sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Condenação de Lula é absolutamente nula

Por Afranio Silva Jardim, professor associadode Direito Proc.Penal da Uerj.
CASO LULA. Lógica é complicado mesmo. Entretanto, é fácil compreender que, se partimos de uma premissa falsa,(e inconstitucional), a conclusão será equivocada. Vejam a excelente reflexão de um dos mais cultos autores jovens de Direito Penal, com tese de doutorado premiada em Barcelona. Brilhante professor.
José Carlos Porciúncula: Doutor em Direito Penal pela Universidade de Barcelona (Espanha), com período doutoral na Universidade de Bonn (Alemanha). Professor da pós-graduação do IDP - Brasília.
Só discordo de um ponto: a deficiência ou defeito no raciocínio do magistrado que lastreia um juízo de condenação deve acarretar a sua reforma - com absolvição do réu - e não a sua nulidade.

Condenação de Lula é absolutamente nula "para além de qualquer dúvida razoável"



Embora se possa (e se deva!) censurar a sentença condenatória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sob distintas perspectivas, concentro-me aqui num argumento que me parece de superlativa importância, justamente por consubstanciar uma espécie de «ponto arquimédico», algo como uma base firme sobre a qual é possível erguer uma crítica implacável e inquestionável.
A meu ver, este minimum quid invenero quod certum consiste no seguinte: ao fazer uso do teorema de Bayes para fundamentar o seu pedido de condenação, o MPF, necessariamente, partiu da presunção de culpabilidade do ex-presidente Lula, violando o princípio insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. E ao adotar toda a linha lógico-argumentativa das alegações finais do MPF, a sentença condenatória do ex-Presidente Lula incorreu em evidente nulidade. Pode-se demonstrar isso com rigor more geometrico. É conferir.
A incompatibilidade do teorema de Bayes com o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF)

