sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Diário de um cucaracha (1973) – Henfil

Diário de um cucaracha (1973) – Henfil


Não foi nenhuma ficção hollywoodiana. E nem mais um desses finais debilódes de novelas da Globo. Havia simplesmente chegado a tão esperada hora do troco. Era a vez do garoto pobre da periferia de Belo Horizonte colocar seu nome ao lado daqueles que nunca se entregaram por nenhum “ouro de tolo”. O menino magro, hemofílico e estudante de escola pública que passava todo seu tempo desenhando enquanto seus amigos se divertiam em festas, estava finalmente acertando suas contas com a história.
Henrique Souza Filho só foi mesmo virar Henfil ao cruzar seu caminho com o jornalista Roberto Drumond, que ainda estava muito longe do sucesso alcançado atualmente pelo livro “Hilda Furacão”. Os dois trabalhavam no mesmo jornal em Minas Gerais, quando Roberto teve a idéia de juntar o primeiro e o último nome do amigo, resultando no Henfil que conhecemos hoje.
Com pouco mais de vinte anos, Henfil havia escrito seu primeiro livro, “Hiroshima Meu Humor”, e teve a idéia de ir ao Rio de Janeiro, tentar falar com seu ídolo Millôr Fernandes para que ele escrevesse o prefácio. Para essa viagem, ele pediu dinheiro até na porta da igreja São José em BH, sem falar na colaboração que teve dos amigos, que estavam muito orgulhosos com o contato que Henfil estava prestes a fazer com o “grande” Millôr. Nessa época, eles até lançaram a campanha “Ajude Henfil a ir pegar o prefácio do Millôr”.
Assim que chegou ao Rio, Henfil foi à casa de Ziraldo, que garantiu ao jovem cartunista: “deixe que eu vou lá”. E foi mesmo, só que ele não esperava a esculhambação que acabou recebendo de Millôr. Sem dinheiro e com vergonha de voltar para Minas sem o prefácio, Henfil acabou dormindo na praia e teve uma insolação. Salvo por um guarda-vidas, ele foi levado para o hospital Souza Aguiar. Depois de dormir em vários bancos de praça, Henfil copiou um prefácio que Millôr havia escrito em um outro livro e voltou para BH. “Hiroshima Meu Humor” só foi ser lançado muito tempo depois, quando todo mundo já tinha se esquecido do tal prefácio.
Passados alguns anos, Henfil leu uma entrevista de Ziraldo. E depois de sentir uma decepção inicial com o conteúdo da reportagem, ironicamente ela acabou se transformando em um impulso para sua carreira. Quando perguntado sobre quem seriam os novos cartunistas brasileiros Ziraldo respondeu:

_Não vou dizer seus nomes. Sua história, se eles quiserem, que o façam.

