Bem, na "Noite dos Mascarados", Chico canta que
depois do carnaval tudo volta ao normal.
Porém, neste tempo de cinzas em que vivemos, não se tem
tanta certeza de que nem mesmo o amanhã será outro dia.
Ao menos no que tange ao controle do mercado por meio destas
coisas chamadas "agências reguladoras", o futuro deste presente é
sinistro.
Afinal, componente da mais moderna fantasia do capitalismo,
a máscara da "regulação" é uma ideia quase divina que, a enebriar
como sopro de sereia e a paralisar como um olhar medúsico, não parece querer
cair numa quarta-feira qualquer.
Fruto nada proibido do neoliberalismo – no Brasil de cepa
demo-tucana –, tem-se esta tese de que a função de regulação deve ser
prosseguida não propriamente pelo Estado, mas por agências reguladoras
independentes, saindo do controle direto e se assentando numa pseudo-equidistância
de interesses públicos e privados...
E agora você dorme ou gargalha.
Ora, esta solução só tenta se justificar porque a velha
cantilena liberal entende – e assim age para manipular a consciência popular –
que o Estado, declarado por puro preconceito ideológico como incapaz de
administrar o setor público da economia – ou se acredita que os setores de
telefonia, de energia, de água etc. estão em melhor estado hoje sem o Estado?
–, é também considerado incapaz de exercer
bem esta função reguladora, razão pela qual terceiriza para as ditas
"agências".
Ao substituírem o Estado no exercício desta função
reguladora, as agências concretizam uma poção mágica que contém os ingredientes
do dogma liberal, da separação entre Estado e Economia: aquele deve manter-se
afastado dessa, porque essa é a esfera privativa dos privados e aquele é uma
pura instância política – é, como querem, o “conteúdo mínimo” do “estado
mínimo”, na lição do Professor António Avelãs Nunes.
Com o argumento de que as funções das entidades reguladoras
são funções meramente técnicas e
não-políticas, o que se pretende é subtrair à esfera da política – ou seja, à
competência dos órgãos políticos democraticamente legitimados – a ação destas
entidades ditas independentes, alegando-se que só assim se consegue a sua
neutralidade.
Só assim – invocam os mais afoitos – o Estado pode ser, como
regulador, um "árbitro imparcial" (ou "neutro", como
um sabonete).
E mais: nesta subtração, pressupõe a Política como uma coisa
indecorosa, feia, diabólica, uma chaga, uma perigosa praga egípcia reloaded e
merecedora do isolamento e confinamento.
Ademais, quer-se trazer a substituição do "Estado
democrático" por um "Estado tecnocrático", novamente neutro,
governado por pessoas que não pensam em outra coisa que não seja o interesse
público, sob os primados da suprema eficiência e retidão... zzzzz...
Parece óbvio que não se pode esperar de um Estado
"neutro" – que age segundo critérios técnicos e que rejeita as opções
políticas – a definição e execução de políticas públicas, que visam, é claro, a
promover interesses públicos e coletivos e escolhas políticas assim
comprometidas.
Ora o chamado Estado regulador revela-se, afinal, um estado
pseudo-regulador – ou um "pseudo-estado regulador", como sempre
sublinhou o Professor Avelãs, inclusive aqui, no seu último livro –, um
Estado que renuncia ao exercício desta
sua função, a qual é transferida para sacrossantas entidades e agências
“independentes”, “politicamente puras”, atuando apenas em função de critérios
“técnicos” e com ímpar "eficiência", a sublinhar que o seu ethos
radica na "imparcialidade" da atuação sobre o mercado.
Seria, pois, outro ser apolítico, como os amarelinhos que
até recentemente desfilavam pelas orlas brasileiras.
Trata-se de um esforço inglório, por ser por demais evidente
que essas agências exercem funções
políticas e tomam decisões políticas com importantes repercussões econômicas e
sociais.
Na verdade, as autoridades reguladoras independentes vêm
chamando (e recebendo) para si parcelas importantes da soberania, flertando com
a sobrevivência do próprio Estado de Democrático de Direito, que se vê
substituído por essa espécie de estado oligárquico-tecnocrático para atuar sob
a chancela de “técnicos especialistas independentes” que “governam” este tipo
de “estado”, mas que não é politicamente (e legitimamente) responsável perante
ninguém, embora tome decisões que afetam a vida, o bem-estar e os interesses de
milhões de pessoas.
E assim, a imitar o caos cívico de hoje, provoca o caos
institucional, numa república democrática esquizofrênica em suas partes e
funções.
Vários
argumentos têm sido
invocados para justificar
a regulação “amiga do mercado” e a sua entrega a entidades
independentes, mas há raros espaços para se debater as múltiplas reservas que
vêm sendo levantadas a esta concepção da função reguladora e ao modo como é
exercida.
Por quê? Ora, são negócios da China nas mãos de poucos,
poucos que controlam toda a mídia, e toda uma grande mídia que não dá lugar a
nada que rediscuta o modelo – e o Estado brasileiro enxerga subserviente e
calado este estado de coisas.
Mais do que isso, este Estado (Estado regulador, ou
garantidor, ou ativador, ou incentivador, ou contratualizador... são inúmeros
os eufemismos) conforma-se como um "super-Estado feudal" – consoante,
de novo, acepção do professor coimbrão –, a assegurar aos novos senhores
feudais (os parceiros privados das PPPs, as concessionárias...) verdadeiras
rendas feudais: em vez de terras, concede-lhes direitos de exploração de bens e
serviços públicos ou patrocínios, comprometendo-se, inclusive, a pagar-lhes
(com o dinheiro dos tributos cobrados dos “súditos”) o que faltar para
complementar as “rendas” contratadas.
É o capitalismo sem falências, fruto deste modelo
intervencionista pós-moderno e desenvolvido para aqueles que são “too big to
fail” (v. aqui), consoante o mote adotado para livrar da bancorrata parte do
sistema financeiro estadunindese pós-crise – esse negócio todo é também
mostrado e desenhado nos premiados documentários "Trabalho Interno"
(v. aqui) e e "Capitalismo - a Love Story" (v. aqui).
E assim, enfim, neste grande espetáculo, assistimos os seus
produtores na incessante busca de tentar disfarçar o estado capitalista com as
suas tantas e sempre renovadas vestes, e que agora vem sob o adorno de
"estado-regulador" e as suas "agências reguladoras".
Porém, estes mesmos senhores são incapazes de esconder o seu
maior propósito: por a nu o Estado, paralisarem-no e asfixiarem-no, provocando a
morte da Política e exaltando a ubiquidade onisciente do "Mercado",
para aplausos delirantes da galera.
Pois é, nem Rá era tão louvado.
E nem Ary Toledo contaria uma piada melhor.
http://abuladabola.blogspot.com.br/2016/06/o-auditorio-sabe-como-o-elefante-se.html?spref=tw
Fonte :
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