Acabo de ler artigo do intelectual e professor da
Universidade de São Paulo Vladimir Safatle sobre os dois anos transcorridos do
governo Dilma, na primorosa edição que a revista Carta Capital dedicou à
avaliação da primeira metade desse governo e à análise de tendências para o
biênio que o completará.
A reflexão chamou atenção não apenas pelo tom
crítico que adota com relação ao tratamento dado a questões emergidas durante o
transcurso dos 2 anos iniciais do governo como também ao prenúncio da
existência de forças centrípetas na sociedade que apontam para a radicalização
de posições políticas.
As ideias do articulista seguem na trilha aberta
pela interpretação do ex-porta-voz da presidência no Governo Lula, André Singer
– que parece ter se tornado canônica entre os que pensam o atual período
histórico do País – de que o fenômeno do “lulismo” seria caracterizado pela
política deliberada de mediação de conflitos sociais pelo aparelho de Estado,
devido à baixa capacidade das instituições políticas para fazê-lo e `as
habilidades inatas de negociador possuídas pelo ex-presidente, num contexto de
crescimento conjuntural da renda média de assalariados, dos lucros auferidos
por empresários e dos ganhos daqueles que vivem de aplicações financeiras,
banqueiros inclusive.
Não surpreende o enfoque dado por Singer ao papel
assumido pelo Estado numa sociedade marcada pela desigualdade como a brasileira
e que sirva de ponto de partida na análise tanto daqueles que acentuam a
natureza transitória do arranjo de poder estabelecido sob o governo Lula,
dependente dos ofícios do mandatário, quanto dos que pregam a radicalização dos
processos políticos de sentido transformador que eclodiram sob aquele governo e
que têm agora, no governo Dilma, um momento de inflexão.
As críticas insinuadas por Safatle situam-se no
campo dos que se impacientam com a nota técnica que Dilma dá a seu governo e
alertam para a modificação do panorama econômico que forneceu as bases para a
solução não conflituosa de impasses distributivos no âmbito do Estado e com a
falta de maestria política pela presidente na arbitragem de disputas políticas.
Algo mais elaborada, a análise do sociólogo ecoa
uma discussão que já vem sendo travada nas redes socais sobre a conveniência de
Dilma continuar a equilibrar-se nos próximos dois anos sobre a estreita
passarela que separa um Estado liberal, indiferente às conquistas recentes da
cidadania, e um Estado indutor do desenvolvimento que teria por finalidade a
eliminação da desigualdade.
O crescimento dos partidos de centro apenas
refletiria, de acordo com a visão esposada pelo intelectual, a ausência de
rumos a seguir que tomou conta do ambiente político e a adversa formação de
massa política crítica para uma virada que poderia fazer transbordar o
tecnicismo percebido no governo Dilma numa virada conservadora comandada pelos
setores financeiro e industrial mais oligopolizado da economia, os quais
possuem seus próprios candidatos.
Estaríamos ainda segundo essa visão a uma quadra da
inevitável radicalização de posições políticas e só a intervenção dos
movimentos sociais poderia fazer a balança pender novamente a favor das forças
comprometidas como as grandes transformações almejadas para o País.
Mas a simples existência da polêmica é prova de que
Dilma está acertando nos passos da dança que lhe darão um segundo mandato,
ainda que dele tenha que abrir mão, em nome da preservação da figura de Lula,
caso tenha prosseguimento a estratégia abraçada pelos seus contendores no
controle da mídia de tentar fazer ruir o edifício moral que abriga o “lulismo”
e o arsenal de vontades políticas que lhe dá vida.
Numa sociedade diversificada e plural como é hoje a
brasileira apontar desde já um caminho inequívoco como fez antes o derrubado
presidente João Goulart, o das reformas de base do começo dos anos 1960, será
sempre laborar no fomento do conflito, que polariza posições, divide
ideologicamente aliados e impede que mudanças estruturais possam desenvolver-se
à partir do casulo de uma sociedade civil cada vez atenta, educada e informada
sobre aquilo que consulta seus mais legítimos interesses.
Não se menospreze o caminho do meio que levou a
China a se erguer dos destroços da guerra fria. O que importa é como diziam
Lula e antes dele setores da igreja católica a opção que se faça pelos mais
pobres, por mais piegas que isso possa soar ao discurso de esquerda. Talvez a
luta de classe não tenha acabado, mas para brandi-la como instrumento de
política é preciso estar preparado para optar pela guerra, ainda que a guerra
feita por outros meios como é a política.
Os que estão insatisfeitos com o que consideram
amaciamento de Dilma parecem olvidar o reconhecimento que lhe empresta o povo
mercê dos embates que travou e venceu no campo da política e da economia. Promoveu um “plano real II” com a redução
histórica dos juros e exerceu com rigor o poder de Estado para fazer valor o
interesse popular no caso da arbitragem das tarifas de energia.
Nos dois
casos ousou fazer o que não foi possível a Lula, enfrentar os banqueiros. Isso
porque os juros sempre foram o lucro tabelado dos rentistas e a energia, desde
as privatizações do setor elétrico, negócio de grandes bancos. Poucos sabem que
o maior acionista da paulista CESP, que não fechou acordo com o governo Federal
para reduzir o preço da energia fornecida à indústria, não é o governo de São
Paulo, mas sim o banco inglês HSBC. O que permite entender as recentes críticas
ao governo Dilma na também inglesa revista “The Economist”.
Que o jogo político vai esquentar na segunda metade
do governo Dilma, ninguém tem dúvida. Agora, os setores sociais que apelarem à
insensatez nesse embate terão que se confrontar com aqueles que enxergam no
governo Dilma um governo de continuidade das mudanças estruturais na economia e
na nossa sociedade. Não é crível que uma ex-guerrilheira não saiba a hora de
apertar o gatilho, acreditem-no os intelectuais.
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