6/01/2013
PAULO MOREIRA LEITE
Os ataques a
José Genoíno chegaram a um ponto escandaloso e inaceitável.
Vários
observadores se colocam no direito de fazer uma distinção curiosa. Dizem que a
decisão de Genoíno em assumir o mandato para o qual foi eleito por 92 000 votos
pode ser legal mas é imoral.
Me
desculpem. Mas é uma postura de
ditadorzinho, que leva a situações perigosas e inspira atos violentos. Também
permite decisões arbitrárias e seletivas. Pelo argumento moral, procura-se
questionar direitos que a lei oferece a toda pessoa. Isso é imoral.
Não
surpreende que essa visão tenha produzido
grandes tragédias, na história e na vida cotidiana.
Isso porque
os valores morais podem variar de uma pessoa para outra mas a lei precisa valer
para todos.
Você pode
achar que aquele livro sobre não sei quantos tons de cinza é uma obra imoral
mas não pode querer que seja proibido por causa disso. Por que? Porque a Lei
garante a liberdade de expressão como um valor absoluto.
Para ficar
num exemplo que todos lembram. Os estudantes de uma faculdade paulista que
agrediram e humilharam uma aluna que foi às
aulas de mini saia muito mini também se achavam no direito de condenar o
que era legal mas lhes parecia imoral.
Vergonhoso. Isso sempre acontece quando se pretende dizer que o moral
precisa ser o legal.
Para
começar, quem acha muita imoralidade da parte de Genoíno deveria olhar para o
lado em vez de exagerar na indignação.
Em seis
Estados brasileiros o Superior Tribunal de Justiça, a segunda mais alta corte
do país, tenta licença para processar governadores e não consegue avançar na
investigação. Não consegue nem apurar as acusações que o STJ considera sérias.
Por que?
Porque as Assembleias Legislativas não autorizam. Curiosidade: não há ”petistas aparelhados” envolvidos. Entre os 6 governadores, cinco
são tucanos e um é do PMDB. Quantos são imorais nesse time? E os ilegais? Vai saber.
O que está
em jogo, nos Estados? O princípio do artigo 55 da Constituição, aquele que
reserva ao Congresso o direito de decidir pela cassação (ou não) de deputados e
senadores. São os representantes eleitos que podem cassar os representantes do
povo – e apenas eles.
Mas é
curioso que ninguém fala em imoralidade neste caso.
Pergunto:
cadê o abaixo assinado, uma denúncia contra “esse políticos” ? Cadê as
marchadeiras de botox e cabelo tingido? Onde ficaram nossos moralistas de punho
cerrado? Onde estão os cronistas do constrangimento, os marqueteiros da
“imagem” dos políticos?
Será que
voltamos (ou nunca saímos?) à lógica dos dois mensalões, o do PT e o do
PSDB-MG?
A
Constituição reconhece os três poderes e não reconhece, de forma alguma,
qualquer hierarquia entre eles.
E aí cabe a
pergunta: se as Assembleias Legislativas podem impedir a abertura de uma
investigação sobre governadores, por que o Congresso não tem o direito de
decidir, como manda a Constituição, o destino de quatro deputados? Há uma diferença de princípio, uma visão de
mundo?
Ou é a velha
paróquia política do país ?
No caso dos
governadores e deputados, a preferência é tão descarada que nem se abre uma
investigação. Não vamos julgar e depois absolver. Não. Nem se começa o jogo.
Não custa recordar de novo. A Lei diz que o mandato de um deputado só pode ser
cassado por decisão do Congresso. Não é interpretação. Não é princípio
genérico.
É texto da
lei. É tão claro como dizer que o Brasil
não pode fabricar bomba atômica. Ou que o racismo é crime e é inafiançável. Ou
que a licença-maternidade deve durar quatro meses.
O jurista
Pedro Serrano, especialista em Direito Constitucional, disse aqui mesmo neste
blogue que essa prerrogativa é um dos elementos básicos da separação entre os
poderes, definição que separa a República da Monarquia.
Embora
diversos ministros do Supremo tenham feito elogios demorados à Constituição do
Império – entre outros traços típicos, ela tratava os escravos como coisas –
desde 1899 o país vive sob um regime republicano. O retorno à monarquia foi
derrotado em plebiscito, junto com o parlamentarismo, lembra?
