quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Autismo e inclusão escolar


Autismo e inclusão escolar
Categoria: Psicopedagogia
Sandra Lamb

“Ser autista não significa não ser humano. Significa ser estranho. Significa que o que é normal para outras pessoas não é normal para mim, e o que é normal para mim não é normal para outros. De alguma forma eu estou terrivelmente mal equipado para sobreviver neste mundo, como um extraterrestre abandonado sem um manual de instruções.

Meu corpo é perfeito. Minha personalidade não está afetada. (…)

Concedam-me a dignidade de me encontrar segundo meus próprios termos, reconheçam que somos diferentes e que o meu modo de ser não é apenas uma versão defeituosa do de vocês. Reavaliem suas posições. Definam seus termos. Trabalhem comigo na construção de pontes entre nós.”

Estas palavras são de um autista chamado Jim Sinclair e foram citadas em Peeters (1998).

RESUMO

O sujeito com autismo no processo de inclusão escolar apresenta novos desafios para a educação, por se tratar de pessoas com um desenvolvimento global muito diferente do padrão. O presente trabalho expõe o processo histórico sobre como veio a se constituir o conceito e diagnóstico de autismo, quais seus sintomas e características aceitos atualmente: a tríade de desenvolvimento da interação social, comunicação e comportamento restrito e repetitivo. Assim, pessoas com autismo, expressam comportamentos “estranhos”, mas podem apresentar boa memória e capacidade cognitiva. Ao terem oportunidades de educação que considerem as suas necessidades, autistas conseguem realizar muitas tarefas, aprender, interagir e obter melhor qualidade de vida. Para isto, já existem alguns programas, tais como o ABA (Análise Aplicada do Comportamento), PECS (Sistema de Comunicação por Figuras) e TEACCH (Tratamento e Educação para Autistas e Crianças com Déficit relacionados com a Comunicação). Os princípios desenvolvidos por estes programas podem também ser utilizados em escolas regulares, promovendo a aprendizagem de conteúdos oferecidos por elas. O processo de inclusão no Brasil é recente, tendo sua origem na década de 70 e sendo fortalecido na década de 90. Conciliar o autismo com a educação da escola regular é ainda algo pontual, com a descrição de alguns casos específicos. Trata-se em muitas bibliografias sobre a inclusão de cegos, surdos, deficientes físicos e mentais; mas raramente trata-se de um transtorno invasivo do desenvolvimento. Faz-se, neste trabalho, uma análise sobre a inclusão de duas crianças autistas, dando oportunidade de expressão para seus pais e educadores a partir de questionários sobre o assunto. Observa-se muitos aspectos positivos já encaminhados nas escolas regulares destas crianças, mas isto não elimina alguns aspectos que precisam ser repensados. A busca de caminhos para uma inclusão de qualidade às pessoas com autismo é uma constante. Conseqüência desta prática é o desenvolvimento humano de muitas crianças, melhor qualidade de vida para pessoas com autismo e suas famílias, experiência profissional para os educadores e a perspectiva de uma sociedade mais solidária.

Palavras-chave: Autismo, Inclusão Escolar.
INTRODUÇÃO

Este trabalho foi desenvolvido para conclusão do curso de Especialização em Educação Inclusiva pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC e teve origem em um projeto de pesquisa.

A intenção da referida pesquisa era investigar a possibilidade de inclusão de crianças autistas no ensino fundamental de escolas regulares. Para alcançar esta meta, objetivou-se: (1) verificar se existem crianças autistas estudando no ensino fundamental em escolas regulares; (2) em caso afirmativo, eleger duas escolas regulares que atendam pessoas com este transtorno no município de Florianópolis; (3) verificar se houve necessidade de realizar adaptações para melhor atender aos autistas; (4) relacionar as características e diagnósticos dos alunos atendidos com o “espectrum” autista e as teorias sobre educação inclusiva.

No decorrer da pesquisa, foram selecionadas duas escolas particulares, nas quais estudam duas crianças desde que iniciaram sua escolarização no ensino fundamental. Uma das escolas localiza-se no bairro Santo Antônio de Lisboa e a outra no bairro Coqueiros, em Florianópolis. A seleção destas crianças também aconteceu porque realizo seus atendimentos, como psicopedagoga, e acompanho profissionalmente as escolas onde estudam no que se refere ao processo de inclusão. Uma destas escolas atendia, no final do ano de 2003, a uma menina de 10 anos que estava terminando a 3ª série. Em 2004, esta menina mudou de escola para uma outra mais próxima a sua casa, com mensalidade mais em conta e com proposta de inclusão. A outra, atende a um menino de 14 anos, iniciando a 7ª série. Portanto, no momento da pesquisa, ele estava finalizando a 6ª série.

Para alcançar os objetivos pretendidos, foram feitos questionários no final do ano letivo de 2003, com professores, diretores ou coordenadores pedagógicos e com os pais destas crianças. Alguns questionários foram retomados em 2004, pois uma das crianças mudou de escola. Estes questionários trazem respostas para auxiliar na análise da situação destes sujeitos na escola regular. O objetivo do questionário é visualizar aspectos da educação destas crianças que vão ao encontro das propostas teóricas de educação inclusiva.

Para que fosse pensada uma educação em escola regular para pessoas com este transtorno, foi imprescindível entender como se constituiu historicamente o sujeito que atualmente recebe diagnóstico de autista. Assim, inicialmente, apresenta-se a evolução histórica do conceito de transtorno autista e seus critérios diagnósticos. É feita uma revisão sobre as perspectivas de vida para sujeitos com autismo na sua infância, adolescência e maturidade. Em seguida, são expostos alguns programas de educação já desenvolvidos para promover educação à pessoas com este transtorno.

Posteriormente, trata-se sobre processos de inclusão – a origem desta abordagem educacional, seus pressupostos políticos e metodológicos. Faz-se uma análise dos contextos escolares que proporcionaram ao autista o seu direito de estudar em escola regular. Relata-se um pequeno histórico da vida pessoal e escolar das crianças selecionadas para fazerem parte deste estudo e da realidade de suas escolas. Pretende-se assim conhecer suas histórias de vida e o contexto escolar que as recebeu, pois acredita-se que isto muito influenciou para que tivessem a oportunidade de estudarem no ensino regular.

A partir dos questionários fez-se uma análise, na qual foi possível observar as posições dos educadores e dos pais envolvidos nos processos de inclusão das duas crianças. Deste questionário e estudo decorreu um processo de pensar sobre condições necessárias às características pessoais destas crianças para aquisição de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo e social. E então, fica o questionamento maior: a inclusão é possível?

Finalmente, são expostas algumas considerações sobre inclusão de pessoas com transtorno autista, considerando a realidade da educação oferecida às duas crianças que fizeram parte deste estudo.
1 ENTENDENDO O AUTISMO



A…s vezes

U…ma gente como a gente

T…em muito para aprender!

I…sto é verdade, mas

S…ó gente que vive com a gente,

M…uito pertinho da gente,

O…uve o que temos a ensinar!

(Kátia, participante de uma lista sobre autismo do Yahoo, na internet, 2003)

O transtorno autista é classificado como Transtorno Invasivo do Desenvolvimento conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM IV – 2002), pois atinge todas as áreas do comportamento humano: comunicação, interação social e interesses / atividades estereotipadas. Tendo em vista o “Continuum Autístico”, um espectro de sintomas apresentado por Lorna Wing em 1988 (Schwartzman & Assumpção Jr., 1995, p. 11), que define desde autistas altamente afetados até autistas de alto funcionamento, a partir do seu desempenho cognitivo; pode-se afirmar que o próprio transtorno é um universo. Por haver também pessoas com o mesmo diagnóstico, mas características tão diferentes e peculiares, o autista exige uma observação e uma intervenção bastante individual, realmente única.

Para melhor entender como se constituiu o atual diagnóstico de autismo, faz-se uma retrospectiva dos estudos sobre este transtorno, das hipóteses iniciais ao que se sabe atualmente. Em seguida, são apresentados os critérios diagnósticos atuais e a perspectiva de desenvolvimento do autista durante sua vida.

Procurando proporcionar uma melhor qualidade de vida para pessoas com este transtorno, foram desenvolvidos programas de educação e atendimento. Como estes programas têm origem em observações criteriosas e avaliações sistemáticas, suas descobertas e pressupostos são bastante necessários para se planejar uma forma de promover a educação destas pessoas em escolas regulares.
1.1 Retrospectiva dos estudos sobre o transtorno

Desde o início da história do autismo, em 1943, com os estudos de Leo Kanner, duas grandes vertentes procuram hipóteses que justifiquem seus sintomas: a teoria afetiva e a teoria cognitiva. A primeira procura compreender e dar significado a dificuldade que os autistas têm em reconhecer e expressar emoções. A segunda, centra-se na incapacidade que os autistas têm para desenvolver o faz-de-conta, o jogo simbólico, a criatividade e originalidade, o que altera a adaptação ao mundo.

A teoria afetiva parte do princípio de que aspectos ambientalistas, tais como pais “frios” e intelectualizados ou mães esquizofrênicas, pudessem explicar o autismo. A primeira pessoa a contribuir para esta hipótese foi Melanie Klein, ao descrever em 1930 o caso de uma criança que apresentava um quadro sugestivo de autismo, ainda que ela não tenha utilizado esta nomenclatura para diagnóstico. Recentemente, em 1990, Tustin propôs que “uma variedade de interações entre constituição e criação poderia ocasionar autismo” (Schwartzman & Assumpção Jr. et al, 1995, p.93). Mas, em 1994, já não falava mais em um autismo psicogênico e enfatizava a necessidade de se desenvolver uma técnica psicoterapêutica nova, própria para autistas (ibidem , p. 97 e 98).

A teoria cognitiva justifica o autismo a partir de uma desordem do desenvolvimento, causada por uma patologia no sistema nervoso central e enfatiza os déficits cognitivos destas pessoas.

“A Teoria Cognitiva para o autismo foi proposta a partir das pesquisas de Fritch (1984) e Baron-Cohen e colaboradores (1985). Essas pesquisas demonstram que as crianças autistas, mesmo as classificadas como de alto funcionamento, são incapazes de atribuir estados intencionais aos outros… Subjacente a essas pesquisas, estava a hipótese do autismo constituir prejuízo específico no mecanismo cognitivo necessário para representar estados mentais, ou mentalizar.” (SCHWARTZMAN & ASSUMPÇÃO JR. et al, 1995, p.83)

Atualmente, a teoria afetiva tem sido descartada em prol da teoria cognitiva, pois se acredita que um transtorno tão complexo como é o caso do autismo não poderia ter origem nas inter-relações que a pessoa estabelece com seu meio ou que outras pessoas estabeleçam com ela, ainda que houvesse uma predisposição para isto. Porém, quando o termo autismo surgiu, com Kanner, em 1943, a hipótese era de que sua causa estava relacionada com pais distantes e intelectualizados.

Leo Kanner, psiquiatra austríaco, residente nos Estados Unidos, foi o primeiro profissional a descrever um caso de autismo, em 1943. Mas já antes deste, tal como Melanie Klein, em 1903, de acordo com alguns poucos autores, encontravam-se registros sobre pessoas com comportamentos semelhantes aos descritos por Kanner.

“Desde a antigüidade, conhecem-se relatos de crianças ou adultos com comportamentos estranhos, que podem relacionar-se ao autismo. Mais claramente, ao longo dos séculos XVIII e XIX, e em relação às idéias sobre o papel da natureza, da educação e da cultura na definição da psicologia humana – estimuladas por filósofos como Locke e Rousseau – desenvolveu-se um interesse em conhecer casos de crianças com perturbações graves das capacidades de interação e contato afetivo.” (RIVIÈRE, 1995, p.273)

Kanner deu o nome de “Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo” ao quadro que ele identificou, caracterizando-o como “autismo extremo, obsessividade, estereotipias e ecolalia”. Este era o diagnóstico referente a pessoas que viviam um “alheamento” extremo, que não respondiam à estímulos externos, mas que mantinham uma relação considerada, de certa forma, “inteligente” com os objetos, sem que estes alterassem seu isolamento (Schwartzman & Assumpção Jr. et al, 1995). No decorrer de seu trabalho, Kanner deu a este quadro o nome de “Autismo Infantil Precoce”, em 1949. Em 1955, declarou acreditar que o autismo fosse uma psicose, uma bem estabelecida síndrome.

Antes de Kanner publicar um informe, em 1943; havia relatos de casos que indicavam as mesmas características observadas por este psiquiatra, mas recebiam nomes diversos como dementia precocíssima, dementia infantilis e esquizofrenia infantil. Este último – a esquizofrenia – ainda é muito comparado e aproxima-se do autismo no que se refere à conduta do sujeito. Isto porque tanto na esquizofrenia como no autismo, são observadas condutas na qual a pessoa parece não ter contato com a realidade.

Um ano após a descrição de autismo por Kanner, em 1944, Hans Asperger, desconhecendo o trabalho de Kanner, descreveu uma condição que denominou “psicopatia autística”. Como no caso do autismo, a Síndrome de Asperger também é caracterizada por déficit na sociabilidade, interesses repetitivos, déficit de linguagem e comunicação. A diferença entre autismo e Asperger, conforme Assumpção Jr. (1997, p.50), ocorreu a partir de um estudo de Lorna Wing, em 1981, com a publicação de 34 casos que apresentavam as características descritas por Asperger. Desde então, o interesse por este quadro cresceu e tornou-se fonte de muitas pesquisas.

A partir dos anos 60, o autismo passou a ser caracterizado por deficiências importantes no desenvolvimento simbólico e imaginativo. Identificou-se também que cerca de 70% dos casos acompanhava deficiência mental (Rivière, 1995). Desde então muitos estudos foram realizados e, em 1976, foi publicado o livro de Ritvo sobre o autismo (Gauderer, 1997, p.184). Este livro descreve o autismo como um problema de desenvolvimento e relacionado com déficits cognitivos. Nele, o autismo foi descrito a partir de características comportamentais representadas por distúrbios de percepção, de desenvolvimento, de relacionamento social, da fala e da linguagem e de motilidade (atitudes estranhas e bizarras). Ritvo já indicava que poderiam ocorrer doenças específicas associadas ao autismo e ressaltava que a “Síndrome Autística” seria decorrente de uma patologia no Sistema Nervoso Central.

Schwartzman & Assumpção Jr. et al, baseados no livro publicado por Rutter, em 1979, já definem o autismo como “uma síndrome comportamental de um quadro orgânico” (1995, p. 80).

Em 1988, Lorna Wing sugeriu a hipótese do autismo pertencer a um “continuum ou spectrum” de desordens autísticas, sendo o problema central para encaixá-lo neste continuum um prejuízo intrínseco no desenvolvimento da interação social recíproca, que pode acontecer isoladamente ou acompanhado por prejuízos em outras funções.