O MPF abre o tópico 3.1.2. de suas alegações finais (intitulado “modernas técnicas de análise de evidências”) sustentando que “as duas mais modernas teorias sobre evidência atualmente são o probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o explanacionismo". Não é o caso aqui de se realizar uma profunda análise teórica delas, mas apenas de expor seus principais pontos, a fim de usar tal abordagem na análise da prova neste caso”.
Inicialmente, observe-se que, embora a aplicação do teorema de Bayes à valoração das provas e à determinação dos fatos tenha se convertido, nos anos 70, numa espécie de ortodoxia teórica ou até mesmo numa sorte de modismo (ser «bayesiano» era estar up to date), o certo é que, na atualidade, ao contrário do que faz crer o Parquet, este enfoque é alvo de inúmeras objeções[1].
Não quero aqui reproduzi-las, até porque, recentemente, Lenio Streck, com sua elevada percuciência e habitual elegantia iuris, teceu críticas certeiras à referida teoria e sua aplicação em nosso âmbito. Quero, insisto, concentrar todos os esforços na demonstração da absoluta incompatibilidade do teorema de Bayes com o princípio da presunção de inocência. Esta é uma objeção irrespondível: ou se aplica o teorema de Bayes ou se preserva a presunção de inocência, tertium non datur.
Antes, porém, de realizar tal demonstração é preciso conhecer o teorema, em sua expressão mais simples:
P(H/E)=P(E/H) x P(H)P(E/¬H)
Lê-se: a probabilidade condicional de que seja verdadeira a hipótese H dada a evidência E [P(H/E)] é igual à probabilidade de que ocorra E se é verdadeira a hipótese H [P(E/H)] multiplicado pela probabilidade da hipótese H [P(H)], dividido pela probabilidade de que ocorra E se não é verdadeira a hipótese H [P(E/¬H)].
Note-se bem a razão pela qual a aplicação do teorema de Bayes é absolutamente incompatível com princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF). Se quisermos preservar tal princípio, devemos, claramente, atribuir à hipótese da culpabilidade uma probabilidade inicial (prior probability) igual a zero. Isto é, P(H) = 0.
Entretanto, a inevitável consequência disso é que a probabilidade final da hipótese P(H/E) seria necessariamente zero, já que, de acordo com o teorema de Bayes, deve-se multiplicar a probabilidade condicionada inversa P(E/H) pela probabilidade inicial P(H), e qualquer número multiplicado por zero resulta, obviamente, em zero. É bem verdade que tal «problema» poderia ser «contornado» atribuindo-se uma probabilidade maior que zero à hipótese da culpabilidade antes de se levar em consideração as evidências do caso, mas aí, claro, já se estaria violando irremediavelmente o princípio da presunção de inocência[2].
Aliás, esse foi o exato entendimento da Suprema Corte do Estado de Connecticut, nos Estados Unidos, no precedente State v. Skipper.
Faz-se aqui um breve relato do caso: Skipper foi acusado de estuprar uma jovem, que acabou por engravidar. Extraídas provas de DNA da jovem, do acusado e do feto, um perito determinou, aplicando o teorema de Bayes, e partindo de uma probabilidade inicial de 50% para a hipótese de paternidade do Sr. Skipper, que a probabilidade de que ele fosse o pai da criança era de 99,97%. Pois bem, a Corte declarou tal análise incompatível com o princípio da presunção de inocência, por atribuir uma probabilidade inicial maior que zero à hipótese da culpabilidade de Skipper[3]. Verbis: “Se assumirmos que o standard da presunção de inocência requer que a probabilidade inicial da culpabilidade seja zero, então a probabilidade da paternidade num caso penal será sempre zero, porque o teorema de Bayes requer que o índice de paternidade seja multiplicado por uma probabilidade inicial positiva para que tenha alguma utilidade. Em outras palavras, o teorema de Bayes somente pode funcionar se não levarmos em consideração a presunção de inocência”[4].
Como se percebe, o teorema de Bayes é absolutamente incompatível com o princípio da presunção de inocência. Se o Ministério Público o utilizou em suas alegações finais, logo, necessária e indubitavelmente, atribuiu uma probabilidade inicial (prior probability) maior que zero à hipótese da culpabilidade do ex-presidente Lula, antes mesmo de levar em consideração as supostas evidências disponíveis, violando, assim, o princípio da presunção de inocência. E o mesmo pode ser dito em relação à sentença condenatória do ex-presidente Lula, que adotou toda a linha lógico-argumentativa das alegações finais do MPF. Quod erat demonstrandum.
Algumas observações a respeito da fórmula «para além de qualquer dúvida razoável» (beyond any reasonable doubt)
O MPF inicia o tópico 3.1.3. de suas alegações finais (intitulado “Standard de prova”) assinalando que “o melhor standard de prova que existe foi desenvolvido no direito anglo-saxão, e é o ‘para além da dúvida razoável’. Esse standard decorreu da constatação, pelas cortes inglesas no século XVII, de que a certeza é impossível, e de que, caso exigida certeza, os jurados absolveriam mesmo aqueles réus em relação aos quais há abundante prova”.
Ora, com o devido respeito, não se pode estar de acordo com tais considerações. Por alguns motivos.
Inicialmente, e apenas por absoluto rigor, observe-se que a fórmula beyond any reasonable doubt foi introduzida no Common Law no final do século XVIII (mais exatamente entre 1770 e 1780), e não no século XVII como afirma o MPF. Mais importante, porém, é assinalar que a inserção da mencionada fórmula não se deve a uma suposta “constatação, pelas cortes inglesas (...), de que a certeza é impossível”. De modo algum! Na realidade, tal fórmula foi adotada como solução para um problema de cunho teológico!
Explica-se: de acordo com a antiga tradição cristã, condenar um inocente era considerado um pecado mortal. O propósito da introdução da referida cláusula era assegurar aos jurados a possibilidade de condenar alguém sem colocar em risco a sua própria salvação, contanto que as dúvidas a respeito da culpabilidade do sujeito não fossem razoáveis[5]. Por óbvio, a fórmula também possuía uma finalidade didática, consistente em mostrar aos jurados que a condenação de um sujeito não requeria uma «certeza matemática», mas apenas uma «certeza moral» (moral certainty)[6]. De qualquer sorte, note-se que, rigorosamente falando, não se abdicou da noção de certeza. De fato, como observa Larry Laudan, «certeza moral» significava apenas impossibilidade de demonstração «rigorosa» ou «matemática», e não ausência de firmeza suportada por múltiplas linhas de evidência[7]. Em suma: a introdução no Common Law da fórmula "para além de qualquer dúvida razoável" não guarda relação direta com questões pertinentes ao standard probatório.
Também não se compreende, sit venia verbo, o entusiasmo do MPF com a referida fórmula, ao considerá-la como “o melhor standard de prova que existe”. Na realidade, trata-se de uma fórmula excessivamente vaga. De fato, como observa Taruffo, trata-se de um critério cujo significado é bastante incerto: “Por um lado, não é possível saber como ele é efetivamente aplicado pelos júris norte-americanos, que não motivam seus vereditos; por outro, a definição de dúvida razoável é tudo menos clara, e as tentativas de quantificá-la não produziram qualquer resultado”[8].
Conclusão a modo de manifesto

