Quase três décadas após o fim do regime militar, país ainda sofre com
as consequências da ditadura na educação, na segurança pública e,
principalmente, na cultura política dos brasileiros
Rogerio Waldrigues Galindo
Desde a fase final do regime militar, o país foi eliminando aos poucos
o aparato legal que permitiu os abusos da ditadura
1978 - Depois de dez anos de vigência, o Ato Institucional nº 5,
baixado pelo presidente Costa e Silva, deixa de valer. Sua eliminação foi um
dos passos dados pelo presidente Ernesto Geisel rumo à “abertura”.
1979 - O presidente João Figueiredo assina, ainda no primeiro ano de
seu mandato, a Lei de Anistia, que garante que crimes políticos cometidos
durante o regime não serão punidos. A anistia permitiu a volta ao país de
esquerdistas, a libertação de presos políticos e também garantiu a impunidade a
agentes do regime que cometeram abusos.
1988 - O país promulga a sua nova Constituição, que substituiu a
anterior, de 1967, e elimina os traços ditatoriais da revisão constitucional de
1969, que havia incorporado vários itens importantes do AI-5.
Nenhum país passa impunemente por duas décadas de ditadura. Mesmo
depois de restabelecida a democracia, as marcas do período de exceção se
espalham por várias áreas e por muitos anos. No caso brasileiro, nem mesmo quem
nasceu depois da Constituição de 1988 está totalmente livre dos efeitos do
golpe de 1964: eles estão presentes na educação, na segurança e,
principalmente, na cultura política dos brasileiros.
E embora haja muitos que ainda considerem o período da ditadura como
um tempo com menos escândalos políticos ou como uma época mais segura – até em
função de a censura ter barrado à época notícias que não interessavam ao regime
–, os índices de corrupção e de insegurança de hoje podem ter sido causados em
grande medida devido às decisões tomadas naquela época. A desmobilização da
sociedade, a divisão cada vez mais forte entre governados e governantes e a
crença de que só o poder central poderia resolver os problemas da nação levaram
o país a ter uma sociedade civil fraca e impotente – incapaz de fazer os
políticos agirem como devem e de cobrar medidas para melhorar os serviços
públicos.
“Criou-se uma ética da servidão”, resume Roberto Romano, professor de
Ética e de Ciência Política da Unicamp. Nesse sistema, quem tem o poder recebe
as garantias de que, faça o que fizer, ninguém poderá lhe cobrar nada. E quem
não governa sabe que, se tiver “juízo”, meramente obedecerá. A cultura do
autoritarismo sempre existiu no país. Mas, segundo Romano, intensificou-se e se
centralizou com as duas ditaduras do século 20 – a de Getúlio Vargas e a dos
militares. “Antes, o medo era do coronel da região. Depois, passou a haver
temor físico do Estado central.”
Nesse modelo ético, o povo deixa de assumir a responsabilidade por
seus atos, delegando soluções para quem ocupa cargos e posições. O outro lado,
porém, também perde responsabilidade, e até os servidores menos importantes,
amparados na impossibilidade de fiscalização, agem como quiserem. “O
vice-presidente Pedro Aleixo definiu magistralmente a situação quando lhe
disseram que o presidente Costa e Silva não abusaria do AI-5. O problema, disse
ele, não era o presidente, mas o guarda da esquina”, diz Romano.
Na sala de aula
A desmobilização da sociedade não se deu apenas em razão da ausência
de eleições ou da postura autoritária dos governos. Foi criada também dentro
das salas de aula. Segundo o professor Ângelo de Souza, do Núcleo de Políticas
Educacionais da UFPR, a desmobilização na escola não ocorreu devido a um
projeto consciente dos militares. “Simplesmente era um regime que não tinha uma
proposta educacional. Não era importante para eles”, afirma.
Souza aponta três consequências duradouras do ciclo ditatorial que
ainda permanecem vivas. Uma foi a fusão de dois ciclos completamente diferentes
naquilo que hoje se chama ensino fundamental. Outra, a falta de um projeto para
o ensino técnico, que num momento era visto como algo a ser separado da área de
Humanidades e em outro voltava a fazer parte de um ensino mais amplo. E a
terceira foi a perda de um sentido para o ensino médio – até hoje, ninguém sabe
exatamente qual deveria ser a principal função dos anos que antecedem a entrada
na universidade.