Teve gente
que levou os descendentes de Pedro II e da Princesa Isabel para percorrer o
país, na esperança de que algum fantasma do passado contribuísse para melhorar
o marketing eleitoral da monarquia.
Mas o
Supremo considerou por 5 votos a 4 que tem o direito de cassar os mandatos dos
deputados condenados pelo mensalão. Muitos juristas – os mesmos que os donos da
moral de hoje costumam ouvir quando lhes interessa — consideram que foi uma decisão que
atravessou essa divisão entre poderes.
Num plenário
que em situações normais inclui onze votos, cinco ministros acharam-se no
direito de questionar um artigo explícito da Lei Maior. Quatro ficaram contra
essa decisão.
Em qualquer
caso, não custa lembrar que, como está estabelecido, a Constituição só pode ser
modificada por uma emenda
constitucional, com o voto de dois terços – e não maioria simples – dos
parlamentares, que são os representantes eleitos do povo. Não é debate moral. É
determinação legal.
Por que ela
diz isso? Porque esse artigo 55 é coerente com o artigo 1, aquele que diz que
“todo poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes
eleitos.”
Uma decisão
do Supremo deve ser cumprida e tem força de lei, diz o Ministro da Justiça.
Mas o que se
faz quando, por 5 votos a 4, se estabelece uma diferença clamorosa, uma
contradição com a própria Constituição?
Não é
possível ser simplório nem empregar argumentos de autoridade. A menos, claro,
que se pretenda criar um novo tipo de autoritarismo. Durante o Estado Novo, o
Supremo autorizou que a militante comunista Olga Benário fosse enviada para a
morte num campo de concentração nazista.
Seria imoral
e ilegal tentar impedir a entrega de Olga Benário por todos os meios e recursos
que poderiam preservar sua vida, sua dignidade e mesmo a filha que levava em
seu ventre, vamos combinar.
Em 1964, o
Supremo aceitou a tese de que a presidência da República ficara vaga depois que
Jango deixou o país e deu posse à ditadura militar. Legal? Moral? Ou ilegal e
imoral?
Em 2010, o
Supremo decidiu por 7 votos a 2, que só o Congresso poderia modificar a
Lei de Anistia. Com isso, as investigações sobre torturas e execuções
perderam uma base legal importante.
Pergunto:
vamos proibir os jovens que denunciam torturadores nas operações esculacho, e
não se rendem a uma decisão que – sem entrar no debate se correta ou não –
envolve uma opção pela impunidade?
Vamos chamar
a PM para dar porrada? (Quando ela não estiver perseguindo estudantes que
portam maconha, o que lei diz que é legal em certa quantidade mas que muita
gente considera imoral e por isso aprova todo tipo de repressão, até sem base
legal).
Mais ainda.
Vamos silenciar procuradores que, teimosamente, ainda procuram brechas para
colocar os responsáveis por crimes contra a humanidade na cadeia, lembrando que
a Constituição diz que a tortura não é passível de anistia ou graça?
Os 7 a 2 do
Supremo deveriam garantir que esses
garotos exemplares fossem silenciados para sempre?
Queremos a
Submissão à autoridade, título de um livro antológico sobre técnicas de
tortura?
Colocar a
questão moral à frente da legal só ajuda a despolitizar um debate, a encobrir
questões sérias e a impedir uma avaliação consciente do que está em jogo. No
saldo, quem perde é a democracia.
Quando
Genoíno se diz com a “consciência limpa dos inocentes” deveríamos dedicar
alguns minutos de reflexão ao assunto.
Você pode,
com base naquilo que viu e ouviu nas 53 sessões do julgamento, achar que ele é
mesmo culpado e deveria renunciar ao mandato que recebeu.
Mas você
poderia pensar o contrário.
A grande
acusação é que ele assinou “empréstimos fraudulentos” que alimentaram o
esquema, certo? Podemos ouvir isso todo dia, nos comentários de sabichões que
frequentam o rádio e a TV.