Por meio dessas brevíssimas considerações, demonstramos que o MPF, ao fazer uso, em sua alegações finais, do teorema de Bayes, violou o princípio da presunção de inocência. E ao adotar toda a linha lógico-argumentativa contida nas alegações finais do MPF, a sentença condenatória do ex-presidente Lula mostra-se absolutamente nula. Ironicamente, chega-se à conclusão de que tal sentença é nula "para além de qualquer dúvida razoável".
Uma advertência e um pedido: estivéssemos nós, por assim dizer, nos Jardins de Platão (os jardins de Akádēmos [Ακάδημος], berço da Academia) estas breves reflexões poderiam, quem sabe, ser tomadas, por metonímia ou mesmo sinédoque (pars pro toto), como pré(texto) para o início de um profícuo e amplo diálogo a respeito dos limites do Sistema Penal no Estado Democrático de Direito. Entretanto, como nos encontramos no Oásis de Baudelaire[9], pouca esperança nos resta. Mas é preciso seguir lutando pela preservação dos Direitos e Garantias fundamentais do cidadão:
Não entres docilmente nessa noite serena,
Odeia, odeia a luz que começa a morrer”
(Dylan Thomas)[10]
Fonte:  http://www.conjur.com.br/2017-ago-24/carlos-porciuncula-condenacao-lula-absolutamente-nula

CONCEITO DE LIBERDADE



Tendo em vista algumas mensagens que coloquei sobre a crise na Venezuela, surgiu aqui um bom debate sobre o conceito de liberdade no socialismo e na chamada democracia liberal, mais própria do sistema capitalista.

Desta forma, retorno ao polêmico tema, no singelo texto abaixo. Entretanto, aconselho aos companheiros a leitura de um breve livro escrito por Caio Prado Junior, cujo título é: "O que é liberdade", que pode ser adquirido no site da Estante Virtual (muito barato).

REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE LIBERDADE

O conceito de liberdade, em uma sociedade de economia capitalista, é uma categoria abstrata, um valor de difícil concretização. Poucos podem efetivamente exercer essa "liberdade consentida".

Enquanto não se coloca em risco concreto o sistema de privilégios da classe dominante, qualquer um pode falar o que desejar, embora não possa ter efetivo acesso aos meios de comunicação de massa. É absolutamente desigual, mas até parece legitimar o sistema.

Agora, quando o exercício desta liberdade coloca em risco a estrutura injusta de determinada sociedade, vem o golpe de estado para manter o "status quo" e aí surgem vários argumentos falaciosos para justificar a supressão temporária desta liberdade tolerada.

O golpe militar no Chile de Allende e tantos outros bem demonstram que as "regras do jogo" só são obedecidas quando servem para deixar tudo como está...

Agora, estão querendo derrubar o governo eleito da Venezuela. As classes privilegiadas não aceitam que sejam implementadas medidas populares e jurídicas que viabilizam uma economia socialista e nacionalistas. Os Estados Unidos, através da Cia., acaba de confessar que estão ajudando a oposição a tentar depor o presidente Maduro (veja postagem que hoje coloquei nesta página).

Ademais, na realidade de nosso cotidiano, quem mais restringe, concretamente, a nossa liberdade não é o Estado, mas sim a estrutura autoritária de uma sociedade hierarquizada. O patrão manda no empregado e limita efetivamente a sua liberdade.

Notem que o determinismo social, no sistema capitalista, faz com que o filho do patrão nasça patrão e o filho do empregado nasça empregado. Vale dizer, o poder econômico tem "liberdade" para suprimir, concreta e permanentemente, a real liberdade das pessoas em sociedade.
Em resumo: em tese, todos têm liberdade para viajarem para Paris ou Londres. O Estado não as impede disso. Entretanto, cabe a pergunta: quantas pessoas em nosso país podem realmente exercer esta liberdade ???

Pensemos de forma mais crítica, pois sem justiça social, sem que ao menos as pessoas tenham as mesmas oportunidades para ascender socialmente, a ideia de liberdade não passa de mera ilusão e de mais um fator de mistificação.
Autor:Afranio Silva Jardim, professor de Direito da Uerj.