sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Lula, enfim, se libertou





por Jeter Gomes
O dia 24 de janeiro de 2018 ficará marcado na história como o dia em que Lula se libertou. Acabou a apreensão, o nervosismo da expectativa de um possível julgamento justo. O que se viu em Porto Alegre, durante horas e horas de sessão, foi a confirmação de que o Judiciário brasileiro não tem o menor pudor em assumir diante das câmeras que tem um lado: o das elites brancas, escravocratas e raivosas. Longuíssimas leituras e discursos políticos dos magistrados e nem uma migalha de provas da culpabilidade do ex-presidente da República. Como os inquisidores nada conseguiram provar, mostraram para seus patrões da mídia e do Kapital que são ainda mais cruéis que o TorqueMoro e aumentaram a pena. Tramando a confirmação do crime, vilipendiaram as leis, a Constituição, o Estado Democrático de Direito. Com punhos de renda, prestaram contas ao rentismo. Com inteligência média, ganharam as manchetes da mídia. E voltaram pra suas casas com as mãos sujas dos carrascos.
E ali começou a libertação de Lula do seu pequeno corpo físico de metalúrgico migrante do agreste pernambucano. O que era carne virou verbo: Lular. Se de um lado, o prefeito de Porto Alegre, seu inimigo figadal, tucano de filiação e MBL (essa seita dirigida por garotos fascistas, financiada por abastados e seguida por abestados) por convicção, não conseguiu juntar uma centena de g(p)atos pingados; do outro, 70 mil pessoas de todo o Brasil lularam numa demonstração gigantesca de apoio ao seu líder e que a mídia Golpista ocultou dos seus leitores. Certamente, Lula é o réu que mais arrastou simpatizantes para um julgamento na história da humanidade. E a massa lulava com força, com gana, com raça, com coragem, mesmo sabendo que os juízes jogavam no time adversário.
A farsa acabou, os véus foram rasgados, as máscaras deixadas nos bolsos das togas. Despiram-se das fantasias a menos de vinte dias do carnaval. E quando o mundo abriu os olhos, os três patéticos estavam nus diante do tribunal da verdade, aquela que adoece, mas nunca morre. A guilhotina foi armada para decapitar o maior líder popular e o presidente mais bem avaliado da história do Brasil. Mas Lula desencantou, bateu asas na Esquina Democrática da capital gaúcha, sobrevoou o Guaíba, se misturou ao vento e se espalhou pelo país. Se fez matéria nas universidades e institutos tecnológicos que construiu, nos 40 milhões que ajudou a tirar da miséria, na retirada do Brasil do mapa da fome da ONU, nas águas transpostas do Velho Chico, na Luz que ofertou para Todos, nos alimentos da Agricultura Familiar que saciou a fome nas merendas escolares, nos tetos seguros do Minha Casa Minha Vida, nos milhares de jovens negros e pobres que ingressaram nas universidades e adquiriram conhecimento até ultrapassaram nossos limites geográficos no Ciência Sem Fronteiras.
Esfumando-se da cidade que foi por vezes sede do Fórum Social Mundial, Lula aterrissou na Praça da República (ironia da história), na capital do Kapital brasileiro. Ali, num tom sereno, dos que portam a certeza da sua inocência, acalmou e orientou para  a luta os 50 mil militantes que o ouviram atenta e emocionadamente. Paradoxalmente, a poucos quilômetros dali, na Avenida Paulista, os vitoriosos do dia não conseguiram amealhar mais do que 300 adeptos. Sintoma de que a população se cansou de ser manipulada por grupelhos infanto-fascistas e pela mídia golpista. Senão, como explicar que os torcedores do time campeão recolheram-se em seus lares e os “derrotados” desfilaram na avenida como se tivessem ganho o campeonato? E o mar de vozes e bandeiras vermelhas lulou até a Paulista, onde já não havia o menor sinal dos “vitoriosos”.
Lula não é mais de carne e osso. Não é mais um nordestino de voz rouca e língua presa. Lula virou pássaro, virou canção, virou poesia. Já entrara pra história como um dos nossos melhores presidentes, senão o melhor. Agora se perpetuará como um dos mais injustiçados, caçados, esquadrinhados, revirados, tripudiados. Seu corpo de 72 anos pode até ser encarcerado, mas não se pode prender seus ideais, seus projetos, seus sonhos, seus feitos, sua utopia. Eles não cabem nas gaiolas da FIESP, da Rede Globo, da FEBRABAM, da Veja ou da Folha de São Paulo, pois já estão fecundados nos corações e mentes de milhares de brasileiros e brasileiras que não desistirão nunca de serem livres. Lula não mais se pertence. Ele agora é do povo, dos mais humildes, dos mais conscientes, dos mais necessitados, dos excluídos. Não por acaso, lidera folgado todas as pesquisas de intenção de voto para presidente da República. E já não precisa mais receber nenhum desses votos, pois virou lenda, virou mito, virou luz na escuridão que o Golpe nos jogou. Virou estrela no céu cinzento, virou sol em meio a tempestade. Seus algozes quiseram transformá-lo em cinzas, mas Lula é Fênix. Renasce e cresce a cada derrota. O sapo barbudo ficará na história, os juízes na escória.
Contam que depois da sentença, pré-anunciada pela crônica, ouviu-se Lula declamando os versos do gaúcho (talvez uma homenagem à cidade que o abraçou e o fez mártir) Mário Quintana: todos esses que aí estão, atravancando o meu caminho, eles passarão...Eu passarinho!
Voa Lula, voa!