Mas: veja só. A própria Polícia Federal, que
investigou o caso e as contas do mensalão, concluiu que os empréstimos não eram
uma fraude. Em seu relatório, a PF diz que os empréstimos foram verdadeiros,
implicaram na remessa de dinheiro do Banco Real para o PT. A Justiça, mais tarde, supervisionou um
acordo para o pagamento do empréstimo. Era ilegal? Era imoral? Ou o que?
Em todo
caso, se era ilegal, pergunta-se: o que aconteceu com a turma do Banco Central
que deveria fiscalizar essas coisas?
O que houve
com quem referendou o acordo? Alguém foi
punido por ser ilegal? Ou não se julgou moralmente conveniente?
Muitos
ministros condenaram Genoíno porque “não era plausível” que ele “não soubesse”
do que eles dizem sobre o que seria o
“maior escândalo da história.” Uniram o papel político óbvio de Genoíno
no governo Lula com um esquema financeiro, sem conseguir provar seu
envolvimento direto na “compra de votos” no Congresso. Não conseguiram apontar,
sequer, qual projeto foi aprovado em troca de dinheiro.
Enquanto não
se provar que Genoíno cometeu uma ilegalidade, estamos, mais uma vez, numa visão moral de uma pessoa,
num julgamento que envolve a atribuição de atitudes e valores, mas não consegue
reunir provas robustas – indispensáveis no direito penal — para sustentar o que
diz.
O que é
imoral, neste caso?
Embora o
Supremo tenha condenado Genoíno, a lei
dá ao deputado o direito de aguardar pelo exame de todos os recursos
antes de considerar que o caso está encerrado. Junto com a liberdade, é a história de uma vida que está
em jogo.
Ao contrário
do que se poderia julgar do ponto de vista moral, ele tem o dever de resistir.
A lei não lhe dá essa possibilidade por acaso. O necessário, para o
esclarecimento de qualquer dúvida, de qualquer ponto de vista, é que que ele
entre com seus recursos, que eles sejam ouvidos, examinados e conhecidos por
todos. E a melhor forma de fazer isso é preservando seu mandato.
Vou adorar
ouvir seus argumentos, na tribuna da Câmara. E vou adorar ouvir os argumentos
contrários.
Será uma
grande novidade. Em sete anos de investigações, o mensalão transformou-se no
discurso de um lado só, uma única voz, uma única verdade. Cada advogado de
defesa teve direito a um discurso de duas horas num julgamento que durou cinco
meses. Isso impediu que dúvidas importantes, sobre Genoíno e sobre o mensalão,
fossem discutidas e resolvidas. Nenhuma auditoria provou que os recursos usados
pelo esquema do PT foram extraídos do Banco do Brasil. Não há sinal de desvio
na Visanet, empresa que fazia os pagamentos para as agências de Marcos Valério.
Ou seja: verdades que pareciam evidentes em 2005 teriam de ser examinadas,
revistas e explicadas em 2012. Ou corrigidas, ou retiradas.
É por isso
que o Congresso tem razão em debater suas prerrogativas e nossos moralistas de
plantão erram quando tratam Marco Maia e seu provavel sucessor, Henrique
Alves,como criadores de caso, encrenqueiros que jogam para a platéia. Se o artigo 55 não foi abolido – o que só os
parlamentares tem o direito de fazer – é mais do que razoável que sua aplicação
seja discutida. Um pouquinho de história, para quem tem a memória selecionada.
A cronologia diz tudo neste caso. Ao longo de 7 anos de mensalão Congresso não
moveu um dedo mínimo para atrapalhar a investigação. Tampouco cometeu qualquer
gesto em direção ao STF que pudesse ser interpretado como ação indevida. Ficou
silencioso em seu canto, respeitoso das atribuições de cada um. E é natural que
queira ser respeitado, agora.
O ministro
que decidiu a votação por 5 a 4 teve um voto oposto, em situação muito
parecida.
Juízes não
são obrigados a votar de modo identico a vida inteira.
Mas a
democracia é um regime coerente.
Por isso a
Constituição diz que o povo exerce o poder através de seus representantes
eleitos. Esta frase não é enfeite, certo? O voto da maioria da população é o
começo e o fim de tudo.
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