Em 1992, Uta Frith (Schwartzman & Assumpção Jr. et al, 1995, p.82) classificou o transtorno de Asperger como um tipo de autismo e defendeu que, mesmo variando de acordo com a idade e as habilidades específicas, as características básicas – alterações na socialização, comunicação e imaginação – estavam sempre presentes.

Em 1993, a Classificação Internacional de Doenças – 10ª versão (CID-10) enquadrou o autismo na categoria de “Transtorno Global do Desenvolvimento”; e, em 1994, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 4ª versão (DSM-IV) enquadrou o autismo no “Transtorno Invasivo do Desenvolvimento”, sendo, em ambos, representado por anormalidades qualitativas na interação social, padrões de comunicação e por repertório de interesses e atividades restritas, repetitivas e estereotipadas.

Atualmente o autismo é entendido como uma síndrome comportamental, um “transtorno invasivo do desenvolvimento”. Além disso, não se considera mais o autismo uma doença da afetividade, como ainda foi defendido por alguns psiquiatras e psicólogos do início do século XIX, que acreditavam que o autismo era causado por problemas afetivos entre mãe e filho e do isolamento completo, alheio ao mundo. Sabe-se que se trata de uma patologia com etiologias múltiplas e curso de um distúrbio de desenvolvimento que está qualitativamente alterado.

Entende-se atualmente que há aspectos da tríade que classifica o autismo – transtorno na interação social, na comunicação e nos padrões repetitivos e estereotipados de interesse – que podem se manifestar qualitativamente de diferentes formas, havendo o que chamamos de “continum autístico” ou “spectrum autista”.

“Esta idéia está relacionada à existência de alterações comportamentais que se apresentam em graus variados de tipos e severidade, podendo, muitas vezes, estar combinadas com outros prejuízos observados na criança.” (FACION, 2002, p.24)

Pesquisas recentes baseadas no DSM-III-R[1] indicaram que existem cerca de 10 autistas em cada 10.000 pessoas. Porém, se for considerada a definição educacional de autismo, de acordo com Peeters (1998), este número dobra para 20 em cada 10.000. Destas pessoas, há predominância no sexo masculino, sendo uma média de 3:1 ou 4:1 de meninos em relação a meninas. Uma curiosidade interessante é que geralmente os casos mais graves são identificados em menina.

Observa-se que o diagnóstico, tal como é definido atualmente, passou por modificações no decorrer de pouco mais de cinco décadas. Ainda existem muitos mitos sobre este transtorno invasivo e muito o que se pesquisar. Lucy Santos, mãe de uma pessoa com autismo, que ouviu muitas vezes algumas informações equivocadas sobre o diagnóstico do seu filho, disponibilizou um artigo denominado “Autismo, Mitos e verdades” no site http://www.especialmenteser.hpg.ig.com.br/artigos/artigo6.htm.

As pesquisas sobre o autismo continuam em todo o mundo, em várias áreas: neurologia, genética, alimentação (dietas)… Também na área da intervenção educacional ela é abrangente. Isto faz acreditar que é possível oferecer cada vez mais e melhores condições de saúde, de aprendizagem e de vida para pessoas com transtorno autista.
1.2 Para desvendar o mistério

Dentre os vários conceitos de autismo formulados pelos mais diferentes profissionais e no decorrer de muitos anos, há três definições que são as mais divulgadas e aceitas na área médica e educacional.

De acordo com Gauderer (1997, p.03), a primeira definição foi elaborada pelo “Board of Directors the National Society for Autistic Children”, atualmente denominada ASA, em 1978, e expõe que:

“O Autismo é uma inadequacidade do desenvolvimento que se manifesta de maneira grave por toda a vida. É incapacitante e aparece tipicamente nos três primeiros anos de vida. Acomete cerca de 20 entre cada 10 mil nascidos e é quatro vezes mais comum no sexo masculino do que no feminino. É encontrada em todo o mundo e em famílias de qualquer configuração racial, étnica e social.(…) Os sintomas são causados por disfunções físicas do cérebro, verificados pela anamnese ou presentes no exame ou entrevista com o indivíduo.”

Além da definição da ASA, também é muito utilizada a definição da Organização Mundial da Saúde exposta no CID-10[2], de 1991. Sobre a definição deste manual, Facion (2002, p.25) escreve que:

“… O autismo recebe a classificação F84-0, sendo considerado como um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, onde estariam presentes um padrão de desenvolvimento anormal e/ou comprometimento, manifestos antes dos 3 anos de idade. O funcionamento anormal de habilidades da criança estaria relacionado a três áreas: interação social, comunicação e comportamento restrito e repetitivo.”

No Brasil, o DSM-IV, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 4ª versão, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, em 1994, é o critério diagnóstico mais utilizado. De acordo com ele, para o autismo é necessário orientar-se nos seguintes tópicos:

1. Um total de pelo menos 6 itens dos Grupos 1, 2 e 3, incluindo no mínimo dois itens do grupo 1 e um item dos grupos 2 e 3.
2. Desajuste qualitativo na interação social manifestada por pelo menos dois dos itens abaixo:

* Dificuldade marcante na utilização de múltiplos comportamentos não verbais como por exemplo olhar olho-no-olho, expressão facial, postura do corpo e gesticulação para regular a interação social;
* Falha no desenvolvimento de relações apropriadas com seus semelhantes;
* Incapacidade de emocionar-se com expressões de felicidade em outras pessoas;
* Falta de reciprocidade social ou emotiva.

1. Desajuste qualitativo na comunicação manifestado por pelo menos um dos itens abaixo:

* Retardo ou falta total do desenvolvimento da linguagem (não acompanhada por qualquer tentativa compensatória como gesticulação ou mímica como modo alternativo de comunicação);
* Desajuste marcante na habilidade de iniciar ou sustentar uma conversação com outras pessoas, independente da dificuldade de linguagem;
* Uso de linguagem estereotipada ou repetitiva ou de linguagem peculiar;
* Falta generalizada de imaginação espontânea ou imitação de comportamentos sociais apropriados para o nível de desenvolvimento.

1. Padrões de comportamento restritos, repetitivos ou estereotipados manifestados por pelo menos um dos itens abaixo:

* Preocupação repetitiva com um ou mais padrões restritos ou estereotipados de interesse anormal em intensidade ou foco;
* Aparente aderência compulsiva a rotinas e rituais não funcionais;
* Maneirismos motores repetitivos e estereotipados (como, por exemplo, movimentos dos dedos ou mãos ou sacudir todo o corpo);
* Preocupação persistente com parte de objetos.

1. Desenvolvimento anormal ou desajustado antes do terceiro ano de vida, manifestado por atrasos ou desenvolvimento anormal no mínimo em uma das seguintes áreas: (1) integração social, linguagem utilizada para o desenvolvimento social; (2) linguagem como a utilizada na comunicação social ou (3) brincadeiras simbólicas ou imaginativas.
2. Não enquadra como Desordem Rett, Desordem integrada da Infância ou Síndrome de Asperger.

Pode-se observar que as áreas geralmente mais afetadas no autismo são as da comunicação, interação social, da percepção/ imaginação e padrões rígidos e repetitivos de atividade / comportamento.

O DSM-IV (1994) também traz critérios diagnósticos para o Transtorno de Asperger que, conforme exposto anteriormente, confunde-se muito com o autismo de alto funcionamento. Para o transtorno de Asperger, as orientações diagnósticas são:

A. Prejuízo qualitativo na interação social, manifestado por pelo menos dois dos seguintes quesitos:

1. prejuízo acentuado no uso de múltiplos comportamentos não-verbais, tais como contato visual direto, expressão facial, posturas corporais e gestos para regular a interação social.
2. fracasso para desenvolver relacionamentos apropriados ao nível de desenvolvimento com seus pares.
3. ausência de tentativa espontânea de compartilhar prazer, interesses ou realizações com outras pessoas (por exemplo, deixar de mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse a outras pessoas).
4. falta de reciprocidade social ou emocional.
5. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes quesitos:
6. insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesses, anormal em intensidade ou foco.
7. adesão aparentemente inflexível a rotinas e rituais específicos e não funcionais.
8. maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por exemplo, dar pancadinhas ou torcer as mãos ou os dedos, ou movimentos complexos de todo o corpo).
9. insistente preocupação com partes de objetos.
10. A perturbação causa prejuízo clinicamente significativo nas áreas social e ocupacional ou outras áreas importantes de funcionamento.
11. Não existe um atraso geral clinicamente significativo na linguagem (por exemplo, palavras isoladas são usadas aos 2 anos, frases comunicativas são usadas aos 3 anos).
12. Não existe um atraso clinicamente significativo no desenvolvimento cognitivo ou no desenvolvimento de habilidades de auto-ajuda apropriadas a idade, comportamento adaptativo (outro que não na interação social) e curiosidade acerca do ambiente na infância.
13. Não são satisfeitos os critérios para um outro Transtorno Invasivo do Desenvolvimento ou Esquizofrenia.

Considerando as características descritas neste manual sobre os transtornos autista e de Asperger, e sua abrangência no que se refere às diferentes características, é preciso desmistificar a idéia de que estas pessoas vivem num mundo à parte. Isto é senso comum bastante difundido. Mas pode-se observar que elas vivem neste mundo ainda que o entendam e atuem nele de forma completamente diferenciada.

A Síndrome de Asperger e o autismo ainda se confundem bastante em termos de diagnóstico. Alguns autores incluem a Síndrome de Asperger no espectro autístico, classificando-o como um autista de alto funcionamento ou autista “savant”.

A Síndrome de Savant, de acordo com Treffert & Wallace, manifesta-se em pessoas que possuem “ilhas de habilidade e brilhantismo, numa justaposição dissonante em relação à sua capacidade mental geral” (2002, p.82). Das pessoas que apresentam a Síndrome de Savant, pelo menos a metade delas é autista. Estas pessoas geralmente possuem grande sensibilidade olfativa, tátil e visual, conhecimentos de história, estatística, navegação, habilidade espacial, habilidades em música, arte, matemática… Seus conhecimentos estão relacionados com ótima capacidade de memória, mas de pouca compreensão. Um exemplo bastante conhecido de autista “savant” é o personagem principal do filme Rain Man, o Raymond Babbitt, interpretado por Dustin Hoffman. Raymond chamava a atenção por lembrar-se de todos os horários de vôos de todas as companhias aéreas e dos aviões que já tinham caído, bem como sua companhia e data do acidente. Também tinha capacidade de decorar toda a lista telefônica. Estas capacidades estão vinculadas a Síndrome de Savant.

Asperger escreveu sobre uma inteligência acima do padrão em pessoas que observou. De acordo com o que Sacks (1995, p.262) relata:

“…Asperger escreveu sobre uma ‘inteligência autista’ e a viu como uma inteligência praticamente intocada pela tradição e pela cultura – pouco convencional, não ortodoxa, estranhamente ‘pura’ e original, análoga à inteligência da verdadeira criatividade.”

De acordo com Schwartzman & Assumpção Jr. (1997, p.130), pessoas com Síndrome de Asperger possuem inteligência normal ou próxima da normal; há desenvolvimento de habilidades especiais, que podem se manifestar de forma repetitiva ou estereotipada; desenvolvimento de padrões gramaticais elaborados precocemente e com tendência ao pedantismo, problemas de compreensão e comunicação não-verbal. Estas seriam, então, as principais diferenças entre Autismo e Asperger. Oliver Sacks (1995, p.255) consegue explicar claramente a distinção possível entre eles:

“… Alguns jovens autistas… podem conseguir desenvolver uma linguagem satisfatória, alcançar um mínimo de habilidades sociais e mesmo conquistas altamente intelectuais; podem se tornar seres humanos autônomos, aptos para uma vida pelo menos aparentemente completa e normal – mesmo se encobrindo uma singularidade autista persistente e até profunda. Asperger tinha uma idéia mais clara que Kanner sobre essa possibilidade. Daí nos referimos hoje a esses indivíduos autistas com ‘altos desempenhos’ como portadores da síndrome de Asperger. A diferença definitiva talvez seja que as pessoas com a síndrome de Asperger podem nos falar de suas experiências, de seus sentimentos e estados interiores, ao passo que aquelas com autismo clássico não são capazes disso. Com o autismo clássico não há janelas e podemos fazer apenas inferências. Com a síndrome de Asperger, há uma consciência de si e ao menos algum poder de introspecção e relato.”

No que se refere à comunicação, é importante salientar que ela pode não estar totalmente ausente e que há alternativas diferentes para suprir este déficit. Há casos em que existe fala, mas não necessariamente uma fala com intencionalidade comunicativa. Alguns autistas conseguem falar muito bem, utilizando bom vocabulário e formulando muito bem suas frases, mas têm dificuldades em mudar de assunto ou possuem uma fala repetitiva – quase sempre mantendo o mesmo assunto. Em outros casos, a pessoa autista pode nunca chegar a falar, necessitando que alguém lhe ensine a comunicar-se a partir de outros meios (gestos, cartões, palavras escritas, por exemplo). Uma característica da fala de autistas é a ecolalia, a repetição daquilo que ouviram. Esta ecolalia pode ser imediata, quando repetem a fala de alguém logo após ouvi-la ou acontecer posteriormente, inclusive em contexto e ambiente bastante diferente do local onde ouviram aquilo que repetem.

Infere-se no senso comum que o autista nunca interage ou que algumas pessoas foram diagnosticadas de forma errônea porque se aproximam de outras pessoas, até as abraçam e beijam. A interação social pode ser classificada a partir de três características: (a) isolado – quando o sujeito não apresenta nenhuma iniciativa e nenhuma resposta para os atos sociais; (b) passivo – o sujeito responde, ainda que de maneira estranha, à interação e aos atos sociais que lhe são oferecidos e; (c) ativo, mas bizarro – quando o sujeito, além de responder, toma iniciativa para interagir com o outro, porém de maneira considerada “estranha” (Cleonice Bosa, 1999 – IV Fórum de Autismo e Cognição – informação verbal).

A percepção e a capacidade de imaginação também estão afetados no autismo. Geralmente o autista se limita aos detalhes dos objetos e das tarefas, não abstraindo seu conceito genérico. Imaginar, “fazer de conta”, para o autista é praticamente impossível, pois não tem a capacidade de entender que uma folha de papel, por exemplo, é o local onde se escreve e que esta mesma folha de repente pode se transformar num “avião”, pois não tem asas, não voa, não faz barulho, não carrega passageiros e é pequena. Assim também ele é com as pessoas: a maioria dos autistas tem extrema dificuldade em realizar “teoria da mente”. Para fazer isso a pessoa tem que ser capaz de pensar com a sua mente o que a mente de uma outra pessoa está pensando ou sentindo a partir de “sinais” (por exemplo, uma mãe olhando um filho numa peça de teatro e chorando). No caso, a pessoa teria que ser capaz de deduzir que esta mãe está emocionada pela atuação do filho na peça. Um autista geralmente não consegue fazer isso. Para ele, o choro pode não passar de “algo molhado”. Alguns autistas conseguem fazer jogo simbólico, mas raramente se colocando na brincadeira, representando o papel de alguém, como da mamãe e do papai, por exemplo.