Esse foi o estopim que levou Henfil a produzir cada vez mais para alcançar a chamada “história”. O acerto de contas veio em junho de 1973, quando ninguém menos do que Jaguar, Millôr e Ziraldo, fizeram uma entrevista com Henfil pelo lendário Pasquim, não esse jornal puxa-saco do PT que foi reeditado há alguns anos atràs, mas aquele combativo “Pasca” velho de guerra. E como cantava o sambista Cartola, “o mundo é um moinho” e o garoto da periferia de Belo Horizonte estava aos poucos, com aquele jeitinho mineiro de ser, entrando para a história como um dos mais revolucionários e criativos artistas brasileiros.
Depois dessa histórica entrevista, Henfil foi tentar a sorte nos EUA. Sua intenção, além de fugir da censura e da repressão da ditadura militar, era fazer com que sua mensagem chegasse a um maior número possível de pessoas no mundo inteiro. E em se tratando de charges e quadrinhos, só a partir de New York isso era possível. As aventuras desse período em que Henfil passou no coração do capitalismo internacional (e por ele tanto combatido), foram publicadas no livro “Diário de um Cucaracha”.
Através de suas palavras sempre mordazes, mais uma pequena dose de sua já conhecida melancolia humorística, Henfil descreve em detalhes desde o forte racismo imposto pelos norte-americanos aos imigrantes latinos, até a sua peregrinação pelos hospitais dos EUA em busca de tratamento para sua doença. Tudo isso sem saber uma única frase inteira em inglês.
Em relação a discriminação aos latinos, Henfil diz que nos ônibus “os negros têm o maior desprezo por esses brancos encardidos” e se sentam sempre nos fundos. E esse é o mesmo sentimento que o branco tem pelos negros e também (é obvio) pelos latinos. Assim, o único lugar que restava para os cucarachas seria nas rodas, pois os brancos ocupavam os lugares da frente. Os estadunidenses chamam os imigrantes latinos de cucarachas, porque dizem que eles “procriam feito baratas”, daí veio o apelido.
Quando estava trabalhando no Brasil, a forte censura dos militares dificultava a publicação dos trabalhos do cartunista em jornais e revistas, e, os leitores lhe escreviam diversas cartas se mostrando decepcionados. “Gostava de você no inicio do Pasquim. Agora nem leio mais”, lhe escreveu um leitor. Por causa do corte dos censores, suas charges políticas antes muito agressivas, ficavam apenas com o teor humorístico, o que frustrava seus leitores. Esses fatores impulsionaram mais ainda seu embarque para os EUA.
Depois de passar um tempo como desenhista de maçãs, bananas, cadeiras, mesas e, centenas de outros objetos para facilitar o aprendizado dos alunos em uma escola de inglês, Henfil finalmente conseguiu um contrato com a Universal Syndicate. Essa entidade era responsável pela publicação dos quadrinhos mais famosos do mundo, como Garfield e Snoopy, e que jamais tinha contratado um brasileiro. Através desse sindicato, os desenhos de Henfil começaram a ser publicados em diversos jornais americanos e canadenses.
Mas isso durou pouco, pois o cartunista não quis se render ao mundo capitalista e transformar seus cartuns no formato adequado aos leitores de primeiro-mundo. Ele relutou também em colocar seus personagens em camisetas e propagandas publicitárias, e isso fez com que aos poucos, seus contratos fossem sendo cancelados. Antes de cancelar os contratos, seu editor lhe falou indignado: “Porra Henfil! Você é o primeiro cara na vida que eu vejo que não quer ficar rico!”.
E não queria mesmo, “me deu porrada, eu dou mil porradas de volta. Quero lutar por uma coisa chamada babacamente de redenção dos povos. Vivo e respiro a luta de classes. Meu trabalho gira em torno dessa realidade. Tenho um instrumento universal na mãos que é o humor e que é muito eficaz. Nasci no berço da luta de classes. Eu quero ser famoso como um cara que é mais um espinho contra o estado das coisas. Essa fama eu quero para mim”, dizia Henfil.
Herbert de Souza, o sociólogo que ficou conhecido como Betinho, e que era irmão de Henfil, estava preso nessa mesma época na embaixada do Panamá no Chile, país que tinha acabado de sofrer um golpe militar arquitetado pelos agentes da CIA e pelo general Pinochet. O cartunista recebia diversas cartas de seu irmão que dizia estar com trezentas pessoas em duas salas sem nem poder chegar perto da janela que a polícia chilena atirava. Para dormir tinham quatro cadeiras e a cada hora quatro podiam dormir e dar uma cochilada. Ficaram dois meses nessa situação sem tomar banho. Betinho que também era hemofílico estava pesando quarenta quilos.
Betinho relatava diversos casos de pessoas que estavam sendo tiradas à força das embaixadas e sendo executadas no Estádio Nacional. Victor Jara, uma espécie de Chico Buarque do Chile, foi preso no dia do golpe (11 de setembro de 1973), levado para o estádio, cortaram-lhe os dedos, entregaram-lhe um violão e disseram: “agora, canta”. Jara esfregou o violão e cantou. A música tocada por ele foi transcrita no livro de Henfil.
“Diário de um Cucaracha” é recomendado para as pessoas que ainda acreditam que é possível combater os causadores da aguda situação de miséria vivida pelo povo brasileiro sem precisar se render as facilidades da “sociedade dinheirista”. E como diz uma frase de Millôr que foi adaptada por Henfil, “desconfie daqueles que não têm ideal, e mais ainda daqueles que não têm ideal nenhum”. E para os bundões, uma mensagem de Henfil: “o que eu acho calhorda é o que não tenta ser herói”, portanto, siga os conselhos do também revoltado e tropicalista Hélio Oiticica, “seja marginal, seja herói”.



Danilo Nuha

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