Jeter Gomes - Engenheiro mecânico, poeta, especializado em Economia do Trabalho e Sindicalismo, mestre em Educação e consultor para assuntos de Sindicalismo, Economia Solidária, Cooperativismo e projetos sociais.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Gramsci: Socialismo e Cultura


Introdução por Marcelo Troysi

O presente texto faz parte de uma série de escritos de Antonio Gramsci, ilustre pensador marxista que criou reflexões das mais brilhantes, como hegemonia, intelectual orgânico e adicionou novos pensamentos acerca do conceito de ideologia. Gramsci nasceu em 1891 na cidade de Ales (Oristano, Sardenha), inscreve-se na seção de Turim do Partido Socialista Italiano em 1913, faz parte da redação turinense do Avanti!, onde escreve diversos artigos. Gramsci é preso em 1926 pelo regime fascista de Mussolini. É no cárcere que vem à luz suas mais brilhantes reflexões.

Trato de expor aqui o primeiro de uma série de escritos pré-carcerários de Gramsci que estou redigindo de vários livros sobre este prolífico pensador, principalmente livros de um grande intelectual brasileiro, Carlos Nelson Coutinho, que tratou de analisar profundamente o pensamento de Antonio Gramsci e expô-lo em Antologias como "O leitor de Gramsci", publicado pela Civilização Brasileira em 2011 e outras obras.
                                                                                                                             
                                                                                                                                         

Por Antonio Gramsci

[...]Recordemos duas passagens. Uma de um romântico alemão, Novalis (que viveu entre 1772 e 1801), que diz : "O supremo problema da cultura é o de dominar o próprio transcendental, de ser ao mesmo tempo o eu do próprio eu. Por isso, surpeende pouco a falta de intuição e de conhecimento completo dos outros. Sem uma perfeita compreensão de nós mesmos, não poderemos compreender verdadeiramente os outros."

 A outra, que resumimos, é de G. B. Vico. Vico [...] dá uma interpretação política do famoso dito de Sólon, que Sócrates depois assumiu para a filosofia: "Conhece-te a ti mesmo". Vico afirma que Sólon, com este dito, quis aconselhar os plebeus, que acreditavam ser de origem bestial, enquanto os nobres seriam de origem divina, a refletirem sobre si mesmos para se reconhecerem de igual natureza humana que os nobres e, por conseguinte, para pretenderem ser-lhesigualados no direito civil. E, em seguida, põe essa consciência da igualdade humana entre plebeus e nobres como a base e a razão histórica do surgimento das repúblicas democráticas na Antiguidade.
Não aproximamos os dois fragmentos por acaso. Eles nos parecem conter, ainda que expressos e definidos de modo não muito preciso, os limites e os princípios que devem servir de base para uma justa compreensão do conceito de cultura também em relação ao socialismo.

