quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Sobre obscenidades


Por Pedro Tierra *

“Onde quer que se queimem livros,
terminarão um dia por queimar
pessoas” (Heinrich Ibsen)
Poderia iniciar este comentário expondo o sentimento de indignação ao lado de setores da sociedade brasileira que prezam a liberdade e a democracia diante da ofensiva obscurantista que se abriu contra exposições em museus e outras manifestações culturais, sob a alegação de obscenidade e indução à pedofilia.

Razões que, supõe-se, atendem a objetivos de natureza moral. A ofensiva avança nesses dias mais um degrau, com a censura à apresentação de um dos mais importantes artistas brasileiros, o cantor e compositor Caetano Veloso que seria oferecida à grande ocupação do MTST em S. Bernardo do Campo, em sua luta pelo direito à moradia digna, anunciada para a noite de 30 de outubro, e impedida pela justiça. Agora sob o pretexto de insegurança. Em pouco tempo a liberdade de expressão e criação artística garantida pela Constituição se tornará mero pretexto para medidas de força.

O Brasil, sob a nefasta figura de Michel Temer, despediu-se de qualquer aspiração a ser um país inteligível. Tudo ocorre como se estivéssemos vivendo um pesadelo coletivo, sem roteiro e sem propósito. O país foi mergulhado no irracionalismo que tudo relativiza exceto o uso da força. Simbólica ou física. E do embuste produzido em escala industrial pelo cartel da mídia conservadora.

A semente do fascismo está plantada em terreno fértil: o terreno da indiferença. E a sociedade brasileira – seus setores democráticos – deve se preparar para a conhecida advertência de Ibsen com que abri essa reflexão.

Mas, prefiro conduzir meu argumento a partir de outro olhar: a Sessão de 17 de abril de 2016, comandada por Eduardo Cunha, gerente distribuidor – em dinheiro vivo, por favor! – de milhões de reais vindos dos cofres dos açougueiros da JBS para comprar votos de parlamentares e aprovar o impedimento da Presidente eleita, Dilma Rousseff, sem que se provasse contra ela crime de responsabilidade ou de qualquer outra natureza. Todos nos recordamos com repugnância, tratou-se de uma sessão obscena, ante uma sociedade anestesiada.

Os depoimentos publicados desde então, oferecidos pelos delatores participantes da compra dos votos necessários para concretizar o impedimento criminoso de Dilma Rousseff esclarecem a população sobre os mecanismos e valores das operações de compra e venda. Não chega a gerar espanto o silêncio do STF diante da obscenidade exposta. A Suprema Corte presidiu a Sessão. Quando um dia recuperarmos a democracia, ela – a Sessão – será anulada em nome do respeito à soberania popular.

Nos últimos dias esse pesadelo que atormenta a sociedade brasileira teve confirmada – diga-se, duplamente – aquela sessão pelo arquivamento das denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal contra o usurpador Michel Temer. Agora o expediente utilizado, fartamente documentado pela mídia, foi a cooptação por meio da liberação de recursos de emendas parlamentares, oferecimento de cargos ou a publicação de mecanismos institucionais como a famigerada Portaria 1.129/17 do Ministério do Trabalho que abre as portas para a legalização da exploração do trabalho escravo no país. Na prática a portaria de Temer revoga a Lei Áurea que, há 129 anos imprimia um ponto final à escravidão legal de afrodescendentes no Brasil.

Há mais de um ano, o Estado brasileiro expõe diante do mundo as vísceras de uma quadrilha empenhada – em nome dos interesses de uma elite retrógrada e desprovida de compromisso com o país – na destruição de qualquer hipótese desenvolvimento autônomo do Brasil e na restauração dos mais selvagens métodos de exploração dos trabalhadores, como atestam a dita Reforma trabalhista e a liquidação da Previdência Social. Hoje estão sendo perpetrados, quotidianamente, crimes de lesa-pátria pelos próprios agentes do Estado que deveriam protege-la da pilhagem.

A cultura política do Brasil nos conduziu a um paradoxo: os setores populares, teoricamente, atores e destinatários do processo civilizatório do país foram secularmente hegemonizados por uma concepção que atribui às oligarquias a propriedade exclusiva dos assuntos do Estado. Este fato cultural nos ajuda a compreender alguns processos históricos como o Movimento Abolicionista que contou com o claro predomínio de militantes brancos – mesmo porque aos escravos não era permitido sequer alfabetizar-se – e se consumou com um ato assinado pela própria filha do Imperador. Ou a Proclamação da República diante dos olhos bestificados da sociedade, resultante de um movimento de militares conduzido por Deodoro, um monarquista... Os mais tímidos ensaios de participação popular nos assuntos de governo foram rechaçados de plano pelo sistema oligárquico, para prevenir que pelo exercício da cidadania, o aprendizado democrático produzisse entre os subalternos veleidades de consciência republicana.