Quanto aos padrões rígidos e repetitivos, estes são observados na necessidade que o autista tem de manter rotinas (alguns conseguindo organizar sua própria rotina), coisas em seus lugares, na realização de movimentos estereotipados e de alguns rituais. Balançar coisas, o próprio corpo, brincar com partes de objetos são movimentos estereotipados muito freqüentes nos autistas. Estes padrões rígidos também se observam algumas vezes na fala, na necessidade de seguir sempre o mesmo caminho, na realização de desenhos sempre iguais, no uso das mesmas roupas… Enfim, em uma série de aspectos da vida de autistas observa-se a necessidade que eles têm de manter tudo da forma como consideraram que deveria ser desde o início ou assim lhe ensinaram pela primeira vez.

Tanto no CID-10 como no DSM-IV, o autismo está classificado na categoria de “desordens agudas do desenvolvimento”. De acordo com Peeters (1998, p.03):

“Se estas pessoas padecem de uma combinação de dificuldades com o desenvolvimento da comunicação, convívio social, imaginação e, o mais importante, de dificuldades específicas de entender o que ouvem e vêem, o termo autismo e seu significado limitado de “voltado para si mesmo” ou “indiferente” não é a melhor definição”.

O autismo, de acordo com este ponto de vista, é muito mais que “viver num mundo à parte”. É estar vivendo neste e este mundo, mas vivê-lo e entendê-lo de maneira diferente. Para tanto, em termos educacionais, faz-se necessário proporcionar a estas pessoas uma maneira de entender aquilo que vivem e o que lhes é solicitado fazer, uma vez que são seres pertencentes a esta sociedade.

Conforme Peeters (1998), a maioria dos autistas tem deficiência mental severa ou moderada, sendo que cerca de 60% tem QI menor que 50. Já Schwartzman E Assumpção Jr. (1995) expressam que cerca de 70-85% apresentam retardo mental, mesmo que existam aqueles que possuem nível de inteligência acima da média. A deficiência mental é classificada de acordo com o nível de QI: (a) deficiência mental branda (nível de QI entre 67 e 52), (b) moderada (QI entre 51 e 36), (c) severa (QI entre 35 e 20) e (d) deficiência mental profunda (QI igual ou menor que 19).

Além de deficiência mental, muitas outras síndromes e patologias podem estar associadas ao autismo, como é o caso de deficiência auditiva, distrofia muscular, epilepsia, Hipomelanose de Ito, Síndrome de Down, de Rett, de Williams, de Tourette, entre outras.[3]

Um fator muito pouco citado claramente são os momentos de “crises” que os autistas apresentam. Em algumas bibliografias encontramos o termo “alteração de conduta e agressividade”. Temple Grandin (1999), em sua autobiografia, conta sobre muitos momentos de crise, nos quais batia, mordia ou arranhava a pessoa mais próxima dela. A crise, conforme Soni Lewis (IV Fórum sobre Autismo e Cognição, 1999 – informação verbal) caracteriza-se por ser súbita, rápida e agressiva. Isto não significa que o autista é uma pessoa agressiva, mas os momentos de crise geralmente o são. A Dra. Sônia Göergen (IV Fórum sobre Autismo e Cognição, 1999 – informação verbal) explica que estas crises são ocasionadas porque a entrada de estímulos, seu processamento no sistema nervoso central e sua exteriorização – sua saída – ocorre nos autistas de maneira diferente que nas outras pessoas. Soni complementa com o fato de que não entender uma solicitação ou situação, não conseguir comunicar algo, mudanças, haver muitos estímulos presentes, entre outros fatores, podem desencadear uma crise.

Com o atendimento educacional adequado, aquele que considera as necessidades educacionais de pessoas com autismo, percebe-se um bom desenvolvimento destas pessoas. Assim, apesar de as características para o diagnóstico do transtorno serem bastante ruins, pois se observa a interferência do transtorno em todas as áreas do desenvolvimento, seu prognóstico não fica definido.

Pessoas com autismo, antes de serem autistas, são pessoas. E não é um diagnóstico que pode pré-definir o futuro delas.

Da Ros (2002) fez um estudo sobre Reuven Feuerstein, sobre a “Teoria da Aprendizagem Mediada”, em que o conceito de “modificabilidade” destaca-se. Conforme este conceito, é possível, com mediações e interações que a pessoa estabeleça com as demais e com o mundo, a partir de oportunidades que lhe são oferecidas; proporcionar a ela desenvolvimento cognitivo e social. Assim, ela afirma que a teoria da modificabilidade choca-se com a premissa de que os cromossomos têm a última palavra no que se refere ao desenvolvimento humano, que este pode ser modificado a partir das mediações e interações.

“A teoria e a metodologia do trabalho de Feuerstein baseiam-se no fato de não se poder, nunca, prever limites para o desenvolvimento , nem classificar pessoas”. (DA ROS, 2002, p. 10)

Tendo estes aspectos em conta, mesmo em casos de autismo severo, não se pode pressupor o quanto seu desenvolvimento será possível. Oportunidades, estudos, observações e mediações que visem a interação com estas pessoas podem proporcionar-lhes uma nova visão de mundo e de pessoa; bem como a visão que a sociedade tem destas pessoas tão privadas de maior convívio social.

É importante lembrar que cada autista é diferente de outro. Assim como os seres humanos ditos normais são diferentes uns dos outros, os autistas também o são.
1.3 Perspectivas de vida

Muitas pessoas perguntam o que acontecerá com o autista quando ele for adulto. A resposta é que ele continuará sendo autista, com todas as suas necessidades especiais, suas habilidades e seu transtorno de desenvolvimento afetando sua interação social, comunicação e imaginação; mesmo que sua forma de expressão se modifique.

Quando uma criança autista nasce, ninguém consegue imaginar que ela é autista, como no caso da Síndrome de Down, nem mesmo os médicos. Quando a criança possui poucos meses de vida e os pais percebem alguns pequenos sinais como, por exemplo, choro compulsivo sem motivo aparente, não erguer os braços quando seus pais vão pegá-la no colo, rejeição a certos alimentos e pouco contato olho a olho, começa a surgir a sensação de que algo está errado, está diferente.

“Embora as primeiras manifestações do autismo comecem sempre antes dos três anos e em quatro de cada cinco casos desde o nascimento, as mesmas costumam ser pouco claras no primeiro ano. São muito raros os diagnósticos de autismo em bebês menores de 12 meses. Os sintomas dessa etapa costumam ser insidiosos e obscuros e provocam nos pais sentimentos inconscientes de inquietude e temor, que, raras vezes, são formulados explicitamente e não costumam ser traduzidos em uma atitude eficaz de busca de ajuda”.(RIVIÈRE, 1995, p.278)

Atualmente se fala em “diagnóstico precoce” de autismo. Ainda assim, dificilmente este diagnóstico é feito durante o primeiro ano de vida. Segundo o Dr. Ricardo Halpern (IV Fórum sobre Autismo e Cognição, 1999 – informação verbal), os profissionais precisam “confiar e aguçar a sua capacidade clínica” no que se refere ao diagnóstico de autismo, pois não há marcadores biológicos precisos e nem exames complementares que possam comprovar tal diagnóstico. Resumindo, o atendimento psicopedagógico ao autista raramente acontece antes dos 4 anos. Já o atendimento de fonoaudiologia costuma acontecer um pouco antes, em média aos 3 anos, quando os pais se preocupam com o fato da criança não falar ou ter parado de falar.

As primeiras alterações de conduta geralmente acompanhadas de atrasos motores, comunicativos e da ação sobre os objetos são mais observados entre os 2 e 3 anos. Nesta faixa etária as crianças com desenvolvimento normal progridem rapidamente na aquisição da linguagem, na integração social e no desenvolvimento do simbolismo. Autistas nesta idade, quando há desenvolvimento da linguagem, esta é ecolálica e sem funcionalidade, não constituindo meio de comunicação. Em alguns casos, desenvolvem uma linguagem pouco funcional, mas que pode ser regressiva à medida que o quadro geral de autismo fica mais saliente. Sua dificuldade de integração social fica visível, pois não demostra interesse nas outras pessoas e em pessoas de sua faixa etária, muitas vezes “brinca” sozinho e apenas com objetos. As condutas simbólicas (imitação diferida, jogo de “faz de conta”, troca de papéis em brincadeiras, etc) não acontecem nem com outras crianças ou pessoas adultas e nem mesmo enquanto brinca sozinho. Também os movimentos estereotipados passam a ser mais visíveis, algumas vezes sendo bizarros e automutiladores[4].

Com o acompanhamento educacional e os tratamentos adequados o desenvolvimento do autista é visivelmente positivo entre os 5 anos e a adolescência, ainda que muito lento. Porém, o grau de evolução de cada um dependerá muito do seu quadro geral, suas habilidades e possibilidades; do grau de acompanhamento e das atitudes da família; bem como do próprio serviço educacional e terapêutico.

A adolescência e a juventude são fases de extrema importância e de muita atenção e cuidado por parte daqueles que convivem com o autista. Nesta fase pode haver uma evolução favorável, com uma compreensão melhor do mundo social e de condutas e habilidades funcionais; ou o surgimento de novas dificuldades, inclusive de convulsões e de ciclos depressivos. Raríssimos autistas conseguem desenvolver uma sexualidade genital e entender as relações entre homens e mulheres. Alguns autistas mais capazes e com um grau de funcionamento maior tornam-se conscientes de suas diferenças em relação às outras pessoas, o que pode afetá-los seriamente.

Quando adultos a maioria deles continua necessitando de acompanhamento e de um ambiente seguro e controlável. Conforme o Dr. Ricardo Halpern (IV Fórum sobre Autismo e Cognição, 1999 – informação verbal), nos últimos 20 anos uma meta-análise mostrou que cerca de 20% de adultos autistas conseguem ser relativamente independentes. Ainda assim, pouquíssimos conseguem trabalhar e são considerados “pessoas estranhas, sem flexibilidade comunicativa e penetração interpessoal no mundo dos adultos normais” (Rivière, 1995, p.280)

Alguns autistas adultos, de alto funcionamento, estudaram em escolas regulares, conseguiram expor e publicar esta experiência, entre outras da sua vida. São pessoas que podem manifestar aquilo que foi importante para aprenderem, o que foi irrelevante, o que foi difícil, fácil…

Os relatos mais divulgados e conhecidos no mundo são de Temple Grandin. Esta mulher autista foi assim diagnosticada quando criança. Ela fez doutorado e projeta máquinas para o abate de gado em frigoríficos, com a intenção de que a morte destes animais seja o menos dolorida possível. Independente de seu sucesso profissional, ela divulga em todas as partes do mundo o olhar de um autista para este estranho mundo do qual faz parte. Em seu livro “Uma menina estranha – autobiografia de uma autista” (1999) ela faz um relato de sua vida. Nas suas histórias explica como um autista sente, enxerga, escuta e se expressa. Também relata as dificuldades que encontra. Desta forma, traz importantes dicas sobre o transtorno autista, o manejo e sua forma de aprendizagem. Outro artigo importante e conhecido descreve aquilo que uma pessoa com transtorno autista pediria, para que se possa estabelecer uma relação social de melhor qualidade entre pessoas com autismo e pessoas com desenvolvimento padrão. Este artigo chama-se “O que nos pediria um autista” e foi disponiblizado na internet, em muitos livros sobre autismo e divulgado em cursos sobre o assunto.

Estes registros de pessoas autistas permitem ao profissional e às escolas olharem para as estratégias de ensino que desenvolvem a partir do olhar do autista. São, portanto, relatos extremamente importantes como referência para uma prática efetiva de compreensão do ser autista e de aprendizagem. Tais relatos também reforçam o fato de que, ao receberem atendimentos adequados, ao terem oportunidades distintas e estarem inseridos num contexto de boas perspectivas, os sujeitos com transtorno autista têm grandes chances de um processo de modificabilidade (Da Ros, 2002). Assim, é importante lembrar que o diagnóstico não determina o prognóstico e que as relações e interações oferecidas aos sujeitos podem mudar o seu percurso no decorrer de sua vida.
1.4 Para uma vida melhor

A fim de proporcionar uma vida melhor para pessoas com transtorno autista, já existem divulgados e aplicados em todo o mundo alguns programas e métodos de ensino. No Brasil, existem três bastante divulgados: ABA, PECs e TEACCH. Vejamos cada um deles.

PECS (Picture Exchange Communication System) – Sistema de Comunicação por Figuras. O PECS surgiu como um sistema alternativo de comunicação.

“O PECS foi desenvolvido para ajudar crianças e adultos autistas e com outros distúrbios de desenvolvimento a adquirir habilidades de comunicação. O sistema é utilizado primeiramente com indivíduos que não se comunicam ou que possuem comunicação, mas a utilizam com baixa eficiência”. (DE MELLO, 2001, p.31)

O início deste método consiste em encontrar coisas que atraem as crianças, coisas que as crianças querem ou gostem muito. Estas coisas podem ser alimentos, bebidas, brinquedos, livros, ou qualquer coisa que a criança constantemente busque e goste de ter. Depois que o adulto saiba o que é que a criança quer, uma vez que já realizou esta observação, então uma imagem (fotografia, colorida, ou desenho linear em preto e branco), é feito deste objeto. Para conseguir, então, este objeto de seu desejo, a criança é ensinada constantemente a mostrar a imagem correspondente ao objeto. Há relatos de que, com pouco tempo de várias interações, a criança tem a iniciativa de começar a interagir, tomando a imagem e entregando ao adulto de sua referência.

Considerando que os autistas têm dificuldades de comunicação, de interação e conseguem aprender melhor com apoio visual, este pode ser um método bastante utilizado e indicado. O site http://www.autistas.org/pecs.htm traz algumas sugestões de imagens que podem ser utilizadas em diferentes momentos e situações. Mas, como é expresso no site, também se pode improvisar e criar PECS com recortes de embalagens de produtos que a pessoa goste (itens preferidos, comidas, bebidas, etc.), fotos dos pais, irmãos, parentes, amigos, professores, etc. Este método pode ser bastante eficiente no desenvolvimento da comunicação de autistas não-verbais (que não falam).

ABA (Applied Behavior Analysis) – Análise Aplicada do Comportamento. Este método consiste no estudo do comportamento para aumentar, diminuir, criar, eliminar ou melhorar comportamentos. Assim, é um método que varia muito, de acordo com os comportamentos de cada pessoa. Requer um estudo bastante individualizado, tentativas para se alcançar o objetivo e muita observação e descrição.