É preciso perder o hábito e deixar de conceber a cultura como saber enciclopédico, no qual o homem é visto apenas sob a forma de um recipiente a encher e entupir de dados empíricos, de fatos brutos e desconexos, que ele depois deverá classificar em seu cérebro como nas colunas de um dicionário, para poder em seguida, em cada ocasião concreta, responder aos vários estímulos do mundo exterior. Essa forma de cultura é realmente prejudicial, sobretudo para o ploretariado. Serve apenas para criar marginais, pessoas que acreditam ser superiores ao resto da humanidade porque acumularam na memória certo número de dados e de datas que vomitam em certa ocasião, criando assim quase que uma barreira entre elas e as demais pessoas. Serve para criar aquele tipo de intelectualismo balofo e incolor, tão bem-fustigado duramente por Romain Rolland, intelectualismo que gerou toda uma caterva de presunçosos e sabichões, mais deletérios para a vida social do que os micróbios da tuberculose e da sífilis o são para a beleza e a saúde física dos corpos. O estudantezinho que sabe um pouco de latim e de história, o rábula que conseguiu obter um diploma graças à irresponsabilidade e à desatenção dos professores acreditam ser diferentes, superiores até mesmo ao melhor operário qualificado, que cumpre na vida uma tarefa bem precisa indispensável e que vale cem vezes mais em sua atividade do que os outros valem na deles. Mas isso não é cultura, é pedantismo; não é inteligência, mas intelectualismo - e é com toda razão que se reage contra isso.

A cultura é algo bem diverso. É organização, disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista de consciência superior: e é graças a isso que alguém consegue compreender seu próprio valor histórico, sua própria função na vida , seus próprios direitos e seus próprios deveres. Mas nada disso pode ocorrer por evolução espontânea, por ações e reações independentes da própria vontade, como ocorre na natureza vegetal e animal, onde cada ser singular seleciona e especifica seus próprios orgãos inconscientemente, pela lei fatal das coisas. O homem é sobretudo espírito, ou seja, criação histórica, e não natureza. Se não fosse assim, seria impossível explicar por que, tendo tendo sempre existido explorados e exploradores, criadores de riqueza e consumidores egoístas da mesma, o socialismo ainda não se realizou. É que só pouco a pouco, de estrato em estrato, a humanidade adquire consciência de seu próprio valor e conquista o direito de viver independentemente dos esquemas e dos direitos de minorias que se afirmaram historicamente num momento anterior.  E essa consciência se forma não sob a pressão brutal da necessidades fisiológicas, mas através da reflexão inteligente (primeiro de alguns e depois de toda uma classe) sobre as razões de certos fatos e sobre os meios para convertê-los, de ocasião de vassalagem, em bandeira de rebelião e de reconstrução social. O que significa que toda revolução foi precedida por um intenso e continuado trabalho de crítica, de penetração cultural, de impregnação de ideias em agregados de homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos, dia a dia, hora a hora, seus próprios problemas econômicos e políticos, sem vínculos de solidariedade com os que se encontravam na mesma situação. O último exemplo, o mais próximo de nós e por isso o menos diferente do nosso, é o da Revolução Francesa. 

O período cultural que a antecedeu, chamado de Iluminismo, tão difamado pelos críticos superficiais da razão teórica, não foi de modo algum - ou, pelo menos, não foi inteiramente - aquele borboletar de inteligências enciclopédicas superficiais que discorriam sobre tudo e sobre todos com idêntica imperturbabilidade, que acreditavam só ser homens do seu tempo depois de ter lido a Grande Enciclopédia de D'Alembert e de Diderot. Em suma, não foi apenas um fenômeno de intelectualismo pedante e árido, similar ao que vemos diante dos nossos olhos e que encontra sua manifestação nas universidades populares de baixo nível. Foi ele mesmo uma magnífica revolução, mediante a qual, como observa agudamente De Sanctis em sua Storia della letteratura italiana, formou-se em toda Europa  uma consciência unitária, uma internacional espiritual burguesa, sensível em todos os seus elementos às dores e às desgraças comuns, e que foi a melhor preparação para a sangrenta revolta que depois teve lugar na França.

Na Itália, na França, na Alemanha, discutiam-se as mesmas coisas, as mesmas instituições, os mesmo princípios. Toda nova comédia de Voltaire, todo pamphlet era a centelha que passava pelos fios já tensos entre Estado e Estado, entre região e região, encontrando por toda parte e ao mesmo tempo os mesmos defensores e os mesmos opositores. As baionetas dos exércitos de Napoleão encontravam o caminho já preparado por um exército invisível de livros, de opúsculos, que vinham como enxames de Paris desde a primeira metade do século XVIII e que haviam preparado homens e instituições para a necessária renovação. Mais tarde, quando os fatos da França solidificaram as consciências, bastou um movimento popular em Paris para suscitar outros similares em Milão, em Viena e nos centros menores. Aos simplistas, tudo isso parece natural e espontâneo; mas ao contrário, seria incompreensível se não conhecessem os fatores culturais que contribuíram para criar aquele estado de espírito pronto para explosões em favor de uma causa que se acreditava em comum.

