A filósofa
alemã (e judia) Hanna Arendt cunhou a célebre expressão "banalidade do
mal" para explicar a sua tese do que houve no regime nazista, mais
especificamente depois de acompanhar, em Nuremberg, ao vivo, o julgamento de
Adolf Eichmann, um tenente-coronel do regime de Hitler e reconhecido como o
executor-chefe do Terceiro Reich.
Eichmann foi
responsabilizado pela logística de extermínio de milhões de pessoas,
organizando a identificação e o transporte de pessoas para os distintos campos
de concentração – era a chamada "solução final", na porta de entrada
dos trens.
Ao se
referir à "banalidade do mal", Arendt em momento algum busca rebaixar
a sua gravidade, mas, pelo contrário, aumentá-la – e isso, à época, foi muito
pouco compreendido, maiormente pelo furor dos tão recentes acontecimentos.
Na verdade,
é que o mais horrível do mal está no fato das autênticas perversões poderem se
apresentar e ser vividas como atos corriqueiros, triviais, indiferentes e
neutros do cotidiano.
Ora, se
chego a acreditar que praticar tais atos é um direito (ou um dever) meu, é
muito mais fácil cometê-lo, publicizá-lo e defendê-lo.
Assim, sob
tal concepção, Eichmann não era um assassino monstruoso.
Ele era,
simplesmente, um funcionário estatal comum encarregado de fazer pessoas
entrarem nos trens para que chegassem a um determinado lugar, inadmitindo juízo
de valor.
Sim, mera
peça de uma engrenagem, circunstancialmente travestida de "gente",
que deveria funcionar sob estrito aparo da convicção e da convenção populares
vigentes no contrato social daquela Alemanha.
E uma peça
de engrenagem não é moral e nem é imoral: é, simplesmente, uma
"peça".
Logo, qual o
paralelo que queremos propor?
É que a
mesma lógica sucede com esta coisa chamada "mercado" que nesta
sociedade produz, como fruto fiel da sua capital libertinagem, uma atroz
"injustiça social", banalizando-se na sua essência.
A dinâmica
invisível de uma estrutura abstrata que afeta a vida de bilhões de pessoas
assenta-se em comportamentos cujos reflexos são encarados como meros fenômenos
naturais – e a sua existência, pois, refuta qualquer ordem valorativa.
Não há
monstruosidade na conformação deste regime do capital e não há perversidade na
atuação dos seus agentes: neles somente se fazem "escolhas" e
"investimentos”.
Como
Eichmann, que só organizava transportes e pessoas.
Ora, os
responsáveis em ambas as situações não se movem por instintos malévolos, por
regras de conduta malvadas e por ódio; há, apenas, a renúncia a ser homem e,
pois, a "pensar".
Pensar não
deve ser entendido, jocosamente, como uma abstração máxima da não-atividade.
Pensar
revela-se como a capacidade para refletir e para saber as causas e as
consequências dos próprios atos, ainda que resultem da mera obediência e
cumprimento do dever, sem reduzi-los às dimensões individuais e sem abstraí-los
das implicações globais, como inclusive aqui já foi narrado.
Pois é,
neste anonimato do "mercado", pessoas tomam singelas decisões
sócio-econômicas que abrem o caminho para dramas, tragédias e a falência
financeira, pessoal e moral de outras bilhões.
Tal qual
Eichmann e os agentes do mercado, mundo afora agentes políticos também
trabalham com esta "lógica".
E se não
levam centenas de milhares de seres humanos aos trens que levam às câmaras de
gás, amontoam-nas pelas periferias sob a redoma de uma câmara de asfixia
pessoal e social.
Estes
agentes políticos são cruéis e malevolentes?
Não,
certamente não.
Afinal, tal
qual os agentes do mercado (e Eichmann), eles também creem que estão apenas a
cumprir os seus deveres.
E assim
segue a toada, e assim se perpetua a banalização do mal, no caso, a banalização
da injustiça social.
Diante da
qual poucos se atrevem a pensar ("sapere aude!"), como lá atrás
exigia a filósofa judia alemã, sob a lição de Kant.
Fonte: http://abuladabola.blogspot.com.br/2016/05/mal-banal.html?spref=tw
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