“O tratamento comportamental analítico do autismo visa ensinar à criança habilidades que ela não possui, através da introdução destas habilidades por etapas. Cada habilidade é ensinada, em geral, em esquema individual, inicialmente apresentando-a associada a uma indicação ou instrução. (…) A resposta adequada da criança tem como conseqüência a ocorrência de algo agradável para ela, o que na prática é recompensa. Quando a recompensa é utilizada de forma consistente, a criança tende a repetir a mesma resposta. O primeiro ponto importante é tornar o aprendizado agradável para a criança. O segundo ponto é ensinar a criança a identificar os diferentes estímulos.” (DE MELLO, 2001, p.29)

Os princípios fundamentais do ABA são:

* Criar situações de acerto, isto é, iniciar com tarefas que a pessoa consegue realizar, oferecer apoio em caso de dificuldade, para ir avançando e retirando o apoio aos poucos. Sempre procurando garantir a resposta correta.
* Fornecer instruções claras e concretas, oferecer apoio e material compatível.
* Sempre reforçar a conduta correta.
* Ignorar, corrigir ou redirecionar a conduta incorreta.
* Registrar sempre.

TEACCH (Treatment and Education of Autistic and related Communication Handicapped Children) – Tratamento e Educação para Autistas e Crianças com Déficits relacionados com a Comunicação. Teve origem em 1966 nos Estados Unidos, na Unidade de Psiquiatria da Escola de Medicina da Universidade da Carolina do Norte pelo Dr. Eric Shopler.

De acordo com Lewis & De Leon (1995), Shopler e seu grupo de pesquisadores realizaram um projeto de pesquisa que envolvia a observação criteriosa dos comportamentos de crianças autistas em diferentes situações e perante diferentes estímulos. Esta pesquisa mostrou que (a) autistas respondem melhor frente a propostas estruturadas de trabalho que em situações livres; (b) a resposta a estímulos visuais é mais consistente que a estímulos verbais; (c) distúrbios de conduta podem ser modificados positivamente e diminuir quando o autista consegue se expressar e entender o solicitado. Desde a pesquisa realizada na Carolina do Norte, o programa tem sido desenvolvido como programa de educação e divulgado em todas as partes do mundo. Também já existem, desenvolvidos a partir deste programa, avaliações para diagnóstico de autismo, currículos educacionais, treinamentos profissionais, etc.

Partindo de princípios específicos expostos a partir da pesquisa de Schopler, a prática educacional de acordo com o Programa TEACCH, deve ocorrer dentro de um espaço bem estruturado e a partir de uma rotina previsível. Isto para que problemas comportamentais sejam minimizados e para que o estudante possa entender o que lhe é solicitado. Com este objetivo, o trabalho é organizado e pensado tendo como base cinco níveis de estruturas educacionais: (1) estrutura física, (2) programação diária, (3)sistemas de trabalho, (4) rotina e (5) apoio visual.

Independente de metodologias que sejam utilizadas e dos pressupostos que se seguem, é importante salientar que, para proporcionar uma aprendizagem realmente válida e importante para o autista, o profissional deve atentar para a organização e as condições estimuladoras do ambiente; para as instruções dadas a criança – que devem ser sempre muito claras e objetivas – e aos sinais que ela apresenta durante todo o tempo em que está em atendimento, até mesmo nos momentos considerados mais livres; os auxílios que lhe são proporcionados a fim de que realize tudo que lhe é solicitado com o máximo possível de independência e para as motivações utilizadas para a promoção de sua aprendizagem. O autista é uma verdadeira “caixinha de surpresas” e observá-lo sempre com todo o respeito e cuidado é uma das principais tarefas de todo o profissional que trabalha com sujeitos que apresentam este tipo de transtorno.

Educadores da Divisão TEACCH, da Universidade da Carolina do Norte, que trabalham diariamente com vários autistas, expõem:

“Nosso trabalho, como educadores de pessoas com autismo, é fundamentalmente ver o mundo através de seus olhos e usar esta perspectiva para ensiná-los a funcionar inseridos em nossa cultura, da forma mais independente possível. Embora não possamos curar os déficits cognitivos subjacentes ao autismo, é através do seu entendimento das coisas que poderemos planejar programas educacionais eficientes, com o objetivo de vencer o desafio de um distúrbio do desenvolvimento tão singular, como é o autismo.” (MESIBOV & SHEA, 1996)

Faz-se necessária, sem dúvida, uma abordagem que considere a forma de entender do autista. Caso contrário, seria impossível para este indivíduo realizar qualquer tipo de solicitação, de compreensão e de raciocínio. Ajudá-los a se adaptar e conviver bem numa sociedade, da qual não conseguem entender regras sociais básicas. é conseqüência de uma intervenção que o considere peculiar e com necessidades diferenciadas.

Somente assim, pensando no sujeito autista como um ser com necessidades especiais e considerando estas necessidades, as pessoas ditas normais e com boas capacidades de pensamento, estão o respeitando verdadeiramente. Neste sentido é que a maior adaptação em relação a estes seres tão complexos precisa acontecer inicialmente naqueles que são considerados como seres normais pela sociedade.
2 INCLUSÃO

“Não há nenhuma estrada de realeza para a inclusão, porém há um consenso de que ela é um processo e uma jornada, e não um destino…” (MITTLER, 2003, p.236)

A inclusão – educacional ou social – apresenta-se como um fator social em expansão e fonte de muitos estudos. Tratar-se-á da inclusão escolar, que é ainda inovadora e na prática uma tentativa de atender a todos, considerando a diversidade de pessoas que isto acarreta no espaço da escola regular. Considerando esta diversidade de pessoas, também expande as metodologias de ensino, aprendizagem, abordagem e avaliação.

O Jornal “O Estado de São Paulo” do dia 02 de setembro de 2003 publicou uma pequena reportagem sobre inclusão, na qual apresentou alguns dados do Censo Escolar de 2003, divulgado no dia anterior pelo Ministério da Educação (MEC). Esta reportagem mostrava que, de cada 100 estudantes com deficiências, 29 estavam matriculados em classes comuns. O aumento da chamada educação inclusiva em relação ao ano anterior foi de 30,6%. Em 1998, quando o censo analisou pela primeira vez a situação de alunos especiais (com deficiências visual, auditiva, física, mental ou superdotados), só 15% estava em escolas regulares. Segundo o último levantamento, há 358.987 crianças com alguma dessas características freqüentando escolas, 144.583 delas em classes regulares do ensino básico. Atualmente, 44.490 do 1,5 milhão de professores do ensino fundamental trabalham com alunos especiais. Segundo o coordenador da Secretaria de Educação Especial do MEC, José Rafael Miranda, estados e municípios têm capacitado professores para a inclusão.

Mesmo com este aumento de atendimentos para pessoas com necessidades educativas especiais em escolas regulares, as produções teóricas sobre o assunto são escassas. O que geralmente se encontra são publicações de relatos de experiências que obtiveram sucesso no processo de inclusão. A literatura e a produção acadêmica existente sobre inclusão raramente se refere aos transtornos do desenvolvimento. Assim, é quase impossível encontrar obras que tratem sobre autismo e inclusão. Abordar este assunto, então, é algo inovador, recente e que pode originar novas pesquisas a fim de melhorar a qualidade da educação e da vida destas pessoas e de outras que convivem com elas.

A partir de uma necessidade que se constituiu na história da educação – a de educar pessoas diferentes daquelas consideradas padrão – leis e metodologias passaram a ser elaboradas. Estas leis e metodologias atualmente existentes, e que visam a promover a inclusão, são defrontadas com a situação prática real da educação que temos nas escolas regulares.

Algumas oportunidades de educação inclusiva são observadas e desenvolvidas, inclusive para pessoas com transtorno autista. Muitas destas pessoas conseguem aprender, apresentam boa memória, são detalhistas no que fazem, conseguem se comunicar. Porém, ainda são desprovidas da oportunidade de estudarem em escolas regulares ao apresentarem comportamentos diferentes do padrão e a escola e seus profissionais não saberem como manejá-los.

Tendo em vista a possibilidade da escola oferecer aos autistas aquilo que é um de seus maiores objetivos – o conhecimento científico – é preciso pensar e desenvolver formas de promovê-lo.
2.1 O que se tem e o que se quer

“A rua de acesso à inclusão não tem um fim porque ela é, em sua essência, mais um processo do que um destino.” (MITTLER, 2003, p.36)

Para que se possa entender melhor o processo que hoje é denominado de inclusão escolar, faz-se necessário um estudo histórico sobre o tema, buscando entender sua origem e seus pressupostos atuais. A termo inclusão escolar originou-se do que foi chamado, após a segunda metade do século XX, de integração escolar.

“A partir das décadas de 60/70 e 80, com o avanço científico e tecnológico, certas crenças e preconceitos em relação ao diferente e ao deficiente começam a ser desmistificados, amparados em movimentos sociais, de associações de pais e portadores de deficiência e de estudos técnicos. Observamos o desenvolver de princípios como a normalização (que visa a romper com atitudes negativas em torno das pessoas deficientes) e a integração (que visa a inserir o aluno com deficiência nos serviços educacionais da comunidade).” (FACION, 2002, p.19).

A ação em educação especial no Brasil iniciou em 1854, conforme Silveira Bueno (1993), com a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atual Instituto Benjamin Constant. Logo em seguida, em 1857, também foi instalado o Instituto dos Surdos-mudos, atual Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES. Ambos foram instalados no Rio de Janeiro, não tanto como uma necessidade social da época, mas por interesses de pessoas próximas ao poder. Somente cerca de 20 anos mais tarde, em 1874, iniciou-se o tratamento de deficientes mentais, na Bahia. Foi após a proclamação da República que a educação especial, lentamente, foi conquistando espaço.

Quanto à escolarização de crianças com transtornos mentais e/ou portadoras de deficiências, Facion (2002) cita como principais acontecimentos a criação da primeira “Escola de Creanças Anormaes”, em 1904, no Hospício Nacional de Alienados no Rio de Janeiro. Em 1921, Franco da Rocha criou, junto ao Hospital de Juqueri (São Paulo) o primeiro serviço de menores, que se tornou o primeiro núcleo de classes especiais do Estado. Silveira Bueno (1993) expõe que este espaço chamava-se “Pavilhão de Menores do Hospital do Juqueri”. Em 1929, Ulisses Pernambuco fundou em Recife a primeira escola para deficientes mentais em Recife. Tanto Facion (2002) como Silveira Bueno (1993) conferem a Helena Antipoff grande influência no desenvolvimento da formação de profissionais e da educação de pessoas deficientes mentais, com a criação, em 1932, da Sociedade Pestalozzi, em Minas Gerais.

“Após a Segunda Guerra Mundial, a educação especial brasileira distinguiu-se pela ampliação e proliferação de entidades privadas, ao lado do aumento da população atendida pela rede pública, que foi se configurando, cada vez mais, como uma ação em nível nacional, quer pela criação de federações estaduais e nacionais de entidades privadas, quer pelo surgimento dos primeiros Serviços de Educação Especial nas Secretarias Estaduais de Educação e das campanhas nacionais de educação de deficientes, ligadas ao Ministério da Educação e Cultura.” (SILVEIRA BUENO, 1993, p.94).

Neste contexto, foi de grande importância e influência a fundação, em 1954, da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) do Rio de Janeiro. Na década de 80 a Federação Nacional das APAEs já congregava mais de duzentas entidades espalhadas pelo Brasil. Esta Federação e as Sociedades Pestalozzi, que também se espalharam pelo país e, em 1971, criaram a Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi do Brasil; exerceram influência considerável nas políticas da educação especial. Inicialmente, a intenção era ampliar o número de casos atendidos nas escolas especiais.

A partir de uma análise sócio-histórica, percebe-se que a criação e expansão da educação especial, apesar de suas boas intenções e sua importância no que tange ao atendimento de pessoas que necessitam de uma abordagem educativa diferente das que eram – e muitas vezes ainda são – oferecidas pelas escolas regulares; legitimou a segregação de alunos considerados diferentes.

Muitos foram os caminhos seguidos pela educação especial em nosso país, principalmente aqueles que perpassam a área da saúde, da educação e da organização política.

O conceito de inclusão escolar teve sua origem na idéia de integração das pessoas com deficiências (visuais, auditivas, mentais e físicas) aos sistemas regulares de ensino, ou seja, proporcionar a estas pessoas acesso às classes comuns das escolas regulares e oportunidades de educação nestes espaços. Masini (2003, p.03) expressa:

“O movimento de inclusão no Brasil surgiu de diversas influências: da luta européia de oposição à exclusão da pessoa deficiente mental do convívio social, que deu origem à Liga Internacional pela Inclusão; da Conferência Internacional realizada em Salamanca, em 1994, sobre a “educação para todos”…; da proposta integracionista dos Estados Unidos da América, já na década de 1950, quando, experimentalmente, em São Paulo, no Instituto de Educação Caetano de Campos, teve início a primeira sala de recursos para deficientes visuais estudarem em classes comuns”.

O conceito de inclusão, conforme Masini (ibidem) é originado do verbo incluir que significa conter em, compreender, fazer parte ou participar de algo; expandiu e abrange a inclusão não somente de pessoas com necessidades educativas especiais, mas de todos, independente de suas condições físicas, mentais, sociais, raciais, culturais, etc.

Atualmente, a educação de alunos com necessidades educativas especiais deve acontecer preferencialmente nas escolas regulares, conforme a Resolução nº 2, do Conselho Nacional de Educação, Câmara da Educação Básica, de setembro de 2001. Assim, a educação especial enquadra-se no âmbito da educação básica e tem como base político-filosófica a Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial, elaborada e divulgada a partir da Conferência Mundial de Educação Especial realizada na Espanha, em junho de 1994.

Já desde 1989, com a lei nº 7.853, fica decretado que recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta constitui crime punível, com reclusão de um a quatro anos e multa.

De acordo com o artigo 2º da Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica, 2001:

“Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizar-se para atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos.”

O documento do Conselho Nacional de Educação, que legitima a política de educação inclusiva no Brasil, proporciona interpretações múltiplas sobre o que é inclusão em educação, uma vez que considera diferentes modalidades de atendimento educacional. Da forma como é apresentado, permite que se entenda como exclusão – o contrário de inclusão – apenas casos de crianças que não estejam sendo atendidas em ambiente educacional institucionalizado.