O mesmo fenômeno repete-se hoje com o socialismo. É através da crítica à civilização capitalista que se forma ou se está formando a consciência unitária do ploretariado: e crítica quer dizer cultura, e não evolução espontânea e natural. Crítica quer dizer precisamente aquela consciência do eu que Novalis definia como meta da cultura. Um eu que se opõe aos outros, que se diferencia, e que, tendo criado para si mesmo uma finalidade, julga os fatos e os eventos não só em si e para si, mas também como valores de propulsão ou repulsão. Conhecer a si mesmo significa ser si mesmo, ser o senhor de si mesmo, diferenciar-se, elevar-se acima do caos, ser um elemento de ordem, mas da própria ordem e da própria disciplina diante de um ideal. E isso não pode ser obtido se também não se conhecem os outros, a história deles, a sucessão dos esforços que fizeram para ser o que são, para criar a civilização que criaram e que nós queremos substituir pela nossa. Significa ter noções sobre o que é a natureza e suas leis a fim de conhecer as leis que governam o espírito. E aprender tudo sem perder de vista a finalidade última, ou seja, a de conhecer melhor a si mesmo através dos outros e conhecer melhor os outros através de si mesmo.

Se é verdade que a história universal  é uma cadeia dos esforços  que o homem fez para libertar-se dos privilégios, do preconceitos e das idolatrias, não se compreende por que o ploretariado - que quer acrescentar um outro elo a essa cadeia - não deva saber como, por que e por quem foi precedido, bem como o benefício que poderá  extrair deste saber.

(Assinado Alfa Gamma, Il Grido del popolo, 29/1/1916; EP 1, 56-61).

Odeio o Ano Novo”, de Antônio Gramsci

Odio il Capodanno

Toda manhã, ao acordar mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim é o primeiro dia do ano.
Por isso odeio estes anos novos a prazo fixo, que transformam a vida e o espírito humano em uma empresa comercial, com sua prestação de contas, seu balanço e suas previsões para a nova gestão. Eles fazem com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Termina-se por acreditar a sério que entre um ano e outro exista uma solução de continuidade e comece uma nova história; fazem-se promessas e projetos, as pessoas se arrependem dos erros cometidos, etc. É um equívoco geral que afeta todas as datas.
Dizem que a cronologia é a ossatura da história. Pode-se admitir que sim. Mas também é preciso admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais, que toda pessoa conserva gravadas no cérebro, datas que tiveram efeito devastador na história. Também elas são primeiros dias de ano. O Ano Novo da história romana, ou da Idade Média, ou da era moderna. Elas se tornaram tão presentes que nos surpreendemos a pensar algumas vezes que a vida na Itália começou em 752, e que 1490 ou 1492. São como montanhas que a humanidade ultrapassou de um só golpe para entrar em um novo mundo e em uma nova vida.
Com isso, a data converte-se em um fardo, um parapeito que impede que se veja que a história continua a se desenvolver de acordo com uma mesma linha fundamental, sem interrupções bruscas, como quando o filme se rompe no cinema e se abre um intervalo de luz ofuscante.
Por isso odeio o ano novo ano. Quero que cada manhã seja um ano novo para mim. A cada dia quero ajustar as contas comigo mesmo e renovar-me. Nenhum dia previamente estabelecido para o descanso. As pausas eu escolho sozinho, quando me sinto embriagado de vida intensa e desejo mergulhar na animalidade para extrair um novo vigor.
Nenhum disfarce espiritual. Cada hora da minha vida eu gostaria que fosse nova, ainda que vinculada às horas já passadas. Nenhum dia de júbilo coletivo obrigatório, a ser compartilhado com estranhos que não me interessam. Só porque festejaram os avós dos nossos avós, etc., teremos também nós de sentir a necessidade de festejar? Tudo isso dá náuseas.
Espero o socialismo também por esta razão. Porque mandará para o lixo todas estas datas que já não têm nenhuma ressonância em nosso espírito. E se o socialismo vier a criar novas datas, ao menos serão as nossas e não aquelas que temos de aceitar sem benefício de inventário dos nossos ignorantes antepassados.
Antonio Gramsci, Turín, 1º de janeiro de 1916.
* Tradução ao português tomando por base o texto em Espanhol Tomado do Livro “Bajo la Mole - Fragmentos de Civilización”, de Antonio Gramsci. Editorial Sequitur, Págs. 9-10.
Tradução: Leandro Lanfredi