As elites conservadoras conduzem, utilizando-se de uma camarilha desprovida de escrúpulos, um processo que busca produzir conscientemente as condições da ingovernabilidade do país: a afirmação do Judiciário como um poder tutelar sobre os demais poderes da república; o desequilíbrio entre os poderes; o controle monopolista dos meios de comunicação; e modelam os contornos de um estado policial como forma de produzir o medo em escala de massa para perpetuar seu domínio sobre a sociedade brasileira.
Em qualquer democracia no mundo a gangue de rua que acendeu o estopim daquela ofensiva contra a exposição no espaço cultural de um banco espanhol, em Porto Alegre, seria alvo da atenção da polícia. Mas, como vivemos “ tempos excepcionais” e fomos instruídos pelos juízes de primeira instância que “tempos excepcionais exigem métodos excepcionais”, os mecanismos que asseguram o direito à informação e à fruição cultural são postos de lado. Aos cidadãos resta – quando muito – protestar contra a censura, quando a censura já se converte em regra, naturalizada como parte da paisagem.

Esse retorno às práticas medievais de combate à criação artística estão associados aos períodos de ascensão e predomínio das concepções mais autoritárias e truculentas na história, como o nazismo e os diferentes perfis com que o fascismo se apresentou e contemporaneamente se apresenta. Tais expedientes são utilizados para entreter a sociedade enquanto se cometem sucessivos crimes de lesa-pátria nos escaninhos do Congresso Nacional ou nos leilões promovidos por um Executivo sem legitimidade para oferecer na bacia das almas as riquezas do país e a soberania nacional.

A conhecida exposição organizada por Alfred Rosenberg em 1937, na Alemanha de Hitler, para exibir a partir de Munique a “Arte degenerada”, como ele definira dez anos antes o expressionismo e o modernismo europeu – Edward Munch, Picasso, Kandinsky, Kathe Kollwtiz, Paul Klee... entre outros – para contrapor a ela o virtuoso e convencional realismo alemão, recebeu a visitação de mais dois milhões de cidadãos. Aqui nos trópicos – tristes trópicos – a ofensiva da censura contra a criação artística é alimentada por parte de quem sequer frequenta museus...

“Se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Poucas vezes a afirmação de um intelectual e líder político brasileiro – Darcy Ribeiro – revelou-se tão tragicamente profética. As bases materiais para a colossal calamidade que vivemos no país hoje vieram sendo construídas pelo investimento insuficiente e pelo não-investimento – atentem para a Emenda Constitucional que congela os gastos por vinte anos – como política de estado para nos manter ajoelhados diante do altar do obscurantismo e da ignorância.

O extrato mais rico do Brasil, que nunca acreditou no país como nação, neste momento se empenha em destruir as poucas possibilidades experimentadas de combate às desigualdades sociais criminosas que nos marcam como o caráter mais duradouro desde o desembarque dos portugueses. A base da pirâmide social, os assalariados, mais uma vez será chamada para despedir-se da indiferença, reocupar o espaço privativo da política, redesenhar e, agora, reconduzir um processo que possa resgatar o destino deste país como nação...

*Pedro Tierra é poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

UM GOLPE JUSTO, MAS UM GOLPE



Por Francisco Costa
Porque os miliquinhos da monarquia traíram o seu comandante em chefe, Dom Pedrinho Dois?

Ao contrário de 64, que foi um golpe conservador, para impedir o avanço da sociedade brasileira, principalmente das classes trabalhadoras, o golpe de 1889, PARA A ÉPOCA, foi progressista.

A classe dominante, como sempre, ancorada no egoísmo, no só tudo pra mim, estava revoltada com a Abolição dos Escravos, mas não porque houve a abolição, e sim porque queriam que a coroa os indenizasse por cada escravo liberto, como se a abolição tivesse sido uma expropriação.

Junto a isso, os progressistas reclamavam o voto universal e direto, para todos, já que era censitário, de acordo com o poder econômico do eleitor, o que dividia a sociedade imperial em castas.
Para piorar, porque bosta nenhuma fede tanto que não possa feder mais, a educação era elitista, só para os filhos da nobreza. 

Os negrinhos, indinhos, mulatinhos, cafuzinhos, e branquinhos vindos de Portugal como trabalhadores braçais estavam condenados ao analfabetismo por todos os séculos dos séculos, amém.