Além disso, percebe-se nesta legislação a influência neoliberal, que está contagiando a política e a economia mundial. As escolas buscam por transformações e formas de proporcionar desenvolvimento, conhecimento e rendimento escolar para seus alunos; realiza aprovações, contribuindo para a diminuição da repetência e evasão escolar. Por outro lado, parece não haver mudanças qualitativas e, quando o aluno termina sua escolarização, não consegue manter-se profissionalmente, aumentando as situações de exclusão social. Almeida expressa que esta prática “não está assegurando aos alunos uma aprendizagem efetiva…, mas contribuindo para preservar a situação de exclusão vivida pelos segmentos menos favorecidos economicamente” (2002, p.64).

A partir deste ponto de vista, o que tem modificado na prática educacional de crianças com necessidades educativas especiais é o foco do discurso político e não necessariamente uma verdadeira transformação da escola, como propõe a teoria de inclusão. Conceito muito encontrado no discurso da educação inclusiva é o da flexibilidade Veiga-Neto (2002), pois sugere-se mudanças e adaptações constantes no âmbito escolar. Estas mudanças, a propósito, estão previstas na legislação, que permite às escolas, gerir políticas, práticas, currículos, funcionamentos e avaliações; seguindo sempre o princípio da inclusão: transformar-se e oferecer educação adequada para todos que nela estiverem matriculados. Neste caso,

“… a inclusão significa um avanço educacional com importantes repercussões políticas e sociais, visto que não se trata de adequar, mas de transformar a realidade das práticas educacionais em função de um valor universal que é o desenvolvimento do ser humano.” (FIGUEIREDO, 2002, p.68).

Pensando no desenvolvimento do ser humano, observa-se que a educação, no decorrer de sua história, segregou as pessoas com necessidades educativas especiais, encaminhando-as para instituições especializadas e atendimentos diferentes daqueles realizados em salas de aula regulares. Porém, atualmente, o discurso político da educação tem sido o processo de inclusão escolar, em que as escolas devem matricular os alunos com necessidades especiais.

Para isto, legalmente, as escolas regulares podem contar com apoio, complementação e suplementação das escolas especiais; com professores capacitados e especializados; podem flexibilizar e adaptar currículos, encaminhar os alunos com necessidades especiais para salas de recursos e, entre outras possibilidades; devem estabelecer “condições para reflexão e elaboração teórica da educação inclusiva…” (item VI, artigo 8º da Resolução CNE/CEB nº 2)

Se, há poucos anos, era priorizado o atendimento em instituições especializadas, por que atualmente a proposta é completamente inversa? Torna-se necessário estudar as bases destas propostas.

Conforme exposto anteriormente, a educação escolar segregou as pessoas com necessidades educativas especiais, encaminhando-as para instituições especializadas, que pudessem adaptá-las e ensiná-las a viver em sociedade. Esta prática está fundamentada no positivismo, em que o sujeito é retirado do convívio social e adaptado, em instituição especializada, para retornar à sociedade, sendo útil para que esta possa progredir.

As leis sociais são preocupações do positivismo, isto é, aquilo que é necessário de cada indivíduo para que o progresso social aconteça. Se a pessoa não age de acordo com as leis sociais, é retirada da sociedade. O mesmo sugere com as questões morais. Entre os positivistas, destacam-se August Comte e Émile Durkheim. Para Comte, a educação é pensada em termos de idéias e hábitos. As idéias são os conhecimentos, os entendimentos, as ciências e. Os hábitos são as ações. Neste caso, a moral está embutida no conhecimento, pois, para as pessoas agirem de certa forma, precisam entender conceitos de determinada forma. Durkheim considera que a socialização é o papel da educação, pois a sociedade é fixa, não muda. Já o indivíduo é mutável e precisa se socializar para estar bem na sociedade. A partir do positivismo, portanto, quem fugir do padrão, não conseguir se socializar, necessita de adaptação para viver socialmente. Cambaúva expressa o pensamento de Durkheim sobre a educação, que “enquanto fato social, tem como objetivo a preparação do indivíduo para viver em sociedade” (1988, p.36). Expressa assim, a idéia básica e central do positivismo sobre a educação.

Neste contexto, na segunda metade do século XIX, como forma de intervenção para que o indivíduo se enquadre na sociedade, nasce a psicologia comportamental, chamada de Behaviorismo. Explicações biológicas e psicológicas (diagnósticos) passam, então, a explicar comportamentos fora do padrão. A terapia comportamental torna-se a estratégia utilizada em instituições de educação especial com o objetivo de adaptar à sociedade o comportamento das pessoas por elas atendidas, formando hábitos de acordo com as leis sociais e morais aceitas. Assim, a nascente da educação especial está no Positivismo; na idéia de adequar o sujeito a partir da formação de hábitos para ser colocado na sociedade.

Contrário a este paradigma do positivismo; surge, na década de 1990, o neopragmatismo. Neste novo paradigma, o conhecimento é considerado descontínuo, divergente e subjetivo. Neste caso, o sujeito é transformador da sociedade bem como a sociedade o transforma. Argumenta-se que a educação especial, baseada na psicologia e na biologia, situa no indivíduo a causa de qualquer comportamento diferente do padrão aceito pela sociedade; excluindo outros argumentos – sociais, econômicos, circunstanciais… – e o próprio sujeito. Neste caso, destaca-se o discurso de respeito e valorização das diferenças.

Este novo paradigma surgiu como uma tentativa de explicar a crise pela qual passa a educação, focando o novo paradigma no discurso (virada lingüística) na esperança; estando de acordo com a política pós-moderna e neoliberal.

Será, então, que a política e a prática proposta de inclusão vão ao encontro dos preceitos neoliberais? Veiga-Neto (2002) expressa que a inclusão escolar é como uma faca de dois gumes, uma lança de duas pontas.

“De um lado, ela pode funcionar no sentido de transformar o currículo num artefato capaz de contribuir para práticas sociais mais comprometidas com uma convivência multicultural crítica. Mas, por outro lado, a integração curricular poderá funcionar no sentido de nos tornar mais dóceis e receptivos às novas configurações espaciais que o neoliberalismo e a globalização estão engendrando no mundo contemporâneo.” (ibidem, p.151).

Não se pode esquecer que o principal objetivo da inclusão escolar é dar oportunidades a todos os alunos, considerando suas necessidades educativas, que são especiais e individuais para todas as pessoas, mas que para algumas são excepcionais ou adicionais (Mittler, 2003). Assim, garantindo a todos a oportunidade de desenvolvimento humano.

Para isto, algumas transformações da instituição escola, como exposto anteriormente, foram necessárias. Foi necessário que algumas pessoas não atendidas em escolas regulares se unissem e reivindicassem seus direitos ou que seus defensores o fizessem, lutando por espaço, respeito e oportunidades.

Tendo em vista a proposta da política nacional, os estudos e discussões realizados sobre a inclusão em educação, pode-se estabelecer relações entre a possibilidade de inclusão, entendida como aquela realizada em classe comum de escola regular, e o transtorno autista.
2.2 Oportunidades para autistas

“Como pode uma criança esconder tão bem sua riqueza intelectual atrás de um comportamento paradoxal?” (AXLINE, 2003, p.79)

Conforme exposto anteriormente, de acordo com a Resolução nº 2, do Conselho Nacional de Educação, Câmara da Educação Básica, de setembro de 2001; muitas modalidades de atendimentos educacionais podem ser consideradas educação inclusiva: Sala de recursos, Sala de apoio, Classe comum em escola regular, Classe especial em escola regular, Atendimento hospitalar, Atendimento domiciliar e Escola especial. Nestas diferentes modalidades, conforme a legislação, pode acontecer a educação especializada, desde que disponha de recursos especializados. Contudo, na presente reflexão, considerar-se-á inclusão o atendimento educacional realizado em classe comum de escola regular, oferecido para crianças com necessidades educativas especiais.

Lembrando que, de acordo com o artigo segundo da Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica (2001), os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos. Para isto, também relembrando, as escolas regulares podem contar com apoio, complementação e suplementação… (item VI, artigo 8º da Resolução CNE/CEB nº 2).

Em muitos casos observa-se a tentativa de inclusão, muitas vezes acontecendo e sendo explicada como forma de proporcionar maior sociabilização para as crianças com necessidades educativas especiais. Observa-se também a tentativa das escolas regulares de buscar apoios dos mais diversos: assessoria de profissionais especializados, escola especial, materiais didáticos específicos, leituras… Porém, ao não encontrarem apoio necessário e vivenciarem experiências desagradáveis com estas crianças, por não saberem como agir, observa-se na prática educacional das escolas regulares, um grande movimento para que as crianças com necessidades educativas especiais sejam encaminhadas para a educação especial; sob justificativa de não haver na realidade condições estruturais, profissionais, curriculares e específicas de atendê-las.

Neste caso, portanto, quais seriam as possibilidades e oportunidades oferecidas às pessoas com transtorno autista? Pessoas que, além de aprenderem de um jeito diferente e, portanto, apresentarem um desenvolvimento cognitivo diferente; apresentam dificuldades de se comportarem socialmente. Neste caso, pode-se pensar que a inclusão de autistas, de acordo com o ponto de vista de muitas escolas regulares, não proporciona benefícios para estas crianças, pois sua interação social também está bastante afetada.

O que se pretende com a inclusão quando se trata de um transtorno do desenvolvimento? É necessário não perder de vista um dos principais objetivos da educação escolar: promoção de conhecimento acadêmico. Há possibilidade de autistas aprenderem estes conhecimentos acadêmicos? Historicamente, na prática, observa-se que alguns autistas têm condições de aprender aquilo que as escolas regulares se propõem a ensinar. São aqueles chamados de autistas de alto funcionamento, que apresentam função cognitiva preservada, mesmo que pensem e raciocinem de forma diferente do padrão.

Se, legalmente, estas crianças estão asseguradas quanto à educação em escolas regulares, não há muito o que discutir sobre a obrigatoriedade das escolas em matriculá-las.

Alguns autistas possuem comportamentos agressivos tanto com os outros como consigo mesmos. Alguns, precisam constantemente da ajuda física de uma pessoa. Mas há também aqueles que são independentes em suas atividades diárias: ir ao sanitário, lanchar, vestir-se, colocar sapatos…, que conseguem se comunicar, ainda que precariamente; conseguem expressar uma sensação desagradável sem agredir, e conseguem aprender conteúdos curriculares. Estes, ao terem oportunidade de estudar em escolas regulares precisam adaptar-se e exigem adaptações da escola.

Nestes casos, se a política de educação inclusiva realmente funcionasse na prática, muito se poderia oferecer a estas crianças: escola regular com currículo flexível, apoio à comunidade escolar, materiais didáticos adaptados, complementação e reforço dos conhecimentos oferecidos na escola, sociabilização (ainda que com respeito às peculiaridades de interações sociais), pesquisa e conhecimento teórico-prático.

Foram relatados neste texto algumas metodologias de ensino desenvolvidas para atender à necessidade educativa de autistas. Estas metodologias e propostas foram elaboradas a partir de observações criteriosas, de muitos estudos e pesquisas. Assim, parte destas propostas podem ser utilizadas pela escola regular, sendo repensadas, questionadas e, inclusive, proporcionando o pensar de um atendimento ao autista de acordo com a proposta pedagógica e política da escola.

Baptista (2002) relata um caso de inclusão escolar, na Itália, de um menino autista em que a equipe de trabalho da escola transformou-se numa equipe de pesquisa, em que foi construído coletivamente um plano pedagógico individualizado para o menino, no qual o procedimento de avaliação era diferenciado e baseado no sujeito como parâmetro de si mesmo. Este autor considera que o “autismo evoca, com muita intensidade, as limitações do sujeito em termos de chave do acesso, de comunicação, de perspectivas de evolução” (ibidem, p.132). Segundo ele, então, a confiança na capacidade do aluno e uma ação pedagógica diferenciada, com prática e parceria de todas as crianças, favorece o processo de inclusão.

Em casos de autistas que estão sendo incluídos aqui no Brasil, seria importante encontrar na realidade o apoio à comunidade escolar, adaptação de material e aulas de reforço, tal como previsto na legislação. A escola regular muito tem a oferecer para estas crianças: sua comunicação, interação e comportamento social geralmente apresentam desenvolvimento positivo. Sua cognição também, quando lhe é oferecido material em que elas entendem o que é solicitado, sabem como realizar as tarefas porque lhes são explicadas de forma que entendam.

Essas crianças precisam se adaptar sim, precisam aprender que devem pedir o que desejam, obedecer regras sociais simples, comportarem-se de forma adequada. As escolas também precisam se transformar e, além de proporcionar educação para crianças de desenvolvimento padrão, proporcionar educação também para os autistas, que muitas vezes estão desprovidos de oportunidades nas escolas regulares.

Autistas são apenas um exemplo das muitas crianças com necessidades educativas especiais que necessitam de maior atenção, por ser um transtorno tão comprometedor do desenvolvimento humano. Muitos outros são os excluídos e segregados da escola regular.

“A idéia de inclusão educacional, regulamentada em leis e propagandeada em discursos, está longe de se concretizar em práticas educativas no interior dos sistemas de ensino. Assim, os excluídos … vêem-se privados do acesso ao conhecimento e à cidadania, já que continuarão precisando de quem possa falar e pensar por eles.” (ALMEIDA, 2002, p.64).

Talvez, um dia, a inclusão possa ser uma realidade que ensine a todos o respeito pelas diferenças, pelo ser humano. Talvez um dia se possa proporcionar a professores maior entendimento da sua prática para que possam definir e redefinir práticas de acordo com os objetivos divulgados: aprendizagem, respeito às diferenças, inclusão.
2.3 Maria e João*

“Quem é o homem que está por trás de tudo o que pensamos e estudamos? Não há como pensar no homem sem que saibamos quem ele é…” (LOBO, 2003, p.72)

Para pensar sobre o processo de inclusão de duas pessoas com diagnóstico de autismo, um breve histórico de suas vidas e de suas caminhadas pelas escolas se faz necessário. Trata-se das histórias de uma menina de 10 anos, que atualmente está na 4ª série; e de um menino de 14 anos, que cursa a 7ª série.

Maria tem atualmente 10 anos. De acordo com o relato dos pais, nasceu de parto cesariano, uma semana antes do previsto. No parto tudo ocorreu bem. Ela logo foi para o quarto com a mãe e mamou muito bem. Isto até os dois meses de idade, quando nasceu seu primeiro dente. Aos 4 meses, mais dentes começaram a aparecer.

Até os 9 meses Maria parecia muito precoce em seu desenvolvimento: caminhava sem apoio e já começava a balbuciar algumas palavras: dedão, vovó, bicho… Mas de repente, parou de falar.

Em seguida, começou a apresentar certas fobias: barulhos de eletrodomésticos, andar de ônibus, etc. O medo de andar de ônibus, assim como apareceu de repente, também desapareceu, após cerca de um ano.

Quando Maria tinha dois anos e meio, seus pais mudaram-se de Porto Alegre para Lages, em Santa Catarina. A menina quase não falava, mas o pediatra dela tranqüilizou os pais, acreditando que ela apresentava um atraso de linguagem, uma vez que havia sido precoce em outras áreas do desenvolvimento.