Outras reformas feitas na ditadura trouxeram consequências na
educação. Retiraram-se do currículo disciplinas como Filosofia e puseram outras
destinadas a ensinar assuntos relacionados à política de uma maneira menos
profunda, como a Educação Moral e Cívica e a Organização Social e Política do
Brasil (OSPB). “Era uma educação tecnicista. Faltava aquilo a que a filósofa
Hannah Arendt se referia como amor mundi, o amor à humanidade”, afirma Daniel
Medeiros, historiador e doutor em Educação pela UFPR. Segundo ele, criou-se uma
geração de “ignorantes políticos”. “Quando a democracia voltou, achávamos que
tudo estaria resolvido e nos surpreendemos quando descobrimos que também num
regime democrático havia pessoas em altos cargos que não estavam interessadas
em fazer o bem comum. Como víamos um mundo apenas de mocinhos e vilões, nos
tornamos ingênuos. Viramos fiscais do Sarney, imagine!”
Ordem? Que ordem?
Na área de segurança, os males causados pelo período pós-64 são
muitos. Há casos em que a origem do problema é controversa. Exemplo é a tese de
que presos políticos, deixados em cadeias junto com presos comuns, teriam
ensinado pessoas ligadas ao tráfico a se organizar, o que teria redundado na
criação de facções como o Comando Vermelho – a teoria é contestada; antes mesmo
desse convívio, havia criminosos que praticavam os assaltos a banco que lhes
teriam sido ensinados pelos guerrilheiros, por exemplo.
Em outros aspectos, a herança é mais visível. Cada vez que um policial
sai fardado às ruas, por exemplo, fica evidente a militarização da segurança. A
Polícia Militar foi usada pelo regime como parte de sua doutrina de segurança.
A derrocada do regime não pôs fim à militarização das polícias. “Na área da
segurança, o instrumento que era realmente definidor do regime de 1964 continua
praticamente intocado”, afirma Pedro Bodê, do Núcleo de Estudos da Violência da
UFPR. É claro que os exemplos mais radicais de interferência das Forças Armadas
no policiamento sumiram, como os Dois – órgãos de repressão política comandados
pelo Exército. Mas isso não impede que a militarização siga seu curso.
Bodê diz que as PMs assumem cada vez mais tarefas e passam a ter um
projeto para o país, o que classifica como “muito perigoso”. “Neste ano, Goiás
repassou o controle de dez escolas públicas para a PM por acreditar que havia
muita violência lá. Militares não servem para resolver nem mesmo problemas de
segurança entre civis, quanto mais para dar educação”, diz o professor.
Outra cicatriz deixada pelo regime na segurança foi a politização da
Justiça Militar, encarregada de julgar quem cometesse crimes dentro das Forças
Armadas e da PM. O direito a que os militares fossem julgados unicamente por
seus pares levou a uma espécie de acordo tácito em que ninguém punia ninguém,
criando um ciclo violência. Isso traz consequências até hoje – basta ver as
inúmeras acusações de truculências que pesam contra as polícias.
“Os excessos se devem à impunidade dos excessos anteriores”, diz Edson
Fachin, professor de Direito da UFPR. “O que se quer é a garantia de que a
ordem será feita dentro da liberdade. Mas, do jeito como as coisas estão postas
hoje, nem está se garantindo a liberdade nem se garante a ordem.”
A ordem a que Fachin se refere era um dos sonhos da Constituição que
sepultou o regime autoritário, em 1988. O documento registrou a vontade de um
povo não só de sair da ditadura como de garantir direitos. Como qualquer lei, é
imperfeita, e não resolveu todos os problemas criados a partir de 64 – mesmo
porque isso não se faz a canetadas. Vinte e seis anos depois, porém, continua
sendo a base da jovem democracia brasileira, e a garantia de que os erros de 50
anos atrás não se repitam nunca mais
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