Para piorar ainda mais, numa sociedade machista de dar inveja no Bolsonaro, Dom Pedrito não tinha filhos, só filhas, e morto, a mais velha, Isabel, herdaria o trono.

Só que Isabel era casada com um conde muito parecido com o Marco Feliciano: arrogante, prepotente e sem conteúdo, o Conde d’Eu, e aqui cessam as diferenças porque o Feliciano é o Conde d’Á.
Para piorar, o d’Eu era odiado, não porque cobrava dízimos, mas aluguéis nas favelas cariocas, na época chamadas de cortiços, das quais ele era proprietário, da maioria.

Um cafetão de pobres, embora não fosse pastor.

Pra embolar mais ainda o meio de campo, maçons e católicos estavam às porradas, e Dom Pedro (era maçom) comprou a briga da maçonaria, desobedecendo determinações papais, fechando instituições e ordens católicas e condenando padrecos a trabalhos forçados.

Isso num país fortemente católico, com a bancada católica, na época, tão cretina quanto a bancada evangélica hoje, aliás como todo religioso, vide talibãs em Paris.

Mas não pense que os maçons eram bonzinhos não, eram do bloco conservador, como são até hoje.
Mentira? Anota aí: Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alkimin, José Serra, Silas Malafaia... Tudo maçon. Roberto Marinho era, boa parte dos generais da ditadura também.

Onde tem golpe e contra golpe tem maçon. Não sei como O chamam de Supremo Arquiteto, deveriam chamar de Supremo General, anauê!

Então quais eram as bandeiras dos republicanos? Voto universal, para todos, desde que machos e alfabetizados; escola para todos, fosse negrinho filho de ex escravo ou a filha querida da baronesa dos paus solitários; estado laico, sem padres nem maçons; igualdade entre negros e brancos (não fazia sentido os negros terem lutado na Guerra do Paraguai e não terem cidadania brasileira); direito de propriedade pra todo mundo, com o fim dos aluguéis nas favelas...

Para apimentar mais a suruba, o povo vivia um dilema: amava Dom Pedrito, o pop star da época, mas tinha um péssimo exemplo da vizinhança: último país a libertar os escravos, só o Brasil não tinha proclamado a república, ainda, éramos tucanos cercados de fidéis e guevaras por todos os lados, o que dividia como mulher gostosa e autoritária: ou se curva e usufrui ou entra em guerra e se tranca no banheiro sozinho, ô vida!

Os progressistas mandaram todas essa propostas para o senado, as PEC da época.

Acontece que o senado era conservador e mais renitente que hímen complacente (vai se informar, coxinha, se é que você sabe o que é hímen), com os senadores nomeados pelo imperador, como na ditadura militar (senadores biônicos) e com cargo vitalício, como hoje os ministros do STF e os acadêmicos da Academia Brasileira de Letras, que só tiram as bundas das cadeiras para colocar no caixão.

E os Cunhas, Aécios, Aloysios, Bolsonaros, Piccianis, Heráclitos, Agripinos da época recusaram tudo.
Só restou uma alternativa: golpe.

Foram até o Marechal Deodoro da Fonseca e disseram: é agora!

Mas havia um problema: Deodoro era monarquista e muito amigo, fiel, a Dom Pedrito, o que foi uma merda pra convencer o homem.

Por fim convenceram-no: não vamos derrubar o cara, só o Chefe de Gabinete dele, o Visconde de Ouro Preto.

O Chefe de Gabinete seria o que é hoje um Primeiro Ministro, num parlamentarismo.

Deodoro foi na conversa, topou, e sabe como é, nunca acredite no só a cabecinha... Derrubaram foi todo mundo, e no dia 15 de novembro de 1889 Deodoro arregimentou algumas centenas de soldados, dirigiu-se a um campo, hoje um grande jardim, o Campo de Santana, aqui no Rio de Crivela, cheio de cotias, cisnes e mendigos, de frente para o prédio onde hoje é o quartel general do comando leste, montou num cavalo, tirou o chapéu e gritou “viva a república”.

No mesmo dia, no final da tarde, a Câmara Municipal do Rio de janeiro, fez constar a existência da república em lei.

Pronto. Nasceu.
Hoje a criança republicana está fazendo 128 anos, com um curto intervalo de 21 anos, entre 1964 e 1985, uma época pouco república e muito cana.

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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Lula


Por Gustavo Conde

"Dia pródigo para falar de Lula. Todo mundo só pensa em Lula, seja para odiar, seja para amar. Eu tento pensá-lo como um homem, um político, um estrategista, um formulador, um ex-presidente. Sem ele, não existe história do Brasil de 1978 para cá.