Quando tinha cerca de três anos, nasceu a irmã de Maria. Este nascimento colheu os pais de surpresa, pois se preveniam com contraceptivos. Em visita aos avós, quando Maria completava 4 anos, os pais perceberam que realmente algo estava muito estranho e começaram a investigar sobre o problema dela.

Assim, em 1997, em Lages, os pais iniciaram a partir de um projeto da prefeitura, que incluía a atuação de diferentes áreas, uma verdadeira “via-sacra” com Maria: consultas com diferentes profissionais, exames, entrevistas, questionários, revisões… Após um mês, conforme relato da mãe, foi-lhes entregue um papel rasurado, constando o diagnóstico de autismo. Perplexa com a situação e um pouco desnorteada, a mãe pediu uma consulta com a psicóloga do projeto e a mesma mudou o diagnóstico de “Autismo” para “Espectro Autista”. Os avós de Maria, em Porto Alegre, contataram com a FADERS (Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado no Estado do Rio Grande do Sul), também procurando encontrar explicações e justificativas.

Neste período, Maria estava em uma escola de Educação Infantil, na qual também as professoras percebiam algo diferente na menina: não falava, não se aproximava ou brincava com os colegas, se envolvia muito pouco nas atividades e realizava movimentos estranhos e repetitivos.

Não encontrando profissionais capacitados em Lages, o pai, que é militar, tentou e conseguiu uma transferência para Florianópolis. Aqui, Maria passou pela Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE), tendo seu diagnóstico fechado: transtorno invasivo do desenvolvimento, transtorno autista. Durante muito pouco tempo, Maria foi atendida na Fundação, pois os pais não concordaram com a educação oferecida e a distância entre a instituição e sua casa era longa. Por isto, Maria passou a freqüentar a APAE e também um Núcleo de Educação Infantil (NEI) municipal.

Ao entrar na 1ª série, os pais optaram pela escola regular, uma vez que ela já era atendida em um Núcleo de Educação Infantil regular e parecia ter conhecimento de algumas letras. Para isto, e preocupados com a alfabetização, fizeram contato comigo, que já tinha trabalhado como estagiária em uma clínica para autistas em Porto Alegre, para ser sua pedagoga, como uma “acompanhante pedagógica”. Como acompanhante, atendia Maria, adaptava atividades e orientava seus professores da escola regular. Na escola, que é foco deste trabalho, Maria estudou da 1ª à 3ª séries. Neste ano de 2004, mudou para uma escola mais próxima de sua casa. Paralelo ao ensino regular, sempre freqüentou, em turno oposto, a educação especial. Atualmente, Maria já não está mais estudando na APAE, permanecendo somente na escola regular, na qual iniciou em março do decorrente ano, a 4ª Série. Também continua recebendo meu atendimento como psicopedagoga, em que realizo seu processo constante de inclusão, promovendo à escola orientações e apoios para a prática pedagógica.

João tem uma história bastante diferente de Maria. Ele tem atualmente 14 anos.

Seus pais sempre viajavam muito e estavam pouco presentes no seu dia a dia. Quando tinha cerca de 12 meses, seu pediatra estranhou seu jeito de se posicionar embaixo da cadeira e o fato de não atender quando chamado pelo nome; sugerindo aos pais que procurassem uma fonoaudióloga e um otorrinolaringologista. Os pais procuraram por estes profissionais. O primeiro iniciou uma terapia de fala e o segundo o diagnosticou como surdo. Em seguida, a fonoaudióloga sugeriu um psiquiatra infantil, que apresentou o diagnóstico de transtorno invasivo – autismo e o atendeu até aproximadamente seus 8 anos de idade. Chamou a atenção, quando tinha um pouco mais de 2 anos, o fato de João não falar, mas demonstrar interesse por programas de televisão apresentados em inglês, sua língua preferida para assistir filmes. Quando tinha cerca de 5 ou 6 anos começou a falar, em inglês e, em seguida, em português. Muito desta aprendizagem aconteceu com auxílio da escola, na sua interação com educadores e colegas de sala.

Inicialmente, estudou numa escola de Educação Infantil regular, já com 2 anos de idade. Paralela a esta escola, tinha uma atividade extra-curricular, com uma professora em uma turma de classe especial com algumas crianças, todas consideradas com diagnóstico de transtorno invasivo. Esta professora ficou grávida, encerrou seu trabalho e a turma se extinguiu. Em seguida, continuou sua educação infantil em outra escola, próxima de sua casa. Nesta escola, tudo que queria podia fazer, desde permanecer brincando no pátio, tomar vários banhos no dia – algo que a mãe relata que o agradava muito – comer o que quisesse, quando quisesse. O psiquiatra que o atendia, então, passou a orientar a escola. Quando concluiu sua educação infantil, trocou de escola, passando a estudar na escola onde está atualmente e, para a qual, seu psiquiatra continuou dando orientações.

Na escola, aprendeu a ler palavras inteiras e a escrevê-las com auxílio de imagens que a professora utilizava. Sempre apresentou bastante movimento estereotipado com as mãos, representando animais e imitando seus sons. Estes movimentos persistem até hoje.

Na segunda série foi reprovado, pois não tinha domínio do conteúdo desenvolvido para chegar à terceira série. Seus educadores relataram que as crianças da escola sempre mantiveram um relacionamento intenso com João, chamando-o para brincar, lanchar junto, conduzindo-o pela mão, ajudando-o na realização das atividades. Relatam também que sua reprovação, inicialmente, trouxe a ele um momento de tristeza, ao ver que não pertencia mais ao mesmo grupo do ano anterior. Passado isto, logo buscou interagir com os novos colegas, que novamente o acolheram.

Próximo deste período, seu psiquiatra, que desenvolvia um trabalho de orientação à escola, faleceu. Logo em seguida, outra psiquiatra infantil passou a atendê-lo e, no ano seguinte, o encaminhou para atendimento comigo, quando já me encontrava fazendo especialização em Psicopedagogia Clínica. Dessa forma, recebe atendimento psicopedagógico desde o segundo semestre da 4ª Série. Na condição de psicopedagoga, auxilio a escola no entendimento de seu comportamento, no manejo com ele, nas elaborações das atividades, na mediação proposta para sua aquisição do conhecimento; bem como na relação dele com os colegas.

Ano passado, ao ingressar na 6ª série do ensino fundamental, seus colegas manifestaram o desejo de me conhecerem e conversar comigo sobre João. Fez-se uma dinâmica para que eles compreendessem melhor o jeito de ser, pensar e agir de uma pessoa com autismo. Seus colegas demonstraram preocupação e curiosidade. Os professores relataram que este encontro repercutiu na busca de maior interação com João e na ampliação da compreensão sobre ele.

No final do ano passado, cogitou-se a possibilidade de João sair desta escola, pois não seriam mais oferecidas turmas de 5ª à 8ª séries. Porém, com reunião de pais, ficou estabelecido que apenas haveria uma turma de 7ª série.

Sendo assim, João continua estudando nesta escola, com uma turma composta por 8 meninos. Manteve-se, desde abril deste ano, a minha orientação para sua escola e seu atendimento individual.

Como psicopedagoga destas duas crianças, acompanhando seus processos de inclusão já há algum tempo, observo algumas atitudes contraditórias nos educadores e uma crença desconfiada nos pais.

Os educadores pensam que podem proporcionar aos educandos com autismo aprendizagem dos conteúdos escolares. Ainda assim, muitas vezes recaem suas preocupações nos conteúdos que devem ser trabalhados, exigidos pela escola; abandonando por algum tempo o processo de aprendizagem destas pessoas.

Já os pais têm receio do que acontecerá no futuro de seus filhos. Por já terem passado algumas situações constrangedoras com suas crianças em diferentes ambientes, inclusive na escola, os pais apelam a estas instituições como lhes prestando um favor ao aceitarem atender seus filhos. Os pais de ambas as crianças, cujas histórias foram apresentadas neste trabalho, demonstram preocupação sobre o que acontecerá com seus filhos num futuro escolar próximo. Os pais do João, caso não haja a 8ª série no próximo ano na escola em que ele estuda, não sabem se ele será matriculado em outra escola. Os pais da Maria receiam que estudar na 5ª série seja para ela muito difícil, uma vez que envolve diversos professores e os conteúdos são mais dirigidos, em menos tempo cronológico de aula.
2.4 Primeiros passos

“A inclusão é uma visão, uma estrada a ser viajada, mas uma estrada sem fim, com todos os tipos de barreiras e obstáculos, alguns dos quais estão em nossas mentes e em nossos corações.” (MITTLER, 2003, p.21)

Para melhor compreender e analisar o que educadores e pais pensam sobre os processos de inclusão de Maria e de João; foi elaborado um questionário para os pais das crianças, um para a coordenação/direção e outro para os professores.

Os questionários entregues aos pais das duas crianças foram respondidos.

Na escola onde João estuda, apenas três professores responderam ao questionário – sendo que ele tem dez professores, um para cada disciplina – e pelos pais dele. Já no caso de Maria, os questionários foram respondidos pela direção, a professora de sala e pelos pais da menina. Como Maria mudou de escola em 2004, o trabalho seguiu um rumo diferente do previsto. Alguns questionários foram encaminhados para a coordenação pedagógica, para a direção e para 4 professoras – de sala, de Artes, de Hora do Conto e de Informática. A diretora e a professora de informática da atual escola da Maria não deram retorno do questionário

Foram 7 professores que responderam ao questionário e duas coordenadoras pedagógicas. Destes, 3 professores de João, dos 10 que ele tinha no ano passado, uma professora de Maria, da 3ª série e 3 professoras dela atualmente, das 4 professoras que o receberam. As coordenadoras pedagógicas das escolas onde Maria estudou e estuda atualmente também responderam ao questionário, a diretora de sua escola atual não o respondeu e a direção e coordenação da escola do João também não deu retorno. Sendo assim, retornaram 2 dos 4 questionários encaminhados à direção ou coordenação e 7 questionários encaminhados a professores, dos 15 encaminhados.
2.5 Passos de educadores

Para melhor análise, a partir dos questionários encaminhados às escolas, foram selecionadas algumas categorias: o conhecimento sobre autismo, as dificuldades encontradas, os benefícios da educação regular para estas crianças, como os educadores interagem com elas, sistema de avaliação e as sugestões dos educadores para a educação destas pessoas.

No que se refere a conhecer sobre o Transtorno Autista, a busca por informações sobre este diagnóstico, observa-se que todos os professores marcaram que ocorreu a partir da orientação de especialistas. Acredito que isto seja devido ao meu trabalho, enquanto psicopedagoga destas crianças, pois realizo também reuniões e orientações quanto a manejo de comportamento e a aprendizagem delas. Isto também foi a resposta das coordenadoras pedagógicas. Com exceção de duas professoras, todas as outras responderam que também procuraram saber mais sobre o transtorno autista a partir de leituras. Das 7 professoras, 5 delas também procuraram saber mais a partir de trocas de informações com pais e outros profissionais. Pressupondo que familiares e educadores têm seus objetivos voltados para o desenvolvimento daquele indivíduo, a parceria entre eles pode colaborar em muito para a elaboração de estratégias que proporcionem alcançar tais objetivos. Muitos autores que versam sobre a inclusão ressaltam a importância da parceria entre família e escola (Mitller, 2003; Stainback & Stainback, 1999…). Mittler (2003, p.213) lembra que também esta parceria é fruto de um processo, como a inclusão.

“Uma parceria verdadeira é estabelecida como resultado de um processo, em vez de uma meta de chegada. Assim como a inclusão, esta é uma jornada empreendida como expressão de certos valores e princípios. Uma verdadeira parceria, como em qualquer relação próxima, implica respeito mútuo baseado em uma vontade para aprender com o outro, uma sensação de propósito comum, um compartilhamento de informação e, alguns acrescentariam, um compartilhamento de sentimentos.”

Das dificuldades encontradas pelos professores, a principal delas no caso de João é ele negar-se a realizar algo. E, no caso de Maria, seus momentos de desorganizações. As duas coordenadoras pedagógicas das escolas em que Maria foi atendida, a do ano de 2003 e a atual, também expuseram que estes momentos de desorganizações foram momentos de dificuldade.

Os professores do João expuseram que a negação dele em realizar algo é um momento difícil. Enquanto sua psicopedagoga, por muitas vezes, ofereci auxiliá-los na elaboração de atividades para João. Ele demonstra gostar muito de história em quadrinhos e, por muitas vezes, foram propostas atividades que a envolvessem. Porém, observa-se que pouco se fez na prática neste sentido. Os professores seguiam seus planejamentos, apenas me informando posteriormente que não alcançaram os objetivos que pretendiam. Deve-se lembrar aqui que adaptar atividades, tornando-as atraentes e significativas para as crianças com necessidades educativas especiais, é algo previsto na Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação, de 2001, no artigo 8º, parágrafo 3; que prescreve que a escola deve prever e prover “recursos didáticos diferenciados”.

Quanto aos momentos de desorganização, uma das dificuldades mais expostas pelos profissionais que trabalhavam ou trabalham com a Maria, estes podem ser evitados quando se proporciona a ela segurança e previsibilidade daquilo que vai acontecer. Porém, ainda assim, podem acontecer. Conforme exposto anteriormente, estes momentos de desorganização, chamados como momentos de crise podem ser ocasionados porque o processamento de estímulos no sistema nervoso central acontece de forma diferente do padrão, de acordo com a Dra. Sônia Göergen (IV Fórum sobre Autismo e Cognição, 1999 – informação verbal). Na escola regular, muitos são os estímulos: colegas e professores de diferentes idades e características, barulhos, visitas, materiais diversificados, imprevistos… Todos podem gerar um momento de crise, algumas vezes identificados; outras, não.

A coordenadora pedagógica da atual escola onde Maria estuda expõe que uma das dificuldades é o currículo proposto pela escola, mas isto não se manifesta como dificuldade por professores. Sendo uma escola inclusiva, que pretende promover o desenvolvimento do ser humano não apenas em seu aspecto cognitivo, mas também afetivo, psicológico e social; cria-se aí um paradoxo.

Esta mesma situação paradoxal observa-se quando a coordenadora pedagógica expõe como uma dificuldade o relacionamento deste aluno com os colegas – na pergunta 4 – e , posteriormente, marca que considerou importante o bom relacionamento deste aluno com os demais colegas – na pergunta 6.

