, o PT sempre
negligenciou, mesmo nas defesas formais. Os presos são muitos, mas, no teatro
do confronto, o que hoje conta é o fato de Dirceu, Genoino e Delúbio estarem
dormindo na cadeia, como encarnações do PT demonizado. Apesar da excitação, a
vida seguirá como sempre. Até prova em contrário, a política seguirá movida por
acordos pragmáticos e financiada por dinheiro oculto, tratando todos de evitar
lambanças que exijam providências, ainda que não tão drásticas como as adotadas
em relação ao PT e seus aliados. Até prova em contrário, que seria a prisão dos
poderosos de fato — condenados por tenebrosas transações, mas livres e soltos
por aí gastando seus milhões —, o Judiciário seguirá complacente com a elite
real. O pecado do PT foi substituir a elite política secular, adotando suas
práticas.
Hoje, com a luz batendo forte sobre os crimes da ditadura,
muitos se perguntam como foi possível tanta indiferença, à parte os que os
aprovavam. Mais tarde, quando o mensalão também for exumado pela história,
perguntas que ficaram sem respostas ressurgirão, e alguns se perguntarão como
foi possível ignorá-las.
Em sua carta anunciando a deserção, Henrique Pizzolato fala
das provas, sempre ignoradas, de que os serviços contratados pela Visanet à
agência DNA foram todos executados. Logo, ele não teria desviado de dinheiro
público para o valerioduto, o que lhe valeu a condenação por peculato. Logo, os
empréstimos seriam reais e isso desmontaria o pilar central da narrativa da
acusação. Os autos contêm notas das grandes emissoras de tevê que exibiram a
campanha do Ourocard, fotos de outdoors e campanha em mobiliário urbano (painéis
em shoppings e pontos das cidades, não compra de móveis, como disse um ministro
do STF no julgamento). Até um congresso de magistrados foi patrocinado pelo
Visa Ourocard. Por que tais elementos jamais foram considerados? Eis uma
pergunta. Uma outra, sem resposta, apareceu durante o julgamento, numa questão
de ordem que Joaquim Barbosa indeferiu liminarmente, sem saciar a curiosidade
do ministro Marco Aurélio. Dizia respeito à existência do inquérito sigiloso
2.454, que contem várias contraprovas dos réus. Por que corre ainda em sigilo,
destacado da Ação Penal 470?
Outra pergunta que o julgamento calou sem responder: quais
foram os deputados comprados e quais votações foram viciadas? As reformas da
Previdência e Tributária foram aprovadas com quase 400 votos cada uma, muitos
da oposição, dispensando a compra de voto. Os recursos, sustenta o PT, foram
transferidos a presidentes e dirigentes partidários para honrar compromissos
eleitorais. Não, disse a acusação, para serem redistribuídos. Mais tarde, o STF
disse que não importava o destino dado às “vantagens indevidas”. Parece
importante, pois isso muda a natureza do delito. Mas, se os sete deputados não
petistas redistribuíram os recursos recebidos, era fundamental saber quais
deputados receberam, foram comprados. Por que não foram investigados, com
quebra de sigilo e tudo, todos os que votaram a favor do governo no período?
Daí, sim, viriam provas cabais.
Por fim, a teoria do domínio do fato, importada de encomenda
para condenar José Dirceu, contra quem faltaram provas, seja de corrupção ativa
ou formação de quadrilha. Ele não poderia ignorar, pelo cargo que ocupava,
concluíram os ministros. A pergunta é: daqui para a frente será adotado contra
todos os ocupantes de elevada posição hierárquica? Não havendo impunidade,
haveria uma razia.
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