Odiar Lula é um grande e infame exercício de nulidade mental, preguiça intelectual, má fé existencial e mau-caratismo eleitoral. Critique Lula, mas argumente. Não deixa a baba escorrer pelo canto da boca.

Algo muito singelo que posso prospectar da leitura burra que se faz de Lula desde os anos 2000 é que muita gente acha que ele é socialista. A esses, eu só posso lançar um olhar de comiseração. Até a resposta retórica de Lula os ofendia: "sou metalúrgico" (e eles continuavam não entendendo). Chato explicar. Chato desenhar.

Basta dizer que a origem política de Lula é o sindicato. Não tem nada de romântico, nem de intelectual, nem de salvacionismo, nem de utopia. O socialismo é que foi atrás de Lula, porque Lula o aceitou e o compreendeu melhor que os próprios socialistas.

Qual socialista no mundo produziu uma política pública como a do bolsa-família (que, mais do que sua função ética de levar comida na mesa do pobre, ainda incendiou a economia, fazendo o país sair daquele marasmo econômico da era FHC)?

Qual socialista no mundo foi tão absurdamente democrático, perdendo três eleições majoritárias e, ainda assim, submeteu-se a mais um processo eleitoral?

Qual socialista no mundo teve 258.823.579 de votos ao longo de 30 anos de vida pública (e, pasmem, continua liderando pesquisas de opinião)?

Qual socialista no mundo foi tão perseguido pela imprensa, pela elite, pelo racismo, pela justiça e pelo ódio?

Qual socialista no mundo dialogou com tantas forças do tecido democrático com tanta desenvoltura e resultados: empresariado, movimentos sociais, entidades religiosas, sindicatos, imprensa, organizações não governamentais, sociedade civil, estudantes?

Qual socialista no mundo acumulou 300 bilhões de dólares de reservas internacionais?
Qual socialista no mundo pagou uma das maiores dívidas externas do planeta?
Qual socialista no mundo emprestou dinheiro ao FMI?
Qual socialista no mundo criou um banco para fazer frente ao FMI?
Qual socialista no mundo teve um Celso Amorim como chanceler?

Não se trata de colocar o socialismo em xeque, mas apenas de restituir alguma cifra de realidade ao argumento. Todo intelectual sério sabe que Lula nunca foi socialista e que isso é um dado fantástico: não é preciso ser socialista para lutar pela igualdade e pela democracia.

Lula é a prova de que a gestão pública não aceita a burocracia do pensamento acadêmico como elemento irradiador de políticas. Isso não é o papel de um líder histórico. Um acadêmico no poder é um desastre da natureza.

Cargos da dimensão de uma presidência de um país continental em desenvolvimento não é um trampolim carreirista qualquer: é uma responsabilidade que transcende as ambições mesquinhas de toda e qualquer classe média semi letrada. Compreender essa dimensão é tarefa hercúlea para a classe média, cognitivamente falando.

Essa faixa 'pequeno-burquesa' - só para evocar e agradar os socialistas remanescentes - ainda fantasia que Lula deveria ter sido um Fidel Castro. Ele deveria ter "eliminado" seus adversários políticos.
Ora, ora, ora. Curioso ver como o caudilho autoritário não está em Lula, mas em seus críticos. Reclamam que Lula fez alianças com coronéis, mas o que afinal eles queriam? Que Lula matasse os coronéis? Os coronéis do PMDB?

Sim, era o que eles achavam razoável. A solução dessa turma para os adversários é ELIMINAR o adversário. É a sofisticação estratégica deles. É por isso que a democracia não é para fracos. É por isso que a democracia exige coragem e humildade ao mesmo tempo. É por isso que eles não entendem a democracia.

Lula é uma esfinge para esses anti-analistas, mestres da não argumentação. Para eles, tudo é rótulo, tudo é estereótipo, tudo é frase feita, tudo é comunismo. Eles mal conseguem entender o que é racismo, quanto mais o que é política.

Pena que a história não seja uma donzela recatada e do lar. Ela não segue a lógica primitiva dos seres não argumentativos. A história gosta de conteúdo.

Para a história, o golpe é só um elemento narrativo extremamente poderoso. 

Um antissujeito, uma perturbação, um "tranco" semiótico que prepara a retomada da progressão e dos protagonismos das personagens principais.

E uma personagem de narrativa histórica que se preze não pode ser "transparente", visível a todo e qualquer leitor. Ela exige uma face enigmática, esfíngica, caso contrário anula-se o elemento de suspense.

Tudo isso só para dizer o seguinte: continuem não compreendendo o Lula. Ele se alimenta da não compreensão de vocês."