É interessante observar que a atual professora de sala da Maria expõe como uma das dificuldades o fato de pessoas da equipe demonstrarem pena da criança e não conseguirem lhe impor algo. Como sua psicopedagoga, também pude observar isto acontecer principalmente nos momentos em que ela chora, aqueles momentos que chamamos de desorganização. Nestes casos, há profissionais que se preocupam mais em dar-lhe o que ela pede que ajudá-la a conter este momento. Já aconteceram situações em que lhe foi dado água com açúcar e folhas para desenhar, sem que ela conseguisse se reorganizar. A orientação dada a escola é que ela tenha um profissional de referência intervindo nestes casos e não duas ou três pessoas em volta dela agindo de formas diferentes, que sejam observadas e anotadas as situações em que acontecem, o que pode desencadear um momento destes.

O sentimento de pena pouco pode ajudá-la a superar seus momentos difíceis. É preciso lembrar que ela também tem na escola um espaço de aprendizagem sobre si mesma e sobre como se comportar, como agir em diferentes contextos sociais, em contextos mais amplos que o da escola.

De todos os 9 profissionais que responderam ao questionário, um terço deles não considera como um benefício que a escola regular proporciona ao autista o desenvolvimento cognitivo. Questiona-se, então, por que estar na escola regular? Qual seria o papel da escola neste caso? Conforme visto anteriormente, observa-se na história casos de alguns autistas que conseguiram aprender aquilo que as escolas regulares se propõem a ensinar. Se considerado o conceito de modificabilidade (Da Ros, 2002), todas as pessoas com necessidades educativas especiais teriam como se beneficiar da aprendizagem oferecida pela escola regular.

A grande maioria dos profissionais apontou como fator importante para se relacionar melhor com o autista a adaptação de atividades, o crescimento da sua experiência profissional e o conhecimento das características destas pessoas. Chama a atenção que apenas a professora de Maria expressou a importância do apoio da equipe da escola. Nenhum dos professores de João expressou receber este apoio dos colegas. João tem 10 professores que, se trabalhassem em equipe, poderiam ampliar seus conhecimentos sobre as necessidades educativas dele e estratégias de manejo do seu comportamento.

Observa-se que para avaliar a aprendizagem destas crianças os educadores lançam sobre ela um olhar particular, considerando seu jeito de ser e de se expressar. Nas respostas aparecem indícios de que as avaliações são realizadas a partir de observações constantes.

Nota-se que a professora de Artes de João diz que as observações feitas acontecem mais fora de sala e manifesta na pergunta nº 8 sua percepção de que ele se sente “confinado” em sala porque precisa constantemente sair dela. E não é possível dar aulas de artes fora de uma sala, no pátio, em museus, teatros, exposições…?

Na pergunta nº 8 tem-se a intenção de que os professores exponham o que poderiam fazer para que a pessoa com autismo possa obter melhor aproveitamento das aulas e ampliar sua compreensão dos conteúdos trabalhados em aula. As sugestões práticas apontadas pelos professores são: tempo para buscar materiais alternativos que chamem a atenção (desenhos, quadrinhos, textos, música …); horas-aula reservadas aos professores para elaborar atividades diferenciadas; aulas mais silenciosas e mais espaço físico; maior proposta de inclusão pela escola e estudos sobre isto, parceria com a instituição especial onde a Maria era atendida, utilização de mais recursos visuais e realização de passeios; a busca por mais participação oral.

Com exceção da professora atual de Maria, nenhum outro professor expôs o que poderia ser abordado no questionário que lhes foi encaminhado. Esta professora expressou que seus sentimentos ao atender uma pessoa com autismo poderiam ser abordados. Stobäus & Mosquera (2003, p.201) versam sobre os sentimentos experimentados pelos professores de crianças com necessidades especiais, destacando-se os seguintes: ansiedade, sentimentos conflitivos e ambivalentes, impotência, angústia e felicidade. No caso desta pesquisa, o objetivo focou a possibilidade de proporcionar ao autista sua inclusão na escola regular, não os sentimentos dos professores em relação a isto. Com certeza, os sentimentos dos professores em atender pessoas com autismo pode ser fonte de uma outra interessante e válida pesquisa.

As coordenadoras pedagógicas expuseram que as escolas possuem alguns critérios para que a escola aceite atender estas pessoas: apoio ou aulas de reforço para esta pessoa, freqüência em outra instituição de ensino em turno oposto à escola, acompanhamento de um psicopedagogo e que não haja agressividade na relação social. As escolas regulares, perante a legislação, não podem negar nem exigir nenhum tipo de critérios para atender qualquer pessoa que buscar seus serviços.

A antiga escola em que Maria estudava determina como critérios para a sua permanência na escola o acompanhamento paralelo regular, reforço do conteúdo quando necessário e interação entre família e escola. Na atual escola os critérios exigidos são oferecidos pela própria escola: avaliação conforme suas necessidades e potencialidades (o que não é diferente para os demais estudantes) e é oferecido suporte para superar suas dificuldades. Supõe-se, então, que a permanência dela na escola, dentro das condições previstas pela instituição, é oferecida pela própria, em sua proposta de inclusão.

É interessante observar a primeira palavra escrita pelas coordenadoras pedagógicas sobre o fato de atender uma pessoa com autismo trazer benefícios para a escola, equipe de profissionais e demais alunos: certamente. Observa-se assim que tanto para a pessoa com necessidade educativa especial como para a comunidade escolar como um todo há benefícios em se apresentar uma proposta de educação inclusiva.

Ressalta-se nesta prática inclusiva, na escrita das duas coordenadoras, o desenvolvimento de atitudes cooperativas, de trocas sociais diferenciadas, proporcionando um desenvolvimento social mais solidário.

Como psicopedagoga destas duas crianças, utilizei estes questionários para dar continuidade ao trabalho de orientação de professores nas escolas em que Maria e João estudam durante este ano letivo.

Foi proposto um trabalho com os novos professores da escola onde Maria passou a estudar. Como eles não a conheciam e nunca trabalharam com pessoas autistas, foi feito um grupo de estudos com todos os professores sobre Transtorno Autista. A partir de um quadro com as características e sintomas do transtorno organizado por mim, foi-se elaborando junto aos professores estratégias de educação e comportamento que poderiam ser aplicados na escola para proporcionar à Maria uma aprendizagem de melhor qualidade no que se refere ao conhecimento acadêmico e ao comportamento. Foi feito este trabalho para que os professores pudessem, juntos, “viajar” pela estrada da inclusão, apesar e mesmo com seus obstáculos, mas também considerando as “paisagens” que se podem contemplar.

“Espera-se que os professores… desenvolvam seu próprio plano de manejo, o qual inclui abordagens preventivas, abordagens de intervenção geral, abordagens motivacionais e abordagens de apoio e de comunicação.” (STAINBACK & STAINBACK, 1999, p.336).

As estratégias elaboradas junto aos professores foram:

* Tocar de leve, chamá-la pelo nome e auxiliar na atividade (de forma verbal, gestual e física);
* Comunicar a direção do olhar;
* Estimular e indicar interações sociais;
* Recurso visual;
* Fala objetiva;
* Pouco jogo simbólico e privilegiar atividades concretas;
* Mostrar a rotina;
* Proporcionar atividades dirigidas;
* Informar sobre sons, visitas, materiais;
* Ficar atento às resistências, respeito, limites;
* Alternar atividades dirigidas e livres;
* Escrever sobre observações feitas.

Já na escola de João, para dar procedimento ao trabalho de orientação à escola, foram sistematizadas as dificuldades encontradas pelos professores que responderam ao questionário – pergunta número 4 – para que a partir delas se pudesse pensar em estratégias e possíveis soluções. Entrei em contato com a coordenadora pedagógica responsável pela turma da 7ª série, mas nenhum retorno foi dado para que retomássemos as orientações já encaminhadas desde o ano anterior. Tenho, junto com seus pais, insistido num contato mais estreito entre a escola e o atendimento psicopedagógico.
2.6 Passos de pais

Os pais de Maria e João responderam ao questionário. Para analisá-lo também foram selecionadas algumas categorias, quais sejam: como a escola efetiva a inclusão, itens importantes para que seus filhos estivessem no ensino regular, dificuldades encontradas, benefícios proporcionados pelo ensino regular, adaptação da escola e sugestões dos pais.

No questionário respondido pelos pais de Maria observa-se que a escola como um todo parece se interessar pela criança autista e sua forma de aprender. Já no caso de João, fica aparente que o interesse é de alguns professores, sendo que outros demonstram pouco interesse pela educação de alguém com autismo. Cabe lembrar que dos 10 professores, apenas 3 responderam ao questionário que lhes foi encaminhado. Como psicopedagoga de João, realizando um trabalho de acompanhamento e orientação aos professores, isto também é visível. Aqueles educadores que compartilham comigo suas propostas de educação e os conteúdos a serem desenvolvidos, são os mesmos que responderam ao questionário. Não é de se admirar que também são estes com quem João apresenta melhor rendimento na escola.

Ao dedicar parte do tempo de planejamento de aula para atividades que possam melhor envolver e desenvolver o raciocínio da pessoa com autismo, os professores conseguem abrir um canal de comunicação maior com estas pessoas, fortalecendo também o vínculo afetivo. Ambos, fundamentais para o desenvolvimento cognitivo.

Observa-se que ambos os pais consideraram importante, para que a criança estivesse estudando no escola regular, a disponibilidade da escola e dos professores em atendê-la. Neste caso, expõe-se uma situação de favoritismo para com estas famílias e estes educandos; tanto que a mãe de Maria registra que a escola e alguns professores já conhecerem esta pessoa com autismo contribui para sua entrada na escola. E o direito à educação, como prevê a Resolução nº2, do Conselho Nacional de Educação (2001), por si só já não garantiria a matrícula destas pessoas em escolas regulares? É interessante observar que nenhum dos pais marcou como item importante para que a criança estudasse em escola regular, o seu direito previsto em legislação. Pode-se inferir que este direito, na prática, acontece em alguns casos raros, uma vez que os pais consideram, nestes casos, mais importante que seu direito garantido à educação no ensino regular, a disponibilidade da escola para prestar atendimento educacional aos seus filhos. Pode-se inferir também que os pais entendem que o direito está garantido e isto não se discute, porém o importante é viabilizar o exercício pleno deste direito.

Sobre as dificuldades encontradas pelos pais, apenas os de Maria responderam a esta pergunta. Conforme sua resposta, a maior dificuldade é a distância entre a casa e a escola. E por que Maria não poderia estudar numa escola próxima à sua casa? Talvez, pela disponibilidade… Realmente, ao falar pessoalmente com os pais dela, este era o argumento; não havia no bairro onde moram uma escola com disponibilidade para atender crianças com necessidades educativas especiais e a escola pública municipal era considerada muito precária em termos de estrutura física e profissional; havendo assim poucos recursos e opções de educação regular para sua filha.

Independente do atendimento e educação oferecidos e da opinião dos pais sobre isto, ambos consideram que a escola regular proporciona para seus filhos todos os benefícios elencados no questionário: maior interação social, melhor comunicação, ampliação do vocabulário, diminuição de movimentos estereotipados, desenvolvimento cognitivo, valorização de suas habilidades, maior autonomia em atividades de vida diária… Parece-me que se houvesse outros itens, estes também seriam apontados. Os pais de ambas as crianças, em conversas informais, relatam que se estivessem em escolas para crianças especiais, talvez a exigência quanto ao desenvolvimento cognitivo fosse menor e que seus filhos teriam como padrão de comportamento algo que difere em muito da maioria da sociedade. Dizem que tendo como espelho e convivendo com pessoas de comportamento padrão, obtém um melhor referencial de como se comportar socialmente e desenvolvem relações de amizade que lhes impulsionam para uma interação maior com seu contexto social.

As perguntas números 8 e 9 do questionário aos pais demonstram o quanto o interesse da escola, para melhor atender aos seus filhos, foi percebido pelos pais. Para os pais de Maria e de João, fica evidente que as escolas procuraram conhecer mais sobre o autismo, sobre aquele educando para quem estavam oferecendo seus serviços. Tendo mais informações, os pais perceberam que as escolas fizeram modificações para melhor atender aos seus filhos.

É interessante observar no histórico de escolarização de João que, desde que estuda na escola onde atualmente faz a 7ª série, recebeu apoio de um especialista, o qual também ofereceu aos docentes orientação sobre manejo e atividades. Porém, não foi percebido pelos pais o interesse da escola em buscar por este profissional, pois não assinalam este item na pergunta número 8. Desde o segundo semestre da 4ª série, sou psicopedagoga de João e é oferecido à escola o trabalho de orientação. Conforme relatado anteriormente, são alguns poucos professores que buscam maiores informações sobre como acontece o processo de aprendizagem do João e solicitam auxílio na elaboração de materiais que possam lhe proporcionar maior aquisição e compreensão dos conteúdos desenvolvidos. Muitas vezes, é necessário que eu esteja bastante presente na escola, que fique solicitando aos educadores constantemente suas intenções e planejamentos de trabalho. Só assim, em muitos casos, tenho acesso ao aprendizado escolar de João.

Já na escola em que Maria estudava, ocorria um processo diferente. Os educadores constantemente buscavam informações e faziam perguntas sobre seu comportamento e aprendizado.

As respostas dos pais para as perguntas de número 8 e 9 demonstram claramente o quanto são perceptivos para as relações que a escola estabelece com os processos de inclusão que se propõem a realizar.

Nenhum dos pais apontou sugestões para um melhor processo de inclusão de seus filhos. Os pais de João refletiram em sua última resposta a necessidade de um conteúdo direcionado e de um apoio extra-curricular, quando se referem à possibilidade de inclusão. Esta resposta reforça e retoma uma carência percebida por eles na escola onde João estuda.

A educação, em escola regular, não deveria ser privilégio para alguns e nem para pessoas com necessidades educativas especiais, mas na prática dos dois casos aqui analisados parece assumir este caráter. Os pais demonstram serem atingidos pelo favoritismo das escolas que atendem aos seus filhos e a insegurança da continuidade da vida escolar parece permear seus discursos. Até quando… Chegará o dia em que educação será parte da vida, não como privilégio, mas como direito humano?
2.7 Inclusão: sim ou não?

Considerando a inclusão o ato de aprender conteúdos que a escola regular oferece e a possibilidade de conviver com outras pessoas, não apenas o fato de estar no mesmo espaço físico da escola; os professores foram questionados se é possível incluir os sujeitos autistas com os quais trabalham e como. As respostas…

“Acho possível, mas vejo também muitas limitações advindas de pessoal não especializado para lidar com o caso. Muitas vezes senti-me incapaz e decepcionada por não conseguir uma comunicação com João.”

“É claro que acredito, mas tenho presente que a escola precisa ser mais flexível no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem, currículo, avaliação, visto que este não se faz ou acontece da mesma maneira para todos, inclusive para pessoas especiais. Enfim, acredito num repensar da escola para incluir, pois no atual sistema de ensino presenciamos uma situação precária e sucateamento. É preciso incluir a escola na vida da maioria da população!”

“Considero possível a inclusão da pessoa com transtorno invasivo no ensino regular, no entanto é fundamental que a escola ofereça turmas com poucos alunos e reserve mais horas atividade para o professor elaborar atividades diferenciadas.”

“Sim, se a escola permitir um currículo mais flexível e as aulas não estarem tão fixas à utilização de livro didático.”

“Com um atendimento diferenciado do educador e com o apoio dos colegas da turma. Este atendimento diferenciado consiste em buscar alternativas pedagógicas que possibilitem o aprendizado.”

“Acho importante uma pessoa com transtorno invasivo participar de uma escola regular, possibilita essa pessoa a aprender e conviver com outras pessoas.”

“Sim, da forma como tem sido feita. Penso que alguns colegas de trabalho verem o autista com sentimento de pena atrapalha um pouco.”

Aos pais, foi feito o mesmo questionamento, sendo estas as respostas:

“Acredito que sim, mas acho que há necessidade de um conteúdo direcionado, um apoio extra-curricular é de extrema necessidade.”

“Considero a inclusão muitíssimo importante desde que haja condições REAIS de ambas as partes. No caso de nosso filho está sendo uma experiência enriquecedora, mas infelizmente sabemos que a continuidade dele no ensino regular está seriamente comprometida pois teremos que mudá-lo de escola e sabemos o quanto será difícil encontrar outras escolas que tenham condições REAIS para isto.”

Observa-se que a maioria dos professores e os pais dos dois estudantes consideram possível a inclusão destes em escolas regulares. Ainda assim, esta crença vem seguida por “mas, no entanto, se…” Assim, demonstram também acreditar que são necessárias algumas mudanças para que a inclusão realmente se efetive na prática diária da escola.

Considerando as necessidades que educadores e pais relatam para que haja a inclusão efetiva – em que as pessoas com autismo aprendam conteúdos que a escola regular oferece e tenham a possibilidade de conviver com outras pessoas, não apenas o fato de estar no mesmo espaço físico da escola – a inclusão escolar passa a ser uma utopia. A educação escolar tem passado por mudanças históricas e culturais, cujas metodologias de ensino têm sido questionadas e repensadas constantemente. Neste contexto recente, a inclusão passa a fazer parte de um sistema de educação maior; sendo também ainda uma experiência recente, contestada e repensada por muitos estudiosos e profissionais envolvidos com o assunto. Porém, com intenções de ser efetiva, visando à promoção do desenvolvimento humano a todos os seres humanos.
3 REPENSANDO…

“… Só as coisas importantes são lembradas quando nos esquecemos de tudo o mais. E as experiências podem certamente obrigar-nos a trocar a nossa maneira de focalizar a vida.” (AXLINE, 2003, p.284)

O que ficaria de importante na vida de pessoas com autismo e na vida de quem conviveu com elas em oportunidades de inclusão escolar e social? Talvez, exatamente, a maneira de focalizar a vida…

Pessoas com autismo, conforme exposto anteriormente, expressam um comportamento em todas as áreas do desenvolvimento bastante diferente daquele conhecido como padrão. Concomitante a isto, um autista demonstra uma riqueza de detalhes em sua personalidade, que o torna completamente diferente de outra pessoa com o mesmo diagnóstico. Sendo assim, independente do seu diagnóstico de autismo, as peculiaridades do indivíduo devem ser consideradas.

No caso de inclusão escolar, também é necessário que se considere as necessidades educativas de pessoas com autismo, além das já citadas peculiaridades pessoais. Isto, porém, não é diferente para os demais estudantes de uma escola regular com proposta de inclusão.

Observa-se muitos professores acreditarem que, para trabalhar com pessoas com necessidades educativas especiais, é necessário ser um especialista. No entanto, os resultados mais positivos no que se refere à inclusão são observados em escolas que desenvolvem um trabalho de equipe, no qual todos os profissionais estão agindo para que a diversidade de todos os estudantes seja considerada no processo de aprendizagem individual e do grupo, que seja respeitada.

A partir dos questionários respondidos pelos diferentes profissionais envolvidos nesta pesquisa constata-se que o fato de estar envolvido no processo de aprendizagem de uma criança com necessidades educativas especiais proporciona crescimento da experiência profissional. Considerando a inclusão como uma jornada, Mittler (2003, p.183-184) expressa:

“Durante o curso dessa jornada, os professores vão construir e ampliar suas habilidades sobre as experiências que já possuem com o objetivo de alcançar todas as crianças e suas necessidades de aprendizagem. Porém, eles também têm o direito de esperar apoio e oportunidades para seu desenvolvimento profissional nesse caminho, da mesma maneira que os pais e as mães têm o direito para esperar que suas crianças sejam ensinadas por professores cuja capacitação preparou-os para ensinar a todas elas Esta tarefa não é tão difícil quanto pode parecer, pois a maioria dos professores já têm muito do conhecimento e das habilidades que eles precisam para ensinar de forma inclusiva. O que lhes falta é confiança em sua própria competência. Isso acontece, em parte, devido à falta de oportunidades de treinamento e, em parte, ao mito existente há muito tempo acerca da especialização das necessidades especiais que os fazem acreditar que a capacitação especializada é um requisito para a inclusão.”

Assim, torna-se necessário que os próprios professores acreditem em suas potencialidades, que acreditem na formação de educadores que buscaram, que são capacitados para buscar alternativas educativas e com elas proporcionar educação para todos os estudantes. Este trabalho não apenas inclui conhecer a necessidade educativa com a qual se depara, mas aprofundar seus conhecimentos sobre educação.

“O docente não tem obrigação de se preparar para suprir as necessidades clínicas e terapêuticas de seus alunos, mas para lidar pedagogicamente com eles. Assim, trabalhar com crianças especiais não requer uma especialização para reduzir ou pôr termo às suas deficiências, mas o aprimoramento do professor no ensino e na aprendizagem para que ele seja capaz de identificar as dificuldades de seus alunos, visando a eliminar as barreiras próprias de suas relações na escola. Que ele seja capaz de realizar reflexões e questionamentos sobre sua a prática, enfatizando o trabalho cooperativo em detrimento da competição, respeitando os diferentes estilos de aprendizagem e, sobretudo, refletindo, planejando e assumindo a educação.”(FIGUEIREDO, 2002, p.76-77).

No caso de pessoas com autismo, as sensações de não saber o que fazer são ampliadas, devido às suas características de desenvolvimento. Cabe lembrar que autistas tem extrema dificuldade em realizar teoria da mente, sendo muito difícil para eles entenderem formas de se comportar, as regras sociais de interações com as pessoas, conceitos abstratos e relativos. Por estes motivos, é de grande valia registrar as oportunidades de aprendizagem que obtiveram bons resultados, aquilo que chama a atenção daquela pessoa autista, o que lhe causa repulsa, o incentivo das interações sociais com estudantes com os quais possuem vínculo de amizade. Sendo assim, questionamentos, observações e registros constantes, se configuram como fatores importantes na elaboração de novas estratégias de ensino.

“Freqüentemente, os processos de aprendizagem de crianças autistas são mais lentos e encontram-se alterados, de forma que a aplicação rotineira de técnicas educacionais termina na frustração, se não for acompanhada de uma atitude de indagação ativa, de exploração criativa do que ocorre com a pessoa que educamos. Quando é acompanhada dessa atitude, a relação educacional com crianças autistas (por mais “dura” e exigente que seja) transforma-se em uma tarefa apaixonante e que pode enriquecer, enormemente, tanto o professor quanto a criança.”(RIVIÈRE, 1995, p.273).

Nestas situações de inclusão escolar, observa-se também o vínculo de amizade que algumas crianças estabelecem com aqueles considerados “diferentes”. Stainback & Stainback (1999) ressaltam o quanto é importante para a promoção da aprendizagem os vínculos de amizade. Estes autores referem-se também ao processo de tutoramento, em que um estudante fica responsável em auxiliar o colega com necessidade educativa especial. Observa-se que em muitos casos, os próprios estudantes, independente da intervenção de um educador, assumem uma postura de auxílio ao colega. Isto é permitido e incentivado em salas de aula e escolas que desenvolvem trabalhos cooperativos e com a participação dos estudantes. Sem que haja a possibilidade de um trabalho cooperativo, dificilmente a parceria e a amizade entre os estudantes é incentivada. Sendo fator primordial para uma verdadeira inclusão, para condições qualitativas de aprendizagem para todos, o desenvolvimento de interações amigáveis faz parte da intenção e do currículo de uma escola inclusiva. Isto fica marcante nas palavras de Stainback & Stainback (1999, p.170):

“Se nossas escolas e comunidades não puderem receber e abraçar a diversidade e apoiar as amizades entre seus membros, não haverá inserção. (…) Finalmente, desenvolver amizades significa viver e aprender junto.”

As relações de amizade também se estabelecem entre os estudantes e os professores. Quando as relações de amizade se estabelecem entre os estudantes e os educadores, o ambiente da sala de aula propicia uma aprendizagem mais prazerosa e um processo de ensinar e aprender mais eficiente. Certamente, vínculo de amizade não é suficiente para a aprendizagem escolar, outros fatores são tão importantes quanto este. Stobäus & Mosquera (2003, p.73-75) apontam algumas condições que facilitam a aprendizagem em uma sala de aula de escola regular inclusiva: uma aprendizagem ativa; negociação de objetivos, em que o aluno delimita com o professor seus compromissos; avaliação contínua; demonstração, prática e retorno dos trabalhos desenvolvidos; aprendizagem cooperativa, realizada em pequenos grupos; colaboração entre as crianças e apoio no processo de aprendizagem dos estudantes. Estes mesmos autores também relacionam fatores que podem proporcionar maior sucesso no processo de aprendizagem dos alunos: criar ambientes em que haja respeito; explicitar os objetivos da aula; dar informações e ensinar conteúdos com entusiasmo, de acordo com conhecimentos prévios; despertar nos estudantes o interesse pela aprendizagem; apresentar materiais de forma variada e criativa; implementar materiais e atividades de acordo com o interesse dos estudantes; despertar interesse e atenção através do lúdico; dar oportunidades para os estudantes decidirem a melhor forma de realizarem as atividades e, por fim, ajudar os estudantes a estabelecerem seus próprios objetivos e se auto-avaliarem.

Nestes casos, independente de haver ou não crianças com necessidades educativas especiais, assim rotuladas em consultórios médicos, para o educador, o especial da educação passa a ser o processo que cada estudante estabelece para aprender. E, assim sendo, mesmo não se denominando, esta é uma atitude inclusiva: aquela que inclui a todos.

Sassaki (2003, p.127) faz uma relação das caraterísticas da educação inclusiva: meta de participação plena para todos; forte “senso de comunidade” na sala de aula; estudo e celebração da diversidade; currículos e métodos adaptados para necessidades individuais; parceria ativa com os pais e suportes suficientes para estudantes e equipe da escola.

Considerando isto, o sistema de ensino com o qual nos deparamos no Brasil, legalmente, oferece uma educação inclusiva, mas na prática ela ainda não alcançou plenamente seus objetivos.

Na “viagem pela estrada da inclusão” existem muitos encontros no caminho. O que fica disto para todos que dela participam?

Para os pais, parece ficar a experiência de uma luta contínua para superar aquilo que não os deixa se acomodarem e a ampliação da crença na capacidade de seus filhos. Muitas famílias com crianças autistas não iniciaram esta caminhada, tendo muitos motivos para isto: culturais, religiosos, financeiros, falta de oportunidades, experiências desagradáveis, entre outros tantos. Para estas famílias, quase não existe a perspectiva de um desenvolvimento maior e de um futuro de melhor qualidade para a pessoa com autismo. Talvez, para os pais daqueles que buscaram seguir a estrada da inclusão, fique a satisfação de olhar para a paisagem que puderam contemplar até o momento, mesmo com os obstáculos do caminho, e visualizar diariamente em seus filhos com autismo as marcas desta caminhada.

Para as crianças e jovens que tiveram a oportunidade de conviver com um colega autista, um olhar mais qualitativo e menos preconceituoso em relação às diferenças humanas, bem como atitudes solidárias, têm se apresentado como os maiores legados.

Para os profissionais e as escolas, que se propuseram a trabalhar com estas pessoas tão diferentes, além dos legados que também são deixados aos colegas delas, fica a maior experiência profissional e a crença de que há possibilidades para a aprendizagem.

E para o autista, o que fica? A oportunidade do direito à educação garantido, da modificabilidade (Da Ros, 2002) exercida em seu interior e no comportamento expresso, da convivência social e do desenvolvimento enquanto ser humano. Fica para ele uma maior perspectiva de futuro e de melhor qualidade de vida. Fica a possibilidade do dia seguinte, que o permite dar dia a dia seus passos nesta estrada da inclusão.

Para a sociedade fica a possibilidade de aceitar e se permitir viver com a diversidade humana na igualdade de direitos, o respeito e a valorização disto.

A caminhada pela inclusão continua, as tentativas são pontuais, mas estão gerando subsídios para algo maior. Neste ano, por exemplo, uma outra menina com transtorno autista foi matriculada na escola de João. São duas pessoas numa mesma instituição, conseqüentemente, são mais profissionais buscando e trocando informações.

Neste caminho, observa-se a diversidade sendo, aos poucos, considerada e celebrada em escolas regulares, com a expectativa de ser assim também num âmbito social mais abrangente. Não se pretende com este processo tornar todos iguais, mas dar espaço para que as diferenças sejam vistas, sentidas e respeitadas.

“ O conceito de inclusão não nega o conceito de desigualdade, na verdade defende o convívio dos desiguais de maneira igualitária. (…) Toda relação é desigual, e inclusão não significa homogeneização da sociedade. (…) O convívio social só é possível pela aceitação e respeito à diferença. (…) A inclusão se dá pelo fato de as pessoas aceitarem suas próprias diferenças.” (ABRANCHES, 2000, p.38)

Neste sentido, as escolas inclusivas, além de dar vazão às diferenças de seus estudantes, proporcionam um espaço de miscigenação destas diferenças para construir uma sociedade em que elas sejam vislumbradas e valorizadas com atitudes de respeito e solidariedade.

Stobäus & Mosquera expressam que “falar de inclusão no Brasil é falar de inclusão social, do direito de cidadania de todas as crianças” (2003, p.25).

As histórias de vida de Maria e João tiveram a oportunidade de terem como cenário a escola regular. Muitos ainda não tiveram este cenário para contarem suas histórias. A caminhada da inclusão continua, iniciando com as famílias, com as escolas, com a sociedade. É um sonho que as histórias contadas e analisadas aqui possam ser fontes de enriquecimento e de instrumentalização para a construção de um cenário inclusivo para todos, pois quando nos esquecemos de tudo o mais, é isto que fica de importante – a continuação da caminhada…


Fonte :http://sandrinhalamb.com.br